quarta-feira, 5 de março de 2008

Sobre o meu álbum "Novo Florilégio", com ilustrações de Guida Casella: uma carta do Prof. Adélio Melo


Novo Florilégio
Contributos para uma Extática Botânica


Editor: Edições Afrontamento, Porto

ISBN: 9789723609127

Ano de Edição: 2007

N.º de Páginas: 132

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“(...), sobre o “Novo Florilégio”, o qual é mesmo uma “extática botânica”. Mas já as “Pedras Preciosas” eram uma "extática mineralógica". Enlevo e elevação sobre a “Phísis”, no sentido de “outra Coisa.” E o centro da Coisa, deduzo poeticamente, tem afinal o nome de Mulher, ou então, talvez, o de animalidade espiritual: ser um para ser outro; ser “a totalidade/em si mesmo://falo e vulva/em união eterna.” (Novo Fl., p. 122).
“O extático obedece assim a uma ontologia imanente do movimento, numa transcendência sem transcendência: "acção, movimento, /interacção:/"somos aquilo/que construímos, / com os outros, /com as coisas antigas/elementares” (id, p. 110).
“Esse movimento, que contém esperança dum futuro sempre renovado, pode mesmo imprimir-se “nos muros amarelos/ da impossibilidade.” Mas eis a tal transcendência sem transcendência: “e para tal não é preciso/algo transcendente” (id, p. 112); basta apenas/reencontrar o jeito/.../fazer os gestos mínimos/que mudam algo.” (id., p. 113).
“O poeta, aliás, pressente a “sufocação daquilo que mora/sobre o limite total” (id, p. 23). E por isso, com o não ter nem nunca ter tido “uma casa”, também nunca teve "um deus”, “diante do qual” se “prostrar” (id., pp. 23-24). Entretanto a transcendência sem transcendência origina-se numa tensão essencial (tensão “poiética”, cinética) e origina essa mesma tensão. E trata-se ainda da “extática”, é disso que se trata. Com receio talvez de “transbordar”, de temer o excesso ou a vertigem da cinemática, o caso é que “às vezes até um anjo/ pára na fronteira do sublime,/ e hesita” (id, p. 72).
“(...) o que estou a dizer sobre estes poemas, redunda certamente em cristalizá-los, petrificá-los. Melhor é lê-los, usufruí-los e neles escutar sempre a coisa e a Outra-Coisa que à Coisa dá fulgor e transcendência (= “espírito”, na minha acepção). Foi isso que fiz; foi isso que aconteceu. E quando isso sucede, temos de agradecer aos “deuses”, àqueles que mesmo que não existam, existem (sobretudo nessa hipótese!). De qualquer modo, na linha da minha leitura “pensante” (a outra é dom de “usufruto”), o poema “Amaranto” resume praticamente tudo: a apelação eu-tu (mas o tu é tudo: falo e vulva...), cria precisamente a “imagem” da Mulher (“uma profusão infinda de possibilidades de ser”!). E a Mulher, essa imagem, é de facto a figuração dinâmica de Tudo, de um Tudo eternamente inacessível. É a ontologia do “insterstício”; - dos dedos que dedilham a melodia perene do além no aquém ou vice-versa, com intervalações radicalmente insuperáveis. E temos então a tensão cinética, a tensão verdadeiramente espiritual. Os dedos que dedilham: “sugerindo um 'para além' deles, ou 'um entre eles', quer dizer, um outro mundo, / uma mera potencialidade,/que é aquilo que afinal sustenta os vários modos da arte,/ a taça da incompletude.” (id, p.17).
“Pois é: sem incompletude nunca seríamos completos, mas somos sempre incompletos porque há a incompletude! Nisto, em suma, reside o nosso poder de espiritualidade. É certo que este, tal como os demais poderes, pode tender para a “desmedida”. Também ele é ambivalente. Mas é ambivalente sobretudo porque em termos potenciais é e nunca é um poder absoluto. O seguinte verso diz tudo o que eu poderia conceptualizar, mas talvez nunca conseguisse: “o poder é a comicidade e a nostalgia do ser soberano” (id, p. 96). Aqui, em meu entender, se exprime a lógica da Mulher (do Ser hermafrodita...), a lógica do falo-vulva, a lógica, enfim, da transcendência sem transcendência (absoluta!...).
“(...) e agora silencio-me. Ou melhor: refiro ainda que o poder da espiritualidade (que percorre todo o livro) é fundamentalmente o poder da enunciação (que nunca tudo pode enunciar, é claro...): “vê pois a perdição em que, pela simles enunciação de um tu,/ nos encontramos” (id, p. 15); “pois ninguém, nem deus, escapa/ à força do enunciado” (id., p.97). Claro que não escapa; mas escapa sempre...
Gostei particularmente de “Amaranto”, “Margarida”, “Lírio-real ou Açucena”, “Orégão”, “Rosa” e “Sardinheira”. Ah! Às vezes o “Florilégio” irradia comedidos fluxos de humor e ironia (poderes do espírito, ainda).”


Adélio Melo
Porto, 10 de Novembro de 2007

Com autorização do autor, reproduzo aqui uma carta que o filósofo Prof. Adélio Melo, meu colega da FLUP, me endereçou há meses, mas que nunca tive tempo de inteiramente "decifrar", pois está escrita à mão... enchi-me então de coragem e recorri agora aos meus já parcos resquícios de antigos conhecimentos paleográficos, esperando não ter traído o pensamento deste ilustre professor, cujos comentários muito agradeço.
O Prof. Adélio Melo é uma pessoa que prezo enormente, pela sua cultura e sensiblidade; e os seus comentários não são postos aqui por vaidade minha, mas porque me ajudaram a pensar o meu trabalho e me incentivaram a continuá-lo, quase diariamente, apesar de todas as dificuldades. Talvez incentivem também outros a ler este álbum feito a dois, pois contém desenhos muito interessantes da minha amiga Guida Casella. É também devida uma referência ao departamento gráfico da Afrontamento, terceiro "co-autor" do produto final!
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Alguns outros livros meus...
http://www.webboom.pt/pesquisaHPautores.asp?autorId=18384

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