Para a direita do meu ombro direito, quando estou sentado aqui, suponho que fica um espaço vazio, cheio de ar. Julgo saber que logo a seguir estão móveis, uma cadeira, as portas de madeira de um armário onde guardo livros e roupas. Sobre essas portas estão coladas imagens, um calendário com a minha programação do mês, etc. Sei que se rodar agora a cabeça para a minha direita vejo com toda a probabilidade essas coisas, posso certamente antecipar a acção de me levantar e de me aproximar delas. Mas é tão somente uma presunção de estabilidade, necessária para o acto da leitura de que não quero distrair-me. Sei que os armários, mesmo fechados, trazem por vezes às portadas imagens antigas. E essas imagens, como todas aquelas que verdadeiramente nos tocam, não têm som nem movimento. Não diria que são ícones ou espectros, mas sim antes o próprio passado que irrompe e me fita. Às vezes tiro os olhos do livro, e ele já não está lá, como parecia quando apenas o canto da retina o suspeitava. Se eu alguma vez visse essa imagem, eu sei, ver-me-ia a mim próprio, ou seja, ao meu cadáver vivo, olhando-me serenamente; e o móvel ter-se-ia transformado no meu caixão. Ou então veria as imagens da minha infância imaginária, sob a forma de diversas pessoas que só existiam em função de mim, como uma atmosfera ou ambiente fluidos e líquidos, feitos de ecos e de bolhas. Esses ambientes são propícios às figuras familiares, os génios do lar, que com o seu rosto de bondade apenas podem exprimir o sorriso da impotência. Como se eu lhes tivesse pedido uma esmola, e, com amabilidade, a adiassem para a próxima vez: tem paciência, que nós continuamos aqui, só que apenas podemos aparecer de vez em quando, e tu és capaz de sofrer um pouco com isso, como daquela vez em que tivemos de te bater. Não tem mal, antecipo-me a responder-lhes. Ide para dentro do armário e deixai-me ler. Ler é apenas pôr uma pessoa a falar comigo, e de forma tão íntima, tão certa, sempre disponível. Entre mim e essa voz, quando a encontro e com ela me identifico, estabelece-se uma forma de verdade que me provoca suor, que faz com que o meu corpo deixe de estar limpo e higienizado como quando preciso de o ir mostrar aos outros, lá fora, sob as roupas vestidas à pressa. E este cheiro é um cheiro que me agrada, é uma espécie de identificação com o pântano onde um dia me hei-de ir deitar, deixando-me afundar no verde, nessa cor da morte tranquila, liberto dos loucos obsessivos que me perseguem com pedidos, obrigações e perguntas, e onde talvez vocês possam revisitar-me. Adio pois esse momento de me virar. Aspiro com as narinas abertas o hálito que vem do livro, entrego-me inteiramente à alegria e ao espanto.
voj 2007
Foto: Wollodja Jentsch
Fonte: http://www.wodja.com/index.html
voj 2007
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