Esta semana vai realizar-se um Colóquio sobre o tema da família, na FLUP, no qual eu participo.
Claro que não caio na esparrela de ir lá dizer como eram as famílias na pré-história... não sou ingénuo a esse ponto; não vivi na "pré-história", felizmente, e sobretudo não acredito no conceito universal de família. Quem acredita?...
Podia falar como eram (ou supostamente são, porque estas "criações" vivem fora do tempo) as famílias nas sociedades "primitivas", mas sei que este conceito foi inventado por nós, que nos intitulámos "civilizados", de modo que também já dei para esse peditório evolucionista...
E no entanto... um problema persiste, relacionado com as tópicas tradicionais da antropologia, como a questão das várias formas de sociabilidade, da importância dos papéis sociais segundo o parentesco, a idade, o género, a questão fundamental das "economias" da troca que desde Mauss vêm sendo discutidas... etc!
Porém é muito difícil abordar isso hoje - senão mesmo impossível - num quadro de conjunto comparativo sem ter em linha de conta as actuais reformulações da antropologia relativamente ao seu objecto. Qual a moldura filosófica que subjaz a cada antropologia, a cada autor, e portanto, a uma variedade possível de antropologias, digamos para simplificar, da família? Há infinitas perspectivas, mas ainda em gestação, e sobretudo creio não existir lugar para perspectivas holísticas, abrangentes, supostamente conclusivas. Em tema tão liquefeito... todo o cuidado é pouco para não escorregar.
Claro que não caio na esparrela de ir lá dizer como eram as famílias na pré-história... não sou ingénuo a esse ponto; não vivi na "pré-história", felizmente, e sobretudo não acredito no conceito universal de família. Quem acredita?...
Podia falar como eram (ou supostamente são, porque estas "criações" vivem fora do tempo) as famílias nas sociedades "primitivas", mas sei que este conceito foi inventado por nós, que nos intitulámos "civilizados", de modo que também já dei para esse peditório evolucionista...
E no entanto... um problema persiste, relacionado com as tópicas tradicionais da antropologia, como a questão das várias formas de sociabilidade, da importância dos papéis sociais segundo o parentesco, a idade, o género, a questão fundamental das "economias" da troca que desde Mauss vêm sendo discutidas... etc!
Porém é muito difícil abordar isso hoje - senão mesmo impossível - num quadro de conjunto comparativo sem ter em linha de conta as actuais reformulações da antropologia relativamente ao seu objecto. Qual a moldura filosófica que subjaz a cada antropologia, a cada autor, e portanto, a uma variedade possível de antropologias, digamos para simplificar, da família? Há infinitas perspectivas, mas ainda em gestação, e sobretudo creio não existir lugar para perspectivas holísticas, abrangentes, supostamente conclusivas. Em tema tão liquefeito... todo o cuidado é pouco para não escorregar.
Ver sobre o dito Colóquio:
http://sigarra.up.pt/flup/noticias_geral.ver_
noticia?P_NR=1680
Com as muitas coisas que tive de fazer hoje de manhã, antes de ir dar aulas, acabei por não concluir uma já longa postagem sobre o assunto, que mandei "guardar" como rascunho, mas o computador não obedeceu.
Tentando superar o trauma da perda de bem mais de uma hora de trabalho, gostaria de deixar aqui algumas simples notas.
Em "Le Dictionnaire des Sciences Humaines", dirigido por Sylvie Mesure e Patrick Savidan (Paris, PUF, 2006, entrada "Família") François de Singly toca, nessa entrada, em alguns pontos interessantes, que resumirei a seguir.
Nos últimos quarenta anos (pós-modernidade, segunda modernidade, como se queira chamar) os comportamentos das pessoas, no mundo "ocidental", experimentaram mudanças drásticas (de que indivíduos muito novos se não apercebem tão vividamente, claro, porque não foram disso testemunhas...).
As famílias numerosas foram quase desaparecendo, e os casamentos (apesar do bom negócio que constituem para certas firmas, e de haver muita gente que ainda "embarca" nessa solução, mais pelo aspecto espectacular muitas vezes) diminuiram.
Aumentaram: o número de divórcios (por consentimento mútuo e por ruptura unilateral), as famílias monoparentais, as famílias recompostas, os casais com actividade profissional dupla.
Entretanto, na lei - pelo menos no que se reporta à França, mas a nível de união europeia estas coisas tenderam a uniformizar-se - deu-se o fim do poder paternal (ligado à velha figura do patriarca, ou "pai de família"); a autoridade parental tornou-se, pois, conjunta; os direitos da criança receberam nova atenção, e ocorreu o que o autor chama o "pacto civil de solidariedade".
Em suma, emergiram novas formas de vida privada, de que são "sintomas" e/ou causas, entre outras, a homoparentalidade (exercício de direitos parentais por duas pessoas do mesmo sexo vivendo como casal), a independência da "mulher" relativamente ao marido, ao homem (antes, muitas vezes o único que trazia para casa um salário), etc., o que implicou a sua existência social sem ter de entrar no casamento, e sobretudo o processo de individualização.
A individualização é caracterizada pelo autor como o acesso dos indivíduos a uma vida independente e privada, ligado à preocupação de se não embaraçarem em laços próprios do que passa a ser um direito inalienável, ou desejo dominante, de cada pessoa.
À abdicação anterior em relação a "valores mais altos" (a família, os filhos) sucede a preocupação dominante, por parte de cada pessoa, em se realizar como tal (o que pode evidentemente passar pela instituição "família" ou pelo desejo de procriar - só que eles, essas "opções" como hoje se diz, estão agora "ao serviço" da realização de cada ser).
Enquanto na primeira modernidade as mulheres, mais cantonadas ao "lar", mais "territorializadas", lutavam para que o marido estivesse a maior parte do tempo livre em casa, na modernidade tardia o que elas procuram é, também elas, sair de casa, da clausura doméstica (ou sentida/vivenciada como tal), de forma independente e autónoma (os "passeios em família" continuam, ou seja, a partilha do ócio, mas este aspecto está sujeito a tensões e negociações. A família deixou de ser um espaço de submissão e junção ritualizada, para se tornar um espaço de negociação, onde cada um dos seus elementos - pais e filhos - procura sobretudo realizar a sua individualidade, consumar o seu processo próprio de individualização).
A solidariedade social é selectiva, tentando equilibrar o dever e o prazer, as obrigações e o desejo de cada um. Já se vê que este equilíbrio é instável e muito diversificado consoante os recursos, incluindo o património cultural de cada família.
Sendo a família, como acentua Isabel Dias ("Violência na Família. Uma Abordagem Sociológica", Porto, Afrontamento, 2004 - um livro muito interessante mas onde estão ausentes Foucault, J. Butler, J. Lacan, Certeau, Boaventura Santos, o próprio Goffman), na sua intimidade moderna, no seu afastamento do "social/convivial mundano, um espaço paradoxal de intimidade e de tensão fortíssimas, já se vê que estas modificações vieram trazer novas situações de violência, provavelmente (mas aí há que ter cuidado, porque a violência vem do inconsciente e tem causas muito complexas, atravessando todas as condições sociais) mais primárias (violência física repetida) nas famílias menos escolarizadas, e mais subtis (violência psicológica desgastante) nas famílias com maior acesso à constituição de uma individualidade "requintada" (ora este "requinte" dá-se em todos os sentidos... e não apenas no aspecto apaziguador ou na atenção e carinho prestada ao outro, até porque os mitos do amor romântico rapidamente de desfazem e os casais são confrontados com a brutalidade da vida prática e difícil do dia a dia).
Os filhos beneficiam também do processo de individualização, apesar das suas relações de dependência em relação à autoridade parental (continuando a seguir de Singly). Na verdade, já não precisam de esperar pela maioridade para terem uma vida autónoma. Eles partilham uma "cultura de juventude" (hábitos de consumo, comportamentos) com os membros da sua geração.
O "direito de cada um a ser ele próprio" independentemente da idade ou do género - uma novidade na história humana - é evidentemente motivador de tensões inéditas e também despoleta novas formas de adaptação e mesmo de estrutura mental por parte das pessoas que habitam o mundo de hoje. A questão complexificou-se enormemente, e ao mesmo tempo nós também estamos abertos a essa complexidade, temos acesso a mais informação sobre o que se passa, estamos mais abertos a tentar perceber o que se esconde por detrás dos formalismos e dos rituais da aparência social.
Temos, além disso, como estudiosos mais velhos, uma melhor percepção da inter e transdisciplinaridade dos temas, percebemos como a realidade social é infinitamente variada e avessa a taxonomias rígidas, a compartimentações estanques, a ideias demasiado gerais. Somos muito mais contextuais e precavidos nas nossas conclusões. Em última análise este processo de individualização gera heterogeneidade ao infinito.
A diversidade das formas de vida privada que hoje existem, particularmente ligadas ao processo de individualização das mulheres, faz com que a relação das pessoas deixe de ser tanto uma relação de dependência e mais uma "relação pura" (o autor cita o conceito de Giddens) - isto é, as pessoas têm a ilusão (ou vivem essa realidade, na medida em que vão concretizando pelo menos parte da dita ilusão) de que a sua relação mútua é motivada pelo desejo e pela opção "livre" de cada uma delas.
Obviamente que constrangimentos e imprevistos de todo o tipo fazem com que em muitos casos este cenários mais ou menos "idílicos" não passem disso: mas não deixam de ser eles o "motor" principal da aproximação/afastamento das pessoas. Claro que aqui a psicanálise seria um contributo da maior importância, porque onde entra a individualização entra o desejo, a radicalidade libidinal de cada um, que é em última análise a "caixa negra" de onde deriva a vontade de viver, de se relacionar, de gerar novas formas e soluções de existência, etc.
Ou seja, jamais devemos esquecer o aspecto sombrio, ou de fantasia, que em todo o ser humano é fundamental para embraiar a sua acção. Esta não é jamais uma acção "racional", nem muito menos emocional consciente. A maior parte das coisas que fazemos são evidentemente induzidas pelo contexto, seja ele socio-cultural, seja inconsciente.
Digamos - e ficámos a dever isso ao estruturalismo e mesmo ao pós-estrutralismo - o nosso "querer" não é meramente interno, ou psicológico, e presente à consciência, mas também "externo", sociológico, e alojado em forças que em última análise são um enigma, quer dizer, a toda a realidade explicada subjaz um "segredo", um inexplicado.
Não se trata aqui de exoterismo nem de tontarias desse tipo, mas do reconhecimento de que o ser humano não é entendível apenas como uma máquina sofisticada: é mais complexo!
E às vezes os sociólogos e os estudiosos das ciências cognitivas, entre outros, querem esquecer isso, ou seja, partilham mesmo de uma ideologia redutora que tenta negar esse aspecto absolutamente capital, de um ponto de vista filosófico, se quisermos.
O ser humano não é algo de transcendente, mas tem um tipo de complexidade que a própria ciência aumenta, de maneira que entre realidade e conhecimento há um jogo interactivo que tem por norma furtar o objecto à sua identificação, ao seu recorte, à sua fixação (por isso quem goste de fórmulas "limpas" o melhor é dedicar-se à matemática, ciência belíssima toda ela auto-sustentada; aí não há atrito).
Na modernidade tardia há pois uma nova ordem relacional.
Cada "eu" espera e exige do outro que ele valide a sua identidade, que ele o ajude na sua construção, de forma permanente ( a pessoa está sempre em modificação até morrer). Essa reciprocidade deve inscrever-se, como diz de Singly, na vida quotidiana, o que põe problemas muito complicados de adequação, de gestão, de constante improvisão sobre aquilo de que se adbica e aquilo de que se não abdica, custe o que custe - no fundo, o difícil equilíbrio entre o que que vulgarmente se chama egoísmo e altruísmo... mas aqui teríamos que ir de novo à psicanálise...
A instabilidade das novas formas de relacionamento inter-pessoal é evidente. Como diz o autor, o ciclo de vida de cada pessoa torna-se mais fragmentado, de experiência em experiência - ele já não é uma sucessão ordenada de momentos de vida, de experiência, mas tende a instalar-se algum caos em todo este processo.
Digamos que vivemos todos na improvisão e no desequilíbrio, tentando gerir o constante "espanto" que o dia a dia nos provoca.
O casal não se baseia já no casamento, numa espécie de contrato ou acordo estável (a ritualização cada vez mais pomposa, para quem pode pagá-la, das cerimónias de casamento é proporcional à precaridade tendencial das relações, como se as pessoas quisessem compensar pela festa, pelo efémero alegre, o efémero muitas vezes triste dos seus laços mútuos), mas na coabitação, ou na união livre.
Qualquer elemento de um "casal", hoje, baseia a sua pertença ao outro na seguinte moral implícita: estou contigo enquanto não me aparecer uma pessoa de quem goste mais, ou por quem me interesse mais. O consumismo ( a substituição do modelo pela série de que já há décadas falava Baudrillard) instalou-se ao nível da intimidade e do desejo acicatado pelo ambiente hedonista, "experimental", "criativo" e individualista, que interessa ao mercado.
Seria tontaria não perceber as novas formas de violência que a aceleração e o frenesim da vida quotidiana teriam forçosamente de gerar; mas não vale a pena sermos apocalípticos, porque, até como acentuava de Certeau, as pessoas são altamente imaginativas nas formas de resistir, de contornar, as dificuldades e as imposições.
Torna-se óbvia a generalizada consciência de que que vivemos num mundo irracional, querendo fazer passar-se (na linguagem do poder e dos seus servidores obedientes, por tiram disso óbvias benesses) por altamente evoluído e racional, e de que a maior parte das pessoas intimamente já sorri (a autoridade pela autoridade, seja do que for, desmoronou-se) perante a injustiça e a iniquidade, incapazes de lhe fazer frente, mas permanentemente disponíveis para tentar defender alguns direitos que restam num Estado e num Mundo onde o capital e a tecnocracia comandam de forma cada vez mais implícita, subtil e soberba.
A coordenação difícil das temporalidades dos "casais" é outra consequência das novas formas de relacionamento. Tempo de trabalho, tempo familiar, tempo pessoal (cada vez mais imbricados, sobretudo nas profissões liberais, que não conhecem horários rígidos) são difíceis de conciliar. Quando um quer passear o outro tem de terminar um trabalho, quando um abdica do seu desejo ou da sua vontade se afirmação em função do outro fica à espera logo do seu momento de compensação, da "sua vez", etc. A subtileza das relações do casal - como quase tudo, aliás, só pode ser expressa pela obra de arte... (mas qual?...).
Em muitos "agregados familiares", e apesar das aparências ou dos discursos e de uma maior colaboração paritária, a mulher continua a ter de fazer uma grande parte dos trabalhos em casa, sobretudo se não tem condições económicas para manter trabalho doméstico assalariado (cada vez mais caro e sobretudo cada vez mais sentido como invasor de uma privacidade sagrada da casa).
Tem assim uma espécie de duplo emprego, o exterior, e o familiar, sendo que alguma coisa tem de ser adiada ou reduzida: ou as aspirações profissionais/intelectuais, ou o relacionamento afectivo com o companheiro e/ou filhos, ou o seu bem-estar e equilíbrio pessoais, etc.
A mulher "livre" dos nossos dias sofre por vezes um peso como nunca terá sentido. E o homem aumenta de perplexidade perante situações para que não foi preparado. Ele precisa do salário da mulher para aguentar a casa, há todo um conjunto de compromissos que se geram (até porque vivemos numa sociedade altamente endividada, o que torna difícil a mobilidade, idealizada ou real, das pessoas), o desemprego e a "flexibilidade" aumentaram com a queda do Estado - providência, as desigualdades e as exclusões também, etc. Tende a "safar-se" na procela quem é mais rico ou quem dispõe de um capital de relações que lhe permite gerir e solucionar pontualmente impasses, que não chegam sequer a notar-se. Quem tem posses, compra também a discrição dos seus problemas e das soluções técnicas para eles.
Daí que a generalidade das pessoas que encontramos se sinta infeliz. Uma pessoa não se pode queixar, que logo outro "ego insuflado" se queixa também. Cada pessoa está convencida de que é o centro do mundo e de que este faltou à promessa de a pôr sobre uma estátua. Os filhos nunca mais saem de casa dos pais, temem dar o passo fatal para fora do limiar da segurança. Mas este limiar atrofia-os. Impede-os de ter os traumas com que uma pessoa cresce. Homens e mulheres - sobretudo estas últimas - arranjam casa perto da residência dos seus parentes, para estarem em permanente contacto. Casais homossexuais são cada vez mais reconhecidos como "naturais".
Conheço pessoas adultas que telefonam aos pais três vezes ao dia, durante todo o ano, o que perfaz algo como um milhar de telefonemas, para já não falar na frenética comunicação por telemóvel e sms, que não respeita horários, nem situações, que elide o outro e o (a) companheira(o) do outro. O outro é apenas uma projecção de um desejo que eu quero momentaneamante concretizar com ele.
As relações a distância por via internética, e a intimidade que geram, como escape para os constrangimentos familiares, dariam para outra postagem... o apego aos computadores liga-se a essa ideologia de que o eu é algo de disponível, em aberto, e de que esse valor de procura e descoberta pessoal se sobrepõe a todas as obrigações contraídas, a todas as promessas feitas. Como se não houvesse passado nem memória, o eu fantasia-se como um jovem sempre disponível para a aventura... e, enquanto sonha, pode ir realizando coisas interessantes. Se não fosse a fantasia, e a capacidade que cada um tem de a alimentar, que seria de nós? Que seria da arte, da vontade de viver, da vontade que apesar de tudo temos de estar uns com os outros?
Se a hipocrisia sempre existiu, ela é hoje a base admitida de sustentação dos laços sociais, tal como as chamadas economias paralelas, que sempre existiram, são a nível mundial a sustentação de economia formal, quer dizer, da vida colectiva e do seu funcionamento. Tal como as resistências são a própria base do funcionamento das normas... que até são libertadoras se se mantiverem dentro do nível do tolerável. Uma sociedade normativa é uma sociedade sofredora.
O sombrio já existia... mas agora tomou conta de nós e da nossa consciência. E sorrimos com bonomia (e ironia) para a sua majestosa presença.
E para as queixas nossas e dos outros...
Há dias, quando saía da Faculdade, um colega queixava-se das costas, uma colega das pernas e outra do pé. Um quase não se podia mexer, outra vinha de operação, e a terceira ia a coxear para o carro. De todos eu era o mais velho, e não cheguei a ter pachorra para me queixar. Achei melhor vir para casa, pensando que apesar de tudo ainda tinha sorte. Não por não ter maleitas.
Por não ter já vontade de me queixar.
Por acaso da minha varanda via-se um bonito pòr-do-sol. E no computador estavam uma série de poemas, de imagens, de músicas à espera. Safa!
http://sigarra.up.pt/flup/noticias_geral.ver_
noticia?P_NR=1680
Com as muitas coisas que tive de fazer hoje de manhã, antes de ir dar aulas, acabei por não concluir uma já longa postagem sobre o assunto, que mandei "guardar" como rascunho, mas o computador não obedeceu.
Tentando superar o trauma da perda de bem mais de uma hora de trabalho, gostaria de deixar aqui algumas simples notas.
Em "Le Dictionnaire des Sciences Humaines", dirigido por Sylvie Mesure e Patrick Savidan (Paris, PUF, 2006, entrada "Família") François de Singly toca, nessa entrada, em alguns pontos interessantes, que resumirei a seguir.
Nos últimos quarenta anos (pós-modernidade, segunda modernidade, como se queira chamar) os comportamentos das pessoas, no mundo "ocidental", experimentaram mudanças drásticas (de que indivíduos muito novos se não apercebem tão vividamente, claro, porque não foram disso testemunhas...).
As famílias numerosas foram quase desaparecendo, e os casamentos (apesar do bom negócio que constituem para certas firmas, e de haver muita gente que ainda "embarca" nessa solução, mais pelo aspecto espectacular muitas vezes) diminuiram.
Aumentaram: o número de divórcios (por consentimento mútuo e por ruptura unilateral), as famílias monoparentais, as famílias recompostas, os casais com actividade profissional dupla.
Entretanto, na lei - pelo menos no que se reporta à França, mas a nível de união europeia estas coisas tenderam a uniformizar-se - deu-se o fim do poder paternal (ligado à velha figura do patriarca, ou "pai de família"); a autoridade parental tornou-se, pois, conjunta; os direitos da criança receberam nova atenção, e ocorreu o que o autor chama o "pacto civil de solidariedade".
Em suma, emergiram novas formas de vida privada, de que são "sintomas" e/ou causas, entre outras, a homoparentalidade (exercício de direitos parentais por duas pessoas do mesmo sexo vivendo como casal), a independência da "mulher" relativamente ao marido, ao homem (antes, muitas vezes o único que trazia para casa um salário), etc., o que implicou a sua existência social sem ter de entrar no casamento, e sobretudo o processo de individualização.
A individualização é caracterizada pelo autor como o acesso dos indivíduos a uma vida independente e privada, ligado à preocupação de se não embaraçarem em laços próprios do que passa a ser um direito inalienável, ou desejo dominante, de cada pessoa.
À abdicação anterior em relação a "valores mais altos" (a família, os filhos) sucede a preocupação dominante, por parte de cada pessoa, em se realizar como tal (o que pode evidentemente passar pela instituição "família" ou pelo desejo de procriar - só que eles, essas "opções" como hoje se diz, estão agora "ao serviço" da realização de cada ser).
Enquanto na primeira modernidade as mulheres, mais cantonadas ao "lar", mais "territorializadas", lutavam para que o marido estivesse a maior parte do tempo livre em casa, na modernidade tardia o que elas procuram é, também elas, sair de casa, da clausura doméstica (ou sentida/vivenciada como tal), de forma independente e autónoma (os "passeios em família" continuam, ou seja, a partilha do ócio, mas este aspecto está sujeito a tensões e negociações. A família deixou de ser um espaço de submissão e junção ritualizada, para se tornar um espaço de negociação, onde cada um dos seus elementos - pais e filhos - procura sobretudo realizar a sua individualidade, consumar o seu processo próprio de individualização).
A solidariedade social é selectiva, tentando equilibrar o dever e o prazer, as obrigações e o desejo de cada um. Já se vê que este equilíbrio é instável e muito diversificado consoante os recursos, incluindo o património cultural de cada família.
Sendo a família, como acentua Isabel Dias ("Violência na Família. Uma Abordagem Sociológica", Porto, Afrontamento, 2004 - um livro muito interessante mas onde estão ausentes Foucault, J. Butler, J. Lacan, Certeau, Boaventura Santos, o próprio Goffman), na sua intimidade moderna, no seu afastamento do "social/convivial mundano, um espaço paradoxal de intimidade e de tensão fortíssimas, já se vê que estas modificações vieram trazer novas situações de violência, provavelmente (mas aí há que ter cuidado, porque a violência vem do inconsciente e tem causas muito complexas, atravessando todas as condições sociais) mais primárias (violência física repetida) nas famílias menos escolarizadas, e mais subtis (violência psicológica desgastante) nas famílias com maior acesso à constituição de uma individualidade "requintada" (ora este "requinte" dá-se em todos os sentidos... e não apenas no aspecto apaziguador ou na atenção e carinho prestada ao outro, até porque os mitos do amor romântico rapidamente de desfazem e os casais são confrontados com a brutalidade da vida prática e difícil do dia a dia).
Os filhos beneficiam também do processo de individualização, apesar das suas relações de dependência em relação à autoridade parental (continuando a seguir de Singly). Na verdade, já não precisam de esperar pela maioridade para terem uma vida autónoma. Eles partilham uma "cultura de juventude" (hábitos de consumo, comportamentos) com os membros da sua geração.
O "direito de cada um a ser ele próprio" independentemente da idade ou do género - uma novidade na história humana - é evidentemente motivador de tensões inéditas e também despoleta novas formas de adaptação e mesmo de estrutura mental por parte das pessoas que habitam o mundo de hoje. A questão complexificou-se enormemente, e ao mesmo tempo nós também estamos abertos a essa complexidade, temos acesso a mais informação sobre o que se passa, estamos mais abertos a tentar perceber o que se esconde por detrás dos formalismos e dos rituais da aparência social.
Temos, além disso, como estudiosos mais velhos, uma melhor percepção da inter e transdisciplinaridade dos temas, percebemos como a realidade social é infinitamente variada e avessa a taxonomias rígidas, a compartimentações estanques, a ideias demasiado gerais. Somos muito mais contextuais e precavidos nas nossas conclusões. Em última análise este processo de individualização gera heterogeneidade ao infinito.
A diversidade das formas de vida privada que hoje existem, particularmente ligadas ao processo de individualização das mulheres, faz com que a relação das pessoas deixe de ser tanto uma relação de dependência e mais uma "relação pura" (o autor cita o conceito de Giddens) - isto é, as pessoas têm a ilusão (ou vivem essa realidade, na medida em que vão concretizando pelo menos parte da dita ilusão) de que a sua relação mútua é motivada pelo desejo e pela opção "livre" de cada uma delas.
Obviamente que constrangimentos e imprevistos de todo o tipo fazem com que em muitos casos este cenários mais ou menos "idílicos" não passem disso: mas não deixam de ser eles o "motor" principal da aproximação/afastamento das pessoas. Claro que aqui a psicanálise seria um contributo da maior importância, porque onde entra a individualização entra o desejo, a radicalidade libidinal de cada um, que é em última análise a "caixa negra" de onde deriva a vontade de viver, de se relacionar, de gerar novas formas e soluções de existência, etc.
Ou seja, jamais devemos esquecer o aspecto sombrio, ou de fantasia, que em todo o ser humano é fundamental para embraiar a sua acção. Esta não é jamais uma acção "racional", nem muito menos emocional consciente. A maior parte das coisas que fazemos são evidentemente induzidas pelo contexto, seja ele socio-cultural, seja inconsciente.
Digamos - e ficámos a dever isso ao estruturalismo e mesmo ao pós-estrutralismo - o nosso "querer" não é meramente interno, ou psicológico, e presente à consciência, mas também "externo", sociológico, e alojado em forças que em última análise são um enigma, quer dizer, a toda a realidade explicada subjaz um "segredo", um inexplicado.
Não se trata aqui de exoterismo nem de tontarias desse tipo, mas do reconhecimento de que o ser humano não é entendível apenas como uma máquina sofisticada: é mais complexo!
E às vezes os sociólogos e os estudiosos das ciências cognitivas, entre outros, querem esquecer isso, ou seja, partilham mesmo de uma ideologia redutora que tenta negar esse aspecto absolutamente capital, de um ponto de vista filosófico, se quisermos.
O ser humano não é algo de transcendente, mas tem um tipo de complexidade que a própria ciência aumenta, de maneira que entre realidade e conhecimento há um jogo interactivo que tem por norma furtar o objecto à sua identificação, ao seu recorte, à sua fixação (por isso quem goste de fórmulas "limpas" o melhor é dedicar-se à matemática, ciência belíssima toda ela auto-sustentada; aí não há atrito).
Na modernidade tardia há pois uma nova ordem relacional.
Cada "eu" espera e exige do outro que ele valide a sua identidade, que ele o ajude na sua construção, de forma permanente ( a pessoa está sempre em modificação até morrer). Essa reciprocidade deve inscrever-se, como diz de Singly, na vida quotidiana, o que põe problemas muito complicados de adequação, de gestão, de constante improvisão sobre aquilo de que se adbica e aquilo de que se não abdica, custe o que custe - no fundo, o difícil equilíbrio entre o que que vulgarmente se chama egoísmo e altruísmo... mas aqui teríamos que ir de novo à psicanálise...
A instabilidade das novas formas de relacionamento inter-pessoal é evidente. Como diz o autor, o ciclo de vida de cada pessoa torna-se mais fragmentado, de experiência em experiência - ele já não é uma sucessão ordenada de momentos de vida, de experiência, mas tende a instalar-se algum caos em todo este processo.
Digamos que vivemos todos na improvisão e no desequilíbrio, tentando gerir o constante "espanto" que o dia a dia nos provoca.
O casal não se baseia já no casamento, numa espécie de contrato ou acordo estável (a ritualização cada vez mais pomposa, para quem pode pagá-la, das cerimónias de casamento é proporcional à precaridade tendencial das relações, como se as pessoas quisessem compensar pela festa, pelo efémero alegre, o efémero muitas vezes triste dos seus laços mútuos), mas na coabitação, ou na união livre.
Qualquer elemento de um "casal", hoje, baseia a sua pertença ao outro na seguinte moral implícita: estou contigo enquanto não me aparecer uma pessoa de quem goste mais, ou por quem me interesse mais. O consumismo ( a substituição do modelo pela série de que já há décadas falava Baudrillard) instalou-se ao nível da intimidade e do desejo acicatado pelo ambiente hedonista, "experimental", "criativo" e individualista, que interessa ao mercado.
Seria tontaria não perceber as novas formas de violência que a aceleração e o frenesim da vida quotidiana teriam forçosamente de gerar; mas não vale a pena sermos apocalípticos, porque, até como acentuava de Certeau, as pessoas são altamente imaginativas nas formas de resistir, de contornar, as dificuldades e as imposições.
Torna-se óbvia a generalizada consciência de que que vivemos num mundo irracional, querendo fazer passar-se (na linguagem do poder e dos seus servidores obedientes, por tiram disso óbvias benesses) por altamente evoluído e racional, e de que a maior parte das pessoas intimamente já sorri (a autoridade pela autoridade, seja do que for, desmoronou-se) perante a injustiça e a iniquidade, incapazes de lhe fazer frente, mas permanentemente disponíveis para tentar defender alguns direitos que restam num Estado e num Mundo onde o capital e a tecnocracia comandam de forma cada vez mais implícita, subtil e soberba.
A coordenação difícil das temporalidades dos "casais" é outra consequência das novas formas de relacionamento. Tempo de trabalho, tempo familiar, tempo pessoal (cada vez mais imbricados, sobretudo nas profissões liberais, que não conhecem horários rígidos) são difíceis de conciliar. Quando um quer passear o outro tem de terminar um trabalho, quando um abdica do seu desejo ou da sua vontade se afirmação em função do outro fica à espera logo do seu momento de compensação, da "sua vez", etc. A subtileza das relações do casal - como quase tudo, aliás, só pode ser expressa pela obra de arte... (mas qual?...).
Em muitos "agregados familiares", e apesar das aparências ou dos discursos e de uma maior colaboração paritária, a mulher continua a ter de fazer uma grande parte dos trabalhos em casa, sobretudo se não tem condições económicas para manter trabalho doméstico assalariado (cada vez mais caro e sobretudo cada vez mais sentido como invasor de uma privacidade sagrada da casa).
Tem assim uma espécie de duplo emprego, o exterior, e o familiar, sendo que alguma coisa tem de ser adiada ou reduzida: ou as aspirações profissionais/intelectuais, ou o relacionamento afectivo com o companheiro e/ou filhos, ou o seu bem-estar e equilíbrio pessoais, etc.
A mulher "livre" dos nossos dias sofre por vezes um peso como nunca terá sentido. E o homem aumenta de perplexidade perante situações para que não foi preparado. Ele precisa do salário da mulher para aguentar a casa, há todo um conjunto de compromissos que se geram (até porque vivemos numa sociedade altamente endividada, o que torna difícil a mobilidade, idealizada ou real, das pessoas), o desemprego e a "flexibilidade" aumentaram com a queda do Estado - providência, as desigualdades e as exclusões também, etc. Tende a "safar-se" na procela quem é mais rico ou quem dispõe de um capital de relações que lhe permite gerir e solucionar pontualmente impasses, que não chegam sequer a notar-se. Quem tem posses, compra também a discrição dos seus problemas e das soluções técnicas para eles.
Daí que a generalidade das pessoas que encontramos se sinta infeliz. Uma pessoa não se pode queixar, que logo outro "ego insuflado" se queixa também. Cada pessoa está convencida de que é o centro do mundo e de que este faltou à promessa de a pôr sobre uma estátua. Os filhos nunca mais saem de casa dos pais, temem dar o passo fatal para fora do limiar da segurança. Mas este limiar atrofia-os. Impede-os de ter os traumas com que uma pessoa cresce. Homens e mulheres - sobretudo estas últimas - arranjam casa perto da residência dos seus parentes, para estarem em permanente contacto. Casais homossexuais são cada vez mais reconhecidos como "naturais".
Conheço pessoas adultas que telefonam aos pais três vezes ao dia, durante todo o ano, o que perfaz algo como um milhar de telefonemas, para já não falar na frenética comunicação por telemóvel e sms, que não respeita horários, nem situações, que elide o outro e o (a) companheira(o) do outro. O outro é apenas uma projecção de um desejo que eu quero momentaneamante concretizar com ele.
As relações a distância por via internética, e a intimidade que geram, como escape para os constrangimentos familiares, dariam para outra postagem... o apego aos computadores liga-se a essa ideologia de que o eu é algo de disponível, em aberto, e de que esse valor de procura e descoberta pessoal se sobrepõe a todas as obrigações contraídas, a todas as promessas feitas. Como se não houvesse passado nem memória, o eu fantasia-se como um jovem sempre disponível para a aventura... e, enquanto sonha, pode ir realizando coisas interessantes. Se não fosse a fantasia, e a capacidade que cada um tem de a alimentar, que seria de nós? Que seria da arte, da vontade de viver, da vontade que apesar de tudo temos de estar uns com os outros?
Se a hipocrisia sempre existiu, ela é hoje a base admitida de sustentação dos laços sociais, tal como as chamadas economias paralelas, que sempre existiram, são a nível mundial a sustentação de economia formal, quer dizer, da vida colectiva e do seu funcionamento. Tal como as resistências são a própria base do funcionamento das normas... que até são libertadoras se se mantiverem dentro do nível do tolerável. Uma sociedade normativa é uma sociedade sofredora.
O sombrio já existia... mas agora tomou conta de nós e da nossa consciência. E sorrimos com bonomia (e ironia) para a sua majestosa presença.
E para as queixas nossas e dos outros...
Há dias, quando saía da Faculdade, um colega queixava-se das costas, uma colega das pernas e outra do pé. Um quase não se podia mexer, outra vinha de operação, e a terceira ia a coxear para o carro. De todos eu era o mais velho, e não cheguei a ter pachorra para me queixar. Achei melhor vir para casa, pensando que apesar de tudo ainda tinha sorte. Não por não ter maleitas.
Por não ter já vontade de me queixar.
Por acaso da minha varanda via-se um bonito pòr-do-sol. E no computador estavam uma série de poemas, de imagens, de músicas à espera. Safa!
1 comentário:
Valham-nos as coisas positivas, quando ainda conseguimos ver algo de positivo no que nos rodeia!... Afinal ainda há brechas pelas quais podemos respirar...
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