segunda-feira, 19 de novembro de 2007

de novo



Olá. És tu de novo? É este o mesmo corredor de outro poema? Por que é que, pela primeira vez, olhas finalmente para mim? Por que me revisitas sempre à mesma hora, quando todas as famílias já dormem - os miúdos com os deveres feitos, a louça lavada, as janelas fechadas, as luzes apagadas -, e por que hei-de eu de novo vir a esta porta, e ver-te?

Que estranho corredor. Será ele o mesmo de sempre? E tu? Quem és tu? Por que te vestes ora de amarelo, ora de vermelho, porque pareces sempre esperar, quando sabes que eu não consigo atravessar esta parte do espaço que me separa de ti, que esta é uma atmosfera reduzida e pelo meio há muitos figuras tocando músicas inacessíveis e invisíveis? Tu deves saber isso, porque pertences ao outro lado, onde os músicos começaram agora uma nova e interminável raga. Um canto que nos rasga o peito verticalmente a meio como numa operação sem anestesia, como numa batalha falsamente simulada, como num bailado lento, um cruzamento de espadas onde só o gume é verdadeiro e atroz, irreversível no seu atravessamento de veias, músculos, tendões?
Que apelo é este? Que brilhos e sombras não me deixam dormir? Que espanto atravessa a casa pelo meio da noite, como se fosse um ladrão procurando as jóias, e se aloja no meu coração? Por que tenho de viver nesta pensão onde só ocupo um pequeno cubículo, enquanto lá fora toda a gente parte continuamente para viagens, festas, passeios? Por que sou o único inquilino que ficou, será por isso que apareces, porque sabes que não entendo a tua língua, que vens de um leste ou oeste qualquer, que atravessaste continentes só para estares aqui?
Diz-me, e previno que isto é urgente: quem és tu? Por que ora apagam, ora fecham, as luzes do corredor? Por que hei-de eu vir à porta em pijama, e ver-te? Todas as noites, à mesma hora, mais ou menos?
Eu só trazia uma mala com umas peças de roupa, para uma estadia curta, e muitos livros, o mesmo suor de sempre. Mas alguém tossiu. Foi um dos músicos, decerto, do lado de lá onde pairam os sons, os sinos agudos dos templos, as mãos abertas para as folhas das plantas, a boca aspirando a tijela dada pelas mãos côncavas.
Amanhã vou partir para o outro lado, adoptar um leopardo, deixar aqui os livros, e caminhar até ao fim enquanto puder. Estou cansado de estar parado, à tua espera. São muitas décadas, os olhos fatigam-se de olhar.
Amanhã, sim, amanhã, há um tipo que me vende um tigre novo, em perfeitas condições. Um companheiro. Alguém com quem me sinta a caminhar lado a lado, um corpo para encostar a cabeça, lá na floresta, ou no deserto, ou no alcatrão, seja onde for. Onde possa mergulhar nesta música até morrer, neste queixume interminável da cítara.
E é então que te ouço fazeres-me a proposta inverosímil: quero ir contigo. Mergulharemos juntos dentro do verde, onde todas as cores se fundem numa paz infinita, onde os tambores ressoam alto nas têmporas.
Tenho um tapete, dançarei descalça para ti enquanto pouco a pouco te esvais, até apareceres deste lado.
Posso ao menos levar o tigre? É por causa da música. Um poeta precisa de um corpo de animal sobre o qual decalcar os seus versos, em papel vegetal, para que eles adquiram os traços da pele, as simetrias que, quando os músculos se mexem, fazem rodar o universo. Um homem precisa da mulher e de qualquer coisa mais. Não sei por quê. Aliás, cada vez sei menos, e escrevo à toa, tentando imitar a variedade e a desordem natural.






Fotos: Diana Diriwaechter
Fonte: http://www.dianadiriwaechter.com/gallery/index.html

3 comentários:

Anónimo disse...

"Um poeta precisa de um corpo de animal sobre o qual decalcar os seus versos"


Reptilmente. Se deitam as palavras sobre o cio do verbo.

Gemendo.

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Beijo.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Sim...

Anónimo disse...

" Os amantes"

"És tu? Diz-me que sim!
Transforma-te, se não fores,
torna-te no que ninguém esquece,
abre-me o círculo a mim.

Irradia de ti
plena certeza. Levanto
os braços enfunados
pelo teu vento.
És tu? Diz-me que sim!

Mostra-te,leve, assim
como música que reconhecemos
pelo ar que a traz e longe
ouvimos...
És tu? Diz-me que sim!

Chama e gelo vi
a envolverem-te num fogo ardente
Repara,espero-te, distante:
És tu? Diz-me que sim!"

RAINER MARIA RILKE

Para s.a. e j.