quinta-feira, 17 de maio de 2007

Dificuldades

Hoje com muita frequência vê-se pessoas com grande ansiedade a preparar os seus doutoramentos - é normalíssimo.
Devo dizer que esses doutoramentos quase correspondem ao que eram dantes teses de mestrado e, nalguns casos, teses de licenciatura (a minha, como muitas outras, tinha no primeiro volume umas boas centenas de páginas).
As pessoas hoje queixam-se de tudo - é normalíssimo. Estamos todos sob stress extremo neste tipo de sociedade de alta concorrência.

Não sou nem nostálgico do passado, nem auto-centrado (para me dar como exemplo), nem julgo ter grandes complexos de superioridade e de inferioridade (normalmente andam juntos).
Na maior parte das coisas sou inábil e da maior parte dos assuntos sou totalmente ignorante.
Mas, com mil diabos!
Quando vim de Angola para o Porto em 1975 (já com o prazo da minha tese muito encurtado) auferia, como salário, o dobro do que pagava aqui por renda de um T1.
Não tinha carro.
Não tinha máquina fotográfica!
Nunca tinha passado para Norte ou para Leste do Porto-cidade (para oeste é o mar, e não queria dedicar-me à arqueologia subaquática).
Fui chamado para a tropa (perda de uns 3 meses no mínimo) quando estava em 1979 em plena fase de arranque, passada a fase de adaptação e de recolha de documentação básica.
Não havia computadores, nem internet. Os desenhos eram todos feitos à mão.
Etc.
Comecei a redigir o meu trabalho finalmente em 1980. O GEAP convidou-me então para dirigir uma revista semestral. Aceitei.
Terminei a redacção da tese em inícios de 1982. É certo que usufrui de 3 anos de licença de aulas (equiparado a bolseiro), mas mesmo nesse tempo foi quando me interromperam para o serviço militar.
Se não fosse aquela dispensa docente (na altura direito de que todos os universitários usufruíam), cujo trabalho resultante recaíu sobre colegas (nomeadamente a minha mulher) nem com um milagre de Fátima tinha conseguido!
As escavações eram feitas ao ar livre numa serra onde nos levava um transporte de manhã e nos vinha buscar à noite. Não falando das mortíferas trovoadas e outras inclemências horríveis, esse transporte às vezes era a carrinha do lixo (a Câmara não tinha meios) e o alojamemto uma camarata colectiva montada na sala de aulas de uma escola primária do tempo do Salazar!
Nunca tive meios financeiros para publicar qualquer uma das minhas teses.

Eu sei que circunstâncias diferentes não se comparam, que cada caso é um caso.
E não pretendo, repito, heroicizar-me.
Só relativizar um pouco as coisas... cada um sabe de si e do que passou e passa para se manter no sistema científico neste país extremamente difícil, antes e depois da democracia.

14 comentários:

Anónimo disse...

O problema, meu caro, é que hoje em dia nem com um doutoramento (por muito meritório que este seja) as pessoas conseguem já ter sequer ACESSO aos sistema científico nacional, o que fará MANTEREM-SE nele...
E quanto a essa de agora os doutoramentos serem mais fáceis e o equivalente às antigas teses de mestrado, blá, blá, blá, isso não passa de uma grande treta. Pelo menos nas universidades tradicionais, como Coimbra e Porto, as teses continuam muitíssimo exigentes. E o mesmo se pode dizer da orientação e formação proporcionadas, que continuam miseráveis...
Só mesmo a nostalgia e, sobretudo, uma enorme falta de solidariedade geracional é que não deixam ver as evidências. É absolutamente chocante a indiferença, a frieza e a hipocrisia moral dos acomodados do sistema face à gente nova que, a continuarem assim as coisas, jamais saberá o que é um emprego, um salário, ou uma reforma condigna. Não venham, por favor, do alto dos vossos salários académicos e dos vossos tachos garantidos, dizer-nos que antigamente é que era bom e que agora somos todos uns grandes privilegiados! Haja decência e comedimento!
AG

Anónimo disse...

Ao professor Victor Oliveira Jorge:
Se acha que as teses hoje não são tão boas como foi a sua, porque é que simplesmente não são chumbadas? Será que todas as teses que orientou ou que arguiu eram excelentes? Será que simplesmente deixou passar? Se bem me recordo de uma de há bem pouco tempo da qual foi orientador, que não era grande coisa, e passou...
Então o que se passa, será que a mediocridade existe só naqueles que não são seus alunos?
Não cuspa para o ar senão cai-lhe na esta.

Vitor Oliveira Jorge disse...

É pena que as pessoas que comentam, o façam anonimamente, não em termos de deixarem o seu verdadeiro nome (o blog dá-lhes esse direito), mas o seu perfil. Porque tudo o que se diz, como - é claro - o que eu digo e escrevo, é dito de uma determinada perspectiva. Não vou responder a insinuações vagas nem afirmações malévolas, porque não criei este blog para vir aqui destilar fel. A minha vida e o meu trabalho falam por si - e depois cada um tem direito a ter a sua opinião sobre cada qual, sem ofender, sobretudo sem ofender quem passa a vida a trabalhar em grande parte pelos jovens que continuamente apoia.

José Manuel disse...

Os tempos são diferentes mas não quer dizer que sejam melhores. Quando se vê a luz ao fundo do túnel as dificuldades são facilmente enfrentadas. O mesmo já não acontece quando nos sentimos num beco sem saída.

Nos anos 80 ainda se acreditava na noção de progresso e desenvolvimento. Apesar de todas as difculdades ainda avia algumas oportunidades. Actualmente mesmo os doutorados não têm oportunidade de demonstrar o seu valor.

Hava um certo conjunto de actividades que eram realizadas com base na reciprocidade e solidariedade. Actualmente as nossas sociedades e economias estão totalmente monetarizadas. Já quase nada se faz por reciprocidade mas apenas por dinheiro. Não é culpa de ninguém, é a estrutura e organização da sociedade que comanda esta evolução. E as actividades que se desenvolvem na periferia da economia de mercado são as primeiras a sofrer.

A situação das novas gerações é muito negra. Basta ver qe pelas novas leis deste nosso governo quem se reformar daqui a 30 anos irá receber cerca de metade da reforma de quem se reformar hoje. Aliado à tendência para que os encargos de saúde sejam crescentemente pagos pelos doentes vê-se que estamos a caminhar para um beco sem saída.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Concordo com muita coisa que diz o Zé, mas não podemos ser derrotistas! Esse é que é um dos nossos piores males...

Gonçalo Leite Velho disse...

O Vítor fez um percurso brilhante na arqueologia portuguesa e isso deve-se à sua capacidade de trabalho.
Sabe bem que por exemplo eu ou a Alexandra Figueiredo tivemos 0 (zero) dias de licença para prepararmos a tese. Mas isso nunca nos fez desistir.
De qualquer modo sei que tem solidariedade com os mais novos. Sou testemunha disso.

Vitor Oliveira Jorge disse...

THANK YOU, PAL!
MAS NÃO ME PONHAS JÁ NO PASSADO...

José Manuel disse...

Também subscrevo o que diz o Gonçalo.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado, obrigado, obrigado, como diria a Amália.

Anónimo disse...

Penso que o que está aqui em discussão são as facilidades oferecidas aos jovens, hoje, em termos de possibilidades imensas para conduzirem as suas pesquisas(bibliotecas excelentes e outros recursos), transportes (ver parques de estacionamento das faculdades), oferta cultural que circula nas urbes, liberdade, subsídios por tudo e por nada, aquisição de lazer (o que isso custa) etc. Ora, nada disso existia antigamente, nem emprego, nem reformas condignas, nem SNS,nem divertimento, nada! O cidadão estava só, sem rede...De facto, é caso para dizer que os filhos da abundância se comportam como crianças mimadas que se tornam insuportáveis. Deveriam pensar um pouco mais nas imensas quantias gastas pela coisa pública para proporcionar todos os confortos que diariamente todos nós exigimos, exigimos, exigimos...Exigem os mal pagos e os altamente bem pagos... O Estado é pobre e tem filhos insaciáveis... Claro que depois não vai chegar para as reformas...

Anónimo disse...

É isso mesmo, caro anónimo. As pessoas, mais novas e mais velhas (a diferença de idade não me parece que represente grande coisa), assumem frequentemente uma atitude passiva: querem condições, querem melhor salário, querem, querem. Acham que têm dieito a tudo apenas por existirem e esperam que alguém (normalmente o Estado) lhes providencie o que desejam e lhes cumpra os sonhos. Temos séculos de tradição nesta dependência. Mas a realidade não é essa e nunca foi. As condições são criadas ou conquistadas. Vejam-se as histórias de muitos institutos públicos: não são resultado de uma política anónima bem intencionada, que procura dar condições. São o resultado do sonho e do empenho obstinado de uma ou duas pessoas. São conquistas. Tal como uma empresa. E a sua manutenção e sobrevivência nunca está garantida. Esse é outro problema da sociedade portuguesa: uma tendência para a cigarra.
Naturalmente, a desvalorização do mérito e a propagação da mediocridade e do clientelismo podem gerar sentimentos de impotência e momentos de descrença e desânimo. Mas sobretdo falta vencer uma tendência secular para o imobilismo, para a espectativa passiva. Somos os melhores se nos derem condições, mas não percebemos que temos que participar muito activamente na criação das mesmas e que o sucesso dá trabalho.
Não deixo, contudo, de reconhecer que, no que ao trabalho académico diz respeito (no fundo o tema do post), os professores serão sempre mais responsabilizáveis que os alunos pelo actual estado das coisas, embora estes últimos também tenham bastantes responsabilidades. Isso parece-me inegável. O sub financiamento não explica tudo.

Anónimo disse...

Não só o financiamento, mas a falta de empenhamento e respeito pela pessoa humana!!! Como é possível que o ensino(globalmente falando), se tenha degradado tanto, com professores bem pagos, comparativamente ao passado, num tempo de liberdade em que os próprios agentes de ensino (docentes) são militantes ou simpatizantes de partidos mentores da democracia?Onde está a concretização dos credos políticos? Por isso somos todos cúmplices, todos responsáveis, como muito bem diz, o antónio valera. Enquanto cada um de nós não se assumir como actor com capacidade de agir, de mudar, não saíremos desta apagada e vil tristeza de esperar que do céu nos caia tudo sem esforço.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Bem, não tenho por que ser eu a dar a última palavra... concordo com muito do que diz o António Valera.
Há aqui uma questão importante: de maneira alguma se pode considerar um professor universitário como uma criatura privilegiada. Os professores são cada vez menos (não há contratação), são mal pagos, o sistema de avaliação real não funciona (um sistema de avaliação é aliás sempre muitop difícil de estabelecer)e as universidades têm e vão ter cada vez menos ou cada vez mais "meios" conforme os projectos que os seus docentes ganharem. Um exemplo. No caso da arqueologia, ela, para efeitos de investigação, e como digo numa postagem, está incluída na mesma rubrica da história e da herança cultural. Claro que os júris de avaliação, por exemplo, do meu trabalho, na maioria ou mesmo na totalidade, não estão dentro do que eu faço. Esses júris, sim, são compostos de estrangeiros, que decerto custam dinheiro ao nosso país.E assim já por duas vezes nos últimos anos dois projectos que podiam ser muito importantes para os jovens que investigam comigo foram chumbados pela FCT. Se um membro de um centro FCT classificado como "very good" (o Centro - CEAUCP), professor senior com 59 anos de idade e mais de 40 de dedicação à arqueologia, com cerca de 300 títulos publicados, não vê os seus projectos aprovados, estamos talvez em pleno surrealismo, ou num romance de Kafka.
A realidade no terreno é muito mais dura do que certas pessoas que vêem de fora imaginam, emitindo juízos precipitados e injustos sobre por ex. a universidade, os seus professores (como em todo o lado, há de tudo nesta profissão, melhor e pior), a arqueologia, etc.
No meu post não visava tanto uma questão pessoal pmas chamar a atenção para o efeito duplo que a democracia e a "modernização" nos trouxeram, ambos inevitáveis. A abertura ao mundo, a liberdade de expressão, enfim, as próprias condições de cidadania como potencialmente disponíveis para todos (em teoria). Mas, por outro lado, o mercado e a sociedade de consumo compulsivo ligada a grandes desigualdades, e em particular a sentimentos de mimo nos privilegiados que não estão habituados a esforçar-se. Há também aqui uma questão geracional que se prende com o facto de muitos jovens não terem a mínima ideia do que é uma cultura de esforço, de iniciativa, de imaginação e de auto-criação de condições. Em vez de estarem à espera destas lhes cairem do céu (ou do bolso dos papás, ou das facilidades advindas de uma teia de relações influentes que é como uma pessoa finalmente se desenrasca) deviam, aqueles que têm mais capital financeiro e até cultural, procurar por sua vez unirem-se a outros, estabelecendo redes, associações, iniciativas, empresas, seja o que for que lhes permitisse sair da rotina ou da mediocridade a que fatalmente estamos condenados se apenas ficarmos a gerir as nossas "vidinhas", nunca dispensando, claro, certas benesses e confortos (ou vivendo eternamenmte a queixarmo-nos de que os não conseguimos)...Mas, quando eu digo isto, alguns dos meus amigos mais novos chamam-me espartano, e alguns até fogem, porque não querem trabalhar, querem gozar na medida do possível, ligados a uma espécie de envelhecimento precoce de desistentes psicológicos. Estão no seu direito. Mas cada pessoa que se instala no sistema para so dele hedonisticamente usufruir,ou cumprir serviços rotineiros mínimos (ainda por cima auto-convencida de que isso é um trabalho muito impoprtante, etc), está a ocupar um posto indevidamente, um posto que podia ser ocupado por uma pessoa enérgica e imaginativa verdadeiramente útil ao arranque do país da cauda da Europa. Nada fazer, para além do estritamente necessário para o salário ou outro rendimento cair ao fim do mês, é fazer muito... no sentido de continuarmos no nada, que por sua vez legimita o nosso "nada fazer", etc., numa espiral sem fim.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Esclarecimento desnecessário se se ler o meu post com um mínimo de atenção: não me refiro lá a teses de arqueologia em particular. Contacto com pessoas muito diferentes e circulo entre diversos ambientes, como julgo que faz qualquer pessoa que tenta estar informada. Ainda ontem assisti e usufrui de uma excelente conferência de filosofia na minha faculdade, onde estavam vários doutorandos a terem (como eu) uma oportunidade que no meu tempo nem seria sonhável: assistir a uma conferência de um professor francês de primeira água, a nível mundial. Obrigado aos meus colegas daquele departamento!