sexta-feira, 7 de março de 2008

ondas







Durante muitas horas, só ouço a tua respiração, e o som intermitente do teu corpo nos lençóis. É um som muito alto, o do mar. Não se pode dormir, nem sossegar, junto a um mar tão alto. O mar não se vê; apenas existem os lençóis, e o teu corpo desesperado sobre eles. Se algumas ondas azuis começam a despontar, é de entre as tuas pernas, é do interior do teu movimento incessante, para a esquerda, para a direita, ora dobrando as pernas, ora esticando-as. Até o teu repouso faz parte dessa irrequietude. Mas voltas sempre a agitar-te. Essas são as ondas, as forças que vão e vêm, e que mal se deixam ver na penumbra. Só pregas. O corpo irrequieto, que se deita, que se levanta, que se soergue e que se agita, exactamente como o mar. Há um silêncio de fundo, um silêncio sobre o qual repousam as vagas, as ondulações, as variações de ritmo, o próprio leito do oceano que deve passar ao lado. Libertas-te da roupa, palpas-te, mas tudo isso é feito com uma lentidão geológica, não de uma praia, mas talvez de um mar primordial. Suspiras, respiras, trazes o corpo todo para a luz, a sua topografia viva, e depois deita-lo de novo dentro da penumbra. As vagas vão e vêm, mas nunca são iguais; há uma espuma que varia, um azul que conhece vários tons, embora quase indescerníveis uns dos outros. Vejo-te de cima, sobre a cama; ou então de lado, quando os teus pequenos seios, ao erguerem-se, parecem picos de ondas no seu máximo apogeu, atirando para o céu a sua força violenta. É notável o trabalho das tuas mãos, da boca, como é possível contorceres-te assim como um animal aquático, boiando no seu próprio desespero, subindo tenazmente durante um tempo infindo, para logo descer, para logo surgires de novo no esplendor redondo das nádegas, agarrada ao sexo como a uma tábua de salvação, que loucura. Que silêncio negro, ou quase, que marulhar de lençóis negros, que horizontalidade, que fluxo negro corre nas plantas dos pés, na proximidade do mar. Nas pernas, nas mãos, na ondulação dos murmúrios, nos sons ocos de peixes do fundo. Uma grande unidade em tudo isto: o teu corpo, a sua sabedoria, a sua completude solitária, até na longa cabeleira, toda ondulada, sem limite (podendo ir até à beira das águas). Incessante. Repetido. E apesar de tudo essa repetição não deixa tudo sempre igual, há uma ondulação, há algo que emerge, e às vezes com muita força. É um trabalho; os joelhos tocam um no outro com frequência, há um espasmo sobre este vácuo, sobre este silêncio azul. Tateias as pernas, as nádegas, os orifícios, as bocas, e todavia são os lençóis negros, o fundo negro que persiste. É isto a eternidade? Tu forças o texto a não parar, a aumentar ligeiramente de tensão, mas tão longamente, tão repetitivamente. As palavras gostariam de ser como que a anotação deste movimento, uma espécie de pauta da tua coreografia, dessa música do mar, das ondas. Uma pequena aresta e poderia haver uma ferida, uma interrupção, ou a irrupção do oceano por aqui dentro. Mas não. Apenas um osso polido de peixe, talvez de cetáceo, um osso longo, que tu sabes manobrar bem, parece vertebrar um pouco o que podia tornar-se interminável. Tu chegas à frente da sensação, à beira da agonia deliciosa, e nunca pronuncias um som. O mar é o teu marido? Ou são os teus joelhos batendo violentamente um contra o outro, o arrastamento dos tornozelos sobre os lençóis negros? A grande baleia entra finalmente no quarto, mas também muito lenta, voando. É uma baleia prateada. É provável que qualquer de vós só se aperceba uma da outra daqui a uma eternidade. Entretanto ouve-se sempre o mar. Mas os olhos da baleia, muito abertos, são dois relógios, ou pelo menos dois metrónomos, e ouve-se o tique-taque desta música repetitiva, de gotas caindo de cima, do preto, para baixo, e fazendo ondas concêntricas numa espécie de óleo, negro também. Embora cada onda a cair leve um tempo de estalagtites, acontece aqui qualquer coisa. Talvez o osso, o seu polimento, a sua robustez, te tivesse finalmente aquietado. Mas não acredito, seria um fim demasiado fácil. É preciso que de ti continue a haver esta respiração, esta imprevisibilidade, esta superfície horizontal sobre a qual toda a tua coreografia se estende, magnífica, solitária, como cada onda que (se) vem.



voj 2008








Fonte das fotos: http://www.matthaber.com/
Fotos: Martin Haber (rep. aut.)



3 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

eu sei. sei que vai dizer que não é nada do que direi...:)
mas como o texto é irresistivelmente soberano aqui estou.


não assombrada. apenas certa de que o sangue é de fogo e as palavras são de antes do tempo ser tempo.

como se nada mais importasse (e importa?) um autofágico cavalo de fogo e de pulsões.

e poderia continuar por aí fora. ao sabor do sabor de uma gravura a ferro e cal...
mas não.

não me atrevo.

fica o aplauso. sentido.

obrigada.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Estava a ver que ninguém comentava este meu texto... um beijo e a promessa de que um dia lhe dedico um a si.

Isabel Victor disse...

Do Olimpo ...

A ferro e fogo !___________________


Aplausos Aplausos Aplausos Aplausos


Abraço


IV*