sexta-feira, 31 de agosto de 2007

(Re)viver o passado, (ante)viver o futuro, para poder estar no presente

Para que uma situação ou uma experiência não me domine, isto é, não se torne incontrolável para mim (pelo menos naquela "parcela" em que ela será "controlável", pelo menos na minha imaginação, o que é muito importante) necessito de pensar sobre ela, de escrever sobre ela (escrever e pensar são duas realidades inextricáveis na nossa cultura "erudita", apesar da importância do incorporado, do não verbalizado, e que continua a ser em quase tudo dominante). Como qualquer pessoa, programo minimamente uma viagem, ela começa muito antes de começar no pesar dos prós e dos contras, na imaginação da experiência por vir, no arranjo de pormenores. Uma viagem é sempre uma passagem, uma modificação temporária (mas em certos aspectos definitiva) de situação, com os seus ritos próprios, variáveis de pessoa para pessoa, de condição social para condição social, etc.
Quando regresso de uma viagem, tenho uma absoluta necessidade de reincorporar, e de organizar, no que é o meu ideal mítico de quotidiano (supostamente "controlado" por mim), no meu espaço doméstico, como na minha memória, essa "novidade" assim recentemente "importada". Então, por exemplo, a organização das fotografias (são intermediárias fundamentais entre mim e "o visto" - este "visto" é posterior à viagem porque começa, por exemplo, com a classificação das fotos no computador - dantes era em álbuns) torna-se imperiosa. Pessoa da cultura escrita, eu necessito de registar, refazendo ou prolongando a minha experiência através desse registo, que é sempre uma ficção, evidentemente, com alguns pontos de apoio mais ou menos sólidos a ancorá-la à "realidade": nomes de cidades ou outros sítios, sua localização no mapa, conhecimentos históricos/descritivos que se podem obter num simples livro-guia ou numa obra mais especializada, etc.
Como quando vejo um filme que muito me agrada (ultimamente não me tem acontecido...) sou incapaz de ver outro qualquer a seguir, precisando de "digerir" a experiência, dando tempo inclusivamente ao inconsciente, ao trabalho da incorporação, assim quando venho de uma viagem onde aprendi muita coisa nova preciso de pensar sobre ela, de "senti-la", de tornar "meus" a posteriori os lugares por onde, a correr, passei. Este blogue é um bom meio para o fazer, pois também não tenho todo o tempo de mundo... infelizmente as férias não são eternas e a reforma ainda não está à porta.
O saltitar de experiência em experiência sem pensar demais pode ser revitalizador, refrescante, comum até em muitas pessoas, mesmo por opção consciente. É como esta gente que diz que quer é praia e um livro que a não obrigue a pensar muito durante as férias... por mim, nunca percebi o que é isso de "livros de verão", como se fossem perfumes...). Ser reflexivo em demasia porventura inibe-nos em muita coisa... mas, a maior parte das vezes, e no meu caso, para não me sentir aquele estúpido turista demasiado "massificado", preciso de ler algo sobre os sítios que visitei, e que assim revisito, dando-lhes um sentido. Não há nisto nenhum preconceito "intelectual" de superioridade. Nestas coisas, como no resto, temos de respeitar a idiossincrasia de cada indivíduo, o seu direito a escolher, que é a coisa mais sagrada que temos, a nossa autonomia. Como seres mortais, mergulhados no mundo (no sentido de Heidegger) e conscientes da sua finitude, reflexão e vida prática não estão em nós separadas, num mentalismo artificial, mas embutidas uma na outra: esse dualismo entre projecto e execução não tem sentido.
Por isso uma viagem é também o que eu penso e escrevo sobre ela, os escritores que eu vou "desenterrar" a propósito dela... em suma, a memória dela que eu irei construindo (mais até do que "re-construindo"), nesse fluxo permanente da vida e do estabelecimento de "verdades" que estão sempre entre a realidade e a ficção, ou seja, que pertencem ao domínio do propriamente humano, o simbólico.

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