Primeiro começamos por escolher um curso, uma área disciplinar.
Tudo é para nós confusão e nevoeiro.
Depois, quando esse nevoeiro se começa a dissipar, compreendemos que a própria realidade que vemos é surreal na sua nitidez, na sua convencionalidade, que parece ser aceite por todos. Essa realidade não existe contida em si. Precisa de outras disciplinas para ser entendida. É nesses cruzamentos inesperados que se encontra o prazer de perceber. E este não se distingue do prazer de viver.
Então devoramos autores das mais diferentes áreas, citamos daqui e dali, fazemos a nossa própria manta de retalhos, interminável, mas muito mais bela e complexa do que a colcha brilhante e aveludada que nos tinham mostrado como o nosso espaço de felicidade e de repouso.
Cada vez fazemos mais cruzamentos, em todas as direcções. Ao escrevermos, compreendemos que a escrita nos escreve, nos constitui, que as imagens que descobrimos moldam o nosso quotidiano, que é capital ter uma voz própria, quer dizer, ter a possibilidade de passar por cima ou ao lado das citações.
Torna-se então nítido que estamos sós, que todas as relações entretecidas eram e são importantes, constituintes também, mas no momento decisivo, o do passo em frente, estamos sós. É essa a beleza do ser humano: nesse momento ele é uma divindade.
Se soubermos chegar aí, o nosso poder é imenso, e só pode ser vencido pela doença mortífera.
A nossa beleza, mesmo que opaca aos outros, é refulgente.
Tudo o resto que ficou para trás nos aparece então como uma brincadeira de crianças, e as hesitações dos outros fazem-nos sorrir com condescendência. Perderam-se na teia das relações e sensações parcelares, não chegaram ao átrio onde se põe um pé à frente de outro. E esse pé não é tímido: vai no exacto traçado da face de Deus, que nos olha ao fundo, no espelho da eternidade.
Nada há aqui de reverencial nem de místico no sentido do recalcamento: este deus é cada um de nós, é a consumação do prazer supremo, o único que nos é permitido.
E, com o nosso pequeno instrumento (o que cada um de nós sabe mesmo usar para traçar e percorrer o seu percurso, para tocar a sua música, para definir um círculo no chão), caminhamos confiantes, de volta ao seio, de regresso a casa.
Quem nos vê de fora, julga (e talvez tenha razão) que estamos a entrar num novo tipo de nevoeiro.
1 comentário:
Afinal a história é circular e tem um fim (e uma permanente necessidade de auto justificação)
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