domingo, 5 de agosto de 2007

Uma nova linguagem

"Vaidade das vaidades – diz Coelet –
vaidade das vaidades: tudo é vaidade.
Quem trabalhou com sabedoria, ciência e êxito,
tem de deixar tudo a outro que nada fez.
Também isto é vaidade e grande desgraça.
Mas então, que aproveita ao homem todo o seu trabalho
e a ânsia com que se afadigou debaixo do sol?
Na verdade, todos os seus dias são cheios de dores
e os seus trabalhos cheios de cuidados e preocupações;
e nem de noite o seu coração descansa.
Também isto é vaidade."

Co (Ecle) 1,2; 2,21-23

"Yet `subject' and `object' are the jargon of metaphysics, which from early on in the form of western logic and grammar co-opted the interpretation
of language."

Heidegger, Letter on Humanism

A "Carta sobre o Humanismo" de Martin Heidegger desafia um edifício de milhares de anos do "jargão da metafísica". Como podemos nós trabalhar o pensar numa linguagem que gramaticalmente separa sujeito e objecto. Tal como gramaticalmente separamos o "Eu", o "Tu", o "Ele", o "Nós".
Nesse mesmo sentido a "Carta sobre o Humanismo" é também uma leitura fundamental perante a crítica de que o pensamento de Heidegger convida ao individualismo. Só quem não leu este texto pode afirmar tal coisa.
Isto leva-me a pensar sobre a recente hipótese de integrar uma sessão sobre fenomenologia e arqueologia. Aquilo que me parece mais grave é este modo de utilizar algo como uma "ferramenta metodológica", o que no caso da chamada "fenomenologia" me parece mais grave.
É tão difícil caracterizar, ou unificar, a fenomenologia como o existencialismo. Os vários autores não se sobrepõem numa mera questão de complementaridade, quer num espaço quer no outro. Existem diferenças que fazem toda a diferença.
Uma radical mudança da Filosofia para "A Tarefa do Pensar" não se coaduna com importações metodológicas. Ela envolve uma completa redefinição.
Não se trata de uma mera crítica ao modernismo. Quanto lemos a crítica de Heidegger perante a falácia da metafísica percebemos que não se trata de um mero erro moderno, a não ser que consideremos que a Filosofia vive na modernidade desde os alvores da metafísica. Aliás penso que é tempo de largarmos âncora da Modernidade para que possamos efectivamente dedicarmos à tarefa do pensar. Por essa mesma razão é que penso que devemos ir à absoluta base da "Questão concernente à Arqueologia".
Eu não compreendo como é que aqueles que supostamente trabalham com fenomenologia e arqueologia, não sentem um profundo desconforto com determinada linguagem, nem sequer a interrogam na sua base. Não se trata de uma mera desconstrução dos termos por estes acarretarem este ou aquele elemento de modernidade. Trata-se de profundos obstáculos ao desenvolvimento do pensar sobre o ser.
Agora aqui coloca-se uma questão: Se aceitamos o convite para a tarefa do pensar, se resolutamente caminhamos no pensar, se nos assumirmos como pensadores, poderemos nós aceitar o epíteto de arqueólogos?
Para compreender se existe dicotomia entre os termos temos de primeiro perceber o que é a tarefa do pensar e o que é isso da arqueologia. Se na tarefa do pensar temos o caminho aberto, na arquelogia existe uma oclusão absoluta.
Recentemente seguímos um caminho que se relaciona com a lógica. Tentamos inverter, procuramos o contrário, pensando solucionar assim o problema. Contudo afirmar a arqueologia como produto da modernidade, num convite aberto à "contra-modernidade" é tão válido como a inversão da primordialidade dos termos "essência" e "existência". Aliás e como se tornou óbvio, a contra-modernidade tal como o contra-capitalismo tornou-se ela própria um elemento de reforço daquilo que devia ser o seu contrário. É uma questão que exigiria um desenvolvimento da noção de dialéctica, mas que nos é impossível desenvolver aqui.
É impressionante a extrema leviandade com que se tenta dar o salto do ontológico para o ôntico. Por essa mesma razão assistimos a uma espécie de meio salto, dado que não se aprofunda a saída (ex-it). Como não existem meios-saltos de facto compreendemos que nunca saímos do mesmo lugar, tendo apenas invertido a nossa posição (imaginemos que estou num local a olhar numa direcção, se eu rodar os calcanhares e apontar para o lado inverso poderei eu dizer que saí do local onde estava?). Por essa razão é que assistimos a fenómenos como "Sensorial Catchment Analysis", ou a descoberta dos enigmas passados pelo contacto sensorial. Continuamos imersos no mesmo barco que visa sobretudo reconstruir e arquivar. Dizemos que queremos "Descobrir o mundo" mas de facto não percebemos ainda o que Des-cobrir quer dizer.
Imersos num conceito de tempo em que Passado, Presente e Futuro encaixam em sequência, apenas parece restar uma máquina do tempo construída através de sensações que reconstroem o passado distante. Ficamos felizes pois as coisas encaixam. Por um breve momento conseguímos fazer sentido do que foi, como o detective que reconstruiu a cena do crime (mas com o auxílio de videntes, num cenário muito New Age).
Do mesmo modo incorremos num problema de gramática. Conjugamos o "Eu" pois não sabemos como utilizar outra figura verbal. Assumidamente tomamos uma questão como própria e erradamente consideramos-la como individual. Assumimos a máxima vaidade da nossa descoberta. Não percebemos que:
"Na verdade, todos os seus dias são cheios de dores
e os seus trabalhos cheios de cuidados e preocupações;
e nem de noite o seu coração descansa."
Claro que também isto é vaidade, como afirma Coelet.

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