segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Sobre um livro fundamental de Bruno Latour, pela Profª Marina Lencastre, Univ. Católica, Porto

Latour, B. (1999) Politiques de la Nature. Comment faire entrer les Sciences en Démocratie, Paris: La Découverte, 383 p.

O problema central de que parte B. Latour nesta sua obra de 1999 consiste em saber como ultrapassar a distância, aparentemente inultrapassável, entre a ciência – suposta compreender a natureza – e a política – suposta regular a vida social, distância essa dramaticamente reduzida pela evidência dos problemas ambientais em que natureza, ciência e política se entrelaçam necessariamente. Assuntos como o sangue contaminado, as vacas loucas, a poluição pelo amianto e tantas outras questões que hibridam os reinos tradicionalmente separados da natureza e da sociedade apelam a uma nova compreensão política (ecológica) mas também a uma nova epistemologia (política) que permitam produzir outras condições de pensamento que mobilizem a acção social, e outras condições para a acção que mobilizem o pensamento científico. Nesta obra, Latour propõe uma nova maneira de pensar a ecologia política, recusando as suas categorias tradicionais que separam a natureza e a sociedade e que, segundo ele, levaram até à falência do seu projecto inicial.
Segundo Latour, a natureza constituiu sempre uma das duas metades da vida pública, ela corresponde ao fundo material comum que todos partilhamos, enquanto que a outra metade corresponde à arte da política, isto é, à gestão das paixões e dos interesses humanos em sociedade. De um lado estaria aquilo que nos une – a natureza – e do outro aquilo que nos divide – a política; assim, segundo o autor, é falso dizer que a ecologia política (que desune) é àcerca da natureza. Na verdade, ela é àcerca da gestão dos assuntos humanos, e essa característica é saliente nas controvérsias científicas em torno de questões ambientais, na incerteza dos valores que elas implicam, na incerteza material das decisões àcerca delas. Segundo Latour, a questão prinicipal é então como pensar a política sem a natureza?
O objectivo do presente livro consiste em mostrar que a solução repousa sobre uma redefinição tanto da actividade científica (que deve abandonar o seu estatuto separado do resto da actividade social) como da actividade política (que deve ser entendida como o esforço de elaboração progressiva de um mundo comum que leve em conta o carácter particular dos resultados da ciência). Assim, na encruzilhada da filosofia das ciências e da filosofia política, a presente obra desenvolve as condições e os limites desta ideia, abordando o papel da ecologia, o significado das controvérsias científicas, o papel dos peritos nos debates públicos e, genericamente, a relação das ciências com a democracia.
Logo na Introdução, Latour nota que este livro é sobre filosofia política da natureza ou, ainda, sobre epistemologia política; isto significa que se vai tratar de natureza, de política e de ciência. Mas a relação deste trio não é linear: é que é da ciência que depende tanto a concepção particular de natureza em que se baseia o ecologismo como, por contraste, é também dela que depende a ideia particular de política onde a natureza pretende “fazer ouvir” a sua voz.
O autor desenvolve esta ideia no capítulo um, tentando mostrar que a ecologia política não pode conservar a ideia de natureza sob pena de congelar definitivamente aquilo que parece resultar de uma decisão que separa o que é objectivo e indiscutível (a ciência) do que é subjectivo e discutível (a política). Na senda dos seus trabalhos anteriores sobre sociologia da ciência, Latour propõe então que se distinga a ideia pura de Ciência do trabalho prático das ciências, na medida em que esta distinção permite igualmente operar uma outra, fundamental segundo o autor, e que corresponde à distinção entre a filosofia oficial do ecologismo, por um lado, e a miríade de práticas ecológicas, por outro. Geralmente associa-se a ecologia a questões de natureza, mas na verdade ela ocupa-se de imbroglios de ciências, morais, direitos e políticas. “Em consequência, o ecologismo não trata de crises da natureza, mas de crises da objectividade” (p.32). Desta maneira, e paradoxalmente, o ecologismo parece marcar o fim da natureza (p.42) na política, e doravante não é mais possível retomar o conceito tradicional de natureza para a constituição do mundo comum a não ser correndo o risco de reduzir drasticamente o âmbito da vida pública. O autor não defende a ideia, comum nas ciências sociais, de que o sentimento ocidental de natureza é uma ‘construção social’ historicamente situada, na medida em que o construcionismo social mantém o conceito de natureza refém do universo científico. O que parece importante para este autor é evitar a armadilha das representações da natureza (p. 50) e aceitar o repto de um pensamento metafísico que permita sair, de um modo mais radical, do nominalismo tradicional. “A ajuda frágil da antropologia comparada” (p. 62) serve para esta tarefa e Latour parece querer demonstrar, ao contrário de muitas teses neo-naturalistas e ecologistas contemporâneas, que as sociedades tradicionais não vivem, ou viveram, em harmonia com a natureza, antes a ignoram enquanto condição de oposição para a organização da vida social (reportando-se simbolica e praticamente aos elementos não humanos em colectivos de natureza/cultura que variam segundo as posições relativas de cada uma1). Assim, a questão essencial da ecologia política ocidental é saber se existe um sucessor para o conjunto constituído pelas duas ‘câmaras’ (p. 72) – a natureza e a cultura - isto é, se é possível pensar a política sem a ideia de natureza, mas mantendo uma relação construtiva com o conhecimento científico sobre os existentes não humanos.
O capítulo dois trata da questão de reunir o ‘colectivo’ (p. 87), sucessor das ideias antigas de natureza e de sociedade/cultura; não se trata somente de reunir sujeitos e objectos num mesmo grupo, pois desta forma a antiga separação não seria ultrapassada. Para convocar o novo colectivo (p. 92) é necessário considerar que este é composto por humanos e por não humanos, susceptíveis de serem considerados em simultâneo, mas na condição de que se distingam as suas capacidades respectivas. Assim, a primeira distinção será, segundo Latour, aquela que consiste em redistribuir a palavra aos humanos e aos não humanos aprendendo a duvidar de todos os porta-vozes (p. 99). A segunda distinção consiste na redistribuição da capacidade de agir socialmente, considerando as associações de humanos e de não humanos (p. 109) isto é, as situações reais com que a ecologia prática lida, e não as situações teóricas apresentadas tanto pela filosofia ecológica como pela política social. Segundo Latour, é com estas associações que a ecologia lida de facto, e não com a natureza. A terceira distinção consiste no reconhecimento do estatuto de realidade e de recalcitrância (p.117), isto é, de resistência, aos elementos humanos e não humanos do colectivo; esta distinção permite definir o colectivo como composto de proposições mais ou menos bem articuladas (p.123) entre si e a política é a arte da escolha e da gestão destas proposições na construção de um bom mundo comum e, deste modo, do retorno à paz civil (p.130).
O capítulo três serve para Latour introduzir uma nova separação dos poderes (p. 135) que evite uma unificação prematura da natureza/cultura em colectivos homogéneos. No seio destes colectivos, o autor pretende evitar a diferenciação clássica entre factos e valores (p.140) considerando que esta distinção apresenta o inconveniente maior de colocar de um lado os ‘factos’ indiscutíveis e do outro os ‘valores’ discutíveis, paralisando deste modo tanto as ciências como a moral. Não aceitando portanto a hierarquia dos factos subordinando a moral, Latour introduz dois novos poderes nos colectivos: o que leva em conta as proposições e aquele que as ordena (p. 149); por outras palavras, o primeiro poder retém dos factos a exigência de perplexidade2 que os institui enquanto factos a notar, e o segundo poder retém dos valores a exigência de consulta que os hierarquiza numa escala de referência moral. Deste modo, Latour pretende substituir à impossível relação entre os factos e os valores, dois poderes de representação do colectivo (p. 157) que são distintos e complementares e permitem garantir a coexistência, nesta nova Constituição, de poderes simétricos e dinâmicos na composição progressiva do mundo comum.
Uma vez realizadas as distinções e definidos os poderes, Latour propõe-se descrever, no capítulo quatro, as competências dos colectivos (p. 179) evitando a confusão entre ecologia política e economia política. Segundo o autor, a economia tende a impôr uma terceira forma de naturalização (para além da natureza e da sociedade) ao apresentar pretensões políticas idênticas a estas últimas; mas esvaziada dessas pretensões, a economia torna-se num dos corpos essenciais ao funcionamento da nova Constituição ao fazer a sua contribuição para as câmaras (p. 189). A contribuição das ciências (p. 190) será muito mais importante do que a contribuição da Ciência, na medida em que as ciências se reportam a todas as funções da nova Constituição: perplexidade, consulta, hierarquia e instituição. A estas juntam-se ainda duas novas funções que são, por um lado, a separação dos poderes e, por outro, a visão do conjunto. A contribuição das políticas (p. 197) reportam exactamente às mesmas funções, permitindo uma sinergia que era impossível na Constituição antiga que distinguia entre natureza e política, entre factos e valores. A contribuição dos economistas (p. 205) e dos moralistas (p. 210) acrescentam-se ainda ao conjunto, criando a possibilidade de um campo comum de trabalho em que a dinâmica dos colectivos se torna clara.
No capítulo cinco, Latour argumenta que um colectivo definido desta forma não se encontra mais face à alternativa ‘uma natureza e várias culturas’. De facto, esta organização constitucional permite considerar vários colectivos, isto é, vários mundos comuns (p. 245) ou ‘multiversos’ que apresentam como característica central a de apresentarem duas flechas do tempo (p. 250) orientando a sua evolução: uma flecha do tempo modernista que tende para a separação do que é objectivo e do que é subjectivo, e uma flecha do tempo não moderna, que tende para integrações cada vez mais intricadas dos colectivos. Estas últimas correspondem ao que Latour chama as trajectórias de aprendizagem (p. 258) desses colectivos e elas apelam a um terceiro poder, que é o poder de controle (suivi) que repõe, naturalmente, a questão do Estado (p. 264). Ora o Estado da ecologia política está por inventar, pois ele não repousa sobre nenhuma transcendência mas sobre a qualidade do controle (suivi) da experiência colectiva. É desta arte de governar que depende a civilização que põe fim ao estado de guerra; mas a paz necessita de um novo tipo de exercício da diplomacia (p. 275) que não repousa sobre a distinção entre o monoculturalismo e o multiculturalismo (sob fundo de natureza comum), mas sobre a qualidade de colocar questões comuns aos colectivos, com a mesma incerteza e a mesma capacidade de se encarregar do que Kant chamava ‘o reino dos fins’ (p. 284).
Como conclusão, Latour reforça a ideia de que o mundo comum está por contruir, ele está à frente de nós e não atrás. À pergunta ‘o que fazer?’ Latour responde ‘ecologia política!’ (p. 291) na condição de que se mude o significado destas palavras e de que ela se abra à metafísica experimental contida na ideia de proposições, de colectivos e de poderes.
O livro Politiques de la Nature de B. Latour apresenta a vantagem central de ensaiar uma via de articulação entre as instâncias contraditórias da governação contemporânea, escapando tanto ao reducionismo naturalista (sem negar a importância dos elementos não humanos na tomada de decisões políticas) como ao reducionismo construcionista (sem negar a importância do facto social na pro-posição dos problemas) e mantendo aberta a possibilidade de composição de mundos comuns. A sua intuição fundamental de antropólogo, evidente em trabalhos anteriores, torna possível esta reviravolta dos termos da questão tais como eles se colocam na sociedade ocidental sem que, no entanto, o autor ignore o facto de que este livro representa “um ponto de vista particular, não somente europeu mas francês, provavelmente mesmo social-democrata ou, pior, logocêntrico…. Mas onde é que já se viu um diplomata que não seja portador dos estigmas do campo que representa?” (p. 291) Mas na verdade, mais do que representar um ponto de vista particular sobre a complexidade das relações entre poderes na sociedade, o livro de Latour é uma reflexão inteligente e arguta sobre as contradições e possibilidades do pensamento ambiental actual.

Bruno Latour é filósofo e sociólogo das ciências, professor na Escola das Minas de Paris e professor associado da London School of Economics. Escreveu numerosos livros e artigos sobre a relação entre as ciências e as sociedades.
Marina Lencastre

in Lencastre, M.P.A. (Org) (2004) Educação e Ambiente. Temas transversais, nº especial da Revista Educação, Sociedade e Culturas, Porto: Ed. Afrontamento


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