domingo, 9 de agosto de 2009

Bernard Stiegler


Há três livros de Bernard Stiegler que julgo muito importantes e fáceis de ler, pois dois são de entrevistas (*) e todos resumem bem o pensamento dele:

“Philosopher par Accident”, Paris, Galilée, 2004. (*)
“Économie de L’ Hypermatériel et Psychopouvoir”, ed. Mille et Une Nuits, Paris, 2008. (*)
“Pour Une Nouvelle Critique de L’Économie Politique”, Paris, Galilée, 2009.

Estes livros deviam ser traduzidos urgentemente. Só conheço um livro do autor traduzido para português, na Vendaval (muito importante também: “Descrença e Descrédito”, 2006).


Bernard Stiegler, baseado também noutros autores, fala de várias fases de “gramatização” (externalização em sistemas que permitem a reprodução e cindem a realidade, a continuidade das sociedades tradicionais ou pré-históricas), que tanto acabariam por distinguir a nossa sociedade ocidental das outras: o alfabeto (antiguidade); a imprensa (Renascença); a indústria e a produção de massa (maquinismo - séc. XIX, criando o primeiro tipo de proletariado de que tratou Marx, o proletariado da produção), o desenvolvimento de sistemas periciais (informática, mas já antes sistemas de comunicação e de gravação, como telefone, fotografia, cinema, telefonia, televisão, etc- não se pode "fazer filosofia" sem estas noções que enquadram toda a vida humana, desde o aprender ao transmitir) no séc. XX e até agora, criando o proletariado do consumo. O proletário (produtor ou consumidor) não é apenas o operário, nunca: o proletário é o indivíduo desprovido do “saber viver”, quer dizer, privado das condições de produção da sua própria existência e subjectividade.

O actual "diálogo de surdos" entre gerações, esse impasse, não é um efeito colateral do sistema capitalista a que alguns chamam “cultural” , mas um dos seus próprios princípios-chave. É incorrigível adentro do capitalismo, como sistema que este é de captação do desejo (da confiança, do crédito) para fins de lucro a curto prazo. A contradição do capitalismo está nisto: move-se no curto prazo, é muito adaptativo, mas os sistemas de diagnóstico e de “tratamento” do sistema exigiriam o longo ou médio prazo. Indiferente a tal (o capital é "cego", visa apenas reproduzir-se) o sistema leva à destruição do Estado social e das classes médias, gerando continuamente os excluídos, de um lado, os “restos” (que são a maior parte), e os privilegiados, de outro, que se mantêm em condomínios de luxo, numa indiferença total, disfarçada pela hipocrisia da repartição de bens excedentários. Como diz Zizek, o capitalismo actual é predatório e caritativo, ao mesmo tempo. Na melhor das boas consciências, entranha-se o mal sistémico que não vai com reformas... ora, o drama é que para entender isto, para ganhar distância crítica, seria preciso sentir isto, e só pode senti-lo quem já tem uma certa formação cultural... excluída da maior parte dos votantes porque se viram despossuídos desse supremo "luxo", que é serem seres humanos capazes de objectivar as suas próprias condições de sujeição. Assim, a pseudo-democracia é um teatro de sombras e um jogo de interesses, em que a maior parte das pessoas tem razão de desconfiar, só que tal maioria não é capaz de descrer de tal modo que isso leve a uma ruptura do laço social. Entretanto, o capital estende os seus tentáculos e interesses a todo o planeta.
Mas B. Stiegler não é pessimista: é um lutador. Creio que a sua contribuição, juntamente com a de Zizek e de muitos outros, é crucial, afastando para a história as tentativas de movimentos "anti-globalização" que parecem exauridos, ou em vias disso. Primeiro que tudo, é preciso PENSAR, porque agir mal, falhar o alvo, é dar mais uma arma ao arsenal imenso dos que dominam (em perfeita boa consciência) este planeta.
O "cancro" ideológico do nosso tempo tem um nome: empreendedorismo. É um écrã, uma panaceia, de que muitos não estão conscientes, é claro, para tendencialmente (em fantasia) transformar tudo em empresas e todos em empresários, como se tal fosse milagrosa solução, mas que de facto excluirá muita gente do sistema de produção minimamente "livre" das suas vidas, do seu saber-viver, que é fundamental, na linha do que era o antigo artesanato... e que até tem virtualidades mesmo com as modernas tecnologias. Aliás, muitos dos grandes empresários actuais começaram com unidades de produção minúsculas... que foram afinal recuperar? O velho espírito das pequenas equipas artesanais, a grande fábrica (quase) acabou!
Inovar, criar, prioduzr, sim, mas para quê e para quem? Para ganhar dinheiro, ser famoso, ter sucesso? São esses os valores?! Para prestar um serviço social? Pois bem, mas quem ganha e quem perde?...os dramas individuais só importam quando dão imprensa, isto é, lucro e de novo écrãs para nos irmos alienando nos dramas do dia a dia, para esquecermos a violência objectiva (como diz Zizek) sob o manto da violência subjectiva.
Aqui na Europa, assistimos a várias fases da eliminação das nossas raizes mediterrânicas, das raizes da nossa filosofia e modo de vida antigas. Primeiro com as invasões bárbaras, mais tarde com a Reforma e com a "depuração" luterana e calvinista do Cristianismo (que cria as condições para a difusão do livro associado à imprensa e ao contacto directo do indivíduo com Deus, em paz com a sua consciência e com as suas "contas em dia"... o livro, tal como já antes a escrita, é primeiro que tudo um livro para assentamento de contas - Max Weber tem o grande mérito de ter percebido a ligação do capitalismo, a justificação do lucro, a esta moral puritana da contabilidade), e depois, é claro, com todos os desenvolvimentos modernos da industrialização, da circulação, dos transportes, das telecomunicações, que cindem a vida, a continidade antiga da vida em fatias, em calendários que fogem ao controlo dos indivíduos. O Mediterrâneo é hoje um museu, um lugar de férias e de turismo, sendo o eixo do Norte da Europa quem controla a União, como todos sabemos...
Dir-se-á ao ler isto: mas este sujeito é um nostálgico da pré-história?!... creio que não, apenas procuro perceber, com a ajuda de autores como os citados, como viemos ter aqui, ver este "aqui" com ESPANTO, que é a base para a distanciação crítica necessária. A história, é claro que não acabou, nem este é o melhor dos mundos com que todos, ou quase todos, cada um de acordo com o seu posicionamento, sonhámos, um dia ou outro... uma sociedade de indivíduos que, à nascença, tivessem TODOS um mínimo de condições para se constituirem como seres humanos autênticos, passando do regime da subsistência para o da consistência, com refere Stiegler. Isso não implica a negação da tecnologia (técnica + ciência), o que seria perfeitamente absurdo e ridículo, significa perceber quem controla o quê e para que fins. Significa perder a ingenuidade que, pelo que se vê, é um véu nos olhos da maior parte das pessoas, mesmo aquelas que militam nos chamados "partidos de esquerda" quem têm um papel importante, mas simultaneamente "bom" (conseguem, pelo menos em áreas limitadas, que o capital não vá até aos seus extremos... aliás, o próprio capital já entendeu que isso não lhe convém, é preciso um agente regulador e esse é pago por todos nós, é a máquina do Estado) e "mau", ou se quisermos, perverso, porque esses partidos de facto "alimentam" o sistema, constituindo a sua moldura, as suas margens, quando não, mesmo, o seu centro, propagando, qual gripe suína, a sua ideologia de libertação, de inovação, de criatividade, de hedonismo, de individualismo, de salve-se quem puder, porque é isso que em última análise hoje conta e é admirado e idolatrado por todos: o sucesso, qualquer que ele seja, do prémio nobel ao futebolista, do jornalista ao actor de telenovela. Importa é sucesso, fama e dinheiro. E alguns autores de esquerda, porque até vendem... e estão entretidos nas suas infindas disputas pela solução!
Haja saúde... para irmos lendo e tentando fazer algo de diferente!


2 comentários:

Ana Paula Fitas disse...

Bom regresso, meu amigo! Aproveito para lhe dizer que o Trans-ferir tem Prémio no A Nossa Candeia. Abraço.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado!
Bjs
Vitor