domingo, 19 de agosto de 2007

Tempo

Sendo a existência humana um transcurso entre o nascimento e a morte (um nascimento não escolhido e uma morte inevitável) o seu carácter trágico é óbvio. A vida é uma economia (uma gestão de recursos, uma tomada de opções de acção) entre o nascimento e a morte, sendo que a primeira parte dela é em larga medida ligada à obtenção de uma autonomia no sujeito que lhe permita fazer escolhas próprias (com tudo o que ilusório e/ou contingente tais escolhas têm).
Parece que, ao contrário de Deus, do Deus cristão, que criou o mundo por sua vontade, as nossas escolhas são muito condicionadas, podendo pensar-se que a sociedade nos inculca a ideia de que tomamos a decisão por nós para melhor nos con-fundir com essa decisão (ilusão da identidade fixa). Nenhum indivíduo pode existir ou sobreviver sozinho, sendo portanto a comunidade algo de constitucional ao ser humano. O empreendedorismo e a sua ideologia, podendo vir da teologia cristã (ao contrário do universo clássico, estático, o universo cristão é aquele em que Deus tomou a iniciativa de criar o mundo, abrindo assim um precedente para a acção humana), repousam evidentemente na ilusão (ou na ideologia que querem fazer passar) de que cada ser humano pode autonomamente tomar decisões sobre o seu destino. A contingência do dia a dia e as realidades da acção prática, polvilhadas de surpresas, impedem tal ingénua ideia. O nosso campo de acção é muito limitado (... para não problematizar mais assunto tão complexo.
De qualquer modo, o tempo disponível entre as duas barreiras, a do nascimento e a da morte, é o tempo da economia. E nessa economia têm lugar todas as lutas, porque se trata do bem precioso por excelência (os ingleses dizem que o tempo é dinheiro, mas na verdade quem criou o tempo, o seu valor supremo, foi o dinheiro, foi a economia monetária e as leis humanas que a regem e que regulam a distribuição de poderes dentro das comunidades).
O modo como cada um gere o seu tempo em relação com os outros é capital. Numa vida acelerada, é propriamente a vida que acaba por se evacuar de qualquer sentido, conduzindo ao automatismo (máquina como modelo do homem da sociedade industrial); é a construção da memória e da consciência de si que é "alterada".
Uma pessoa que tem de estar numa atenção vigilante permanente não é uma pessoa, é uma máquina.
Quem nos interrompe continuamente com comunicações, raramente é para nos comunicar algo de bom, a boa nova, a dádiva. A comunicação social, como se diz, alimenta-se de desgraças e atinge-nos quando nos sentimos atingíveis pela sua ameaça.
Tempo, ausência de pontualidade, ausência de programa, deambulação e descoberta, estão interligados - e são bens preciosos.
Por isso esta sociedade é tão hipócrita: apela constantemente a nossa atenção para termos atenção a isto e aquilo em função dos nossos direitos e deveres, e na verdade está apenas a condicionar-nos, a tirar-nos tempo, a estabelecer a economia da nossa vida. A publicidade promete-nos viagens e paraísos à Robinson Crusoé... em ilhas apilhadas deles, a quem já vendeu o pacote... mas todos nos deixamos ir, num misto de conformismo e nostalgia.
Parar e só atender ao essencial. Gerir o tempo sem intimidações de qualquer espécie. Gerir o medo, os sintomas, as ameaças. E continuar, criando ilhas de tempo fora do tempo.
As formas de comunicação rápida e diferida, que não nos interrompem, são bem mais benévolas do que as que se apresentam sob forma sonora de apelo e obrigam ao atendimento imediato.
Aquele que se sente compelido a responder já a uma mensagem (quer dizer, cujo desejo de confundiu com o desejo de ouvir o outro, seja qual for, para se sentir a existir) perdeu-se a si mesmo. Há uma nova cultura que está a nascer daí, e que é inquietante. Cultura de extrema mobilidade e portatibilidade, que nos roubará o pouco tempo livre que ainda nos resta. Ou não?... pode ser que me engane, porque em geral novas tecnologias, sendo formas de constrangimento, também permitem fugas e a criação de novas eco-economias de viver.

Sobre esta "cultura móvel" ("Mon portable, c' est moi"), a revista francesa "Sciences Humaines", que acho muito útil, e compro todos os meses, publicou um artigo giro (título acima) no número de Agosto-Setembro deste ano, pp.24 a 28. Aconselho.

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