segunda-feira, 20 de agosto de 2007

CAMA FEITA

Por razões mais que evidentes, a cama é uma peça de mobiliário fundamental, nuclear, das nossas casas.
Mas não precisa de ser "feita" sempre daquela maneira que as nossas mães queriam e nos ensinaram, obcecadas com o arrumo da casa, ou seja, com uma certa ordem doméstica que para elas representava a regra, a estabilidade, e, como foi o meu caso (a minha mãe nunca foi empregada), parte da razão das suas vidas: o "tomar conta da casa". O tempo dos "chefes de família" era também o das "fadas do lar" ou "donas de casa". Não tenho nostalgia desses tempos passados, com toda a franqueza, como aliás não tenho excessiva nostalgia do passado (meu ou em geral). Dediquei-me sempre a meu modo à história porque queria entender o presente, a sua historicidade, como é óbvio.
Uma cama bem feita, bem decorada, bem armada, pode ser uma obra de arte ou o cúmulo do kitsch. Aliás, nada revela melhor quem somos (ou quem julgamos ser) do que a forma (quase automática ou inconsciente) como organizamos o nosso espaço.

Para mim, a mania obsessiva de "fazer a cama", logo de manhã ao levantar, recolocando toda aquela pirâmide de almofadas e transformando a intimidade dos lençóis em qualquer coisa que outros, estranhos à casa, podem ver e onde se podem sentar, é um tema interessante. O modo como as pessoas agenciam a sua casa como um microcosmo e, até certo ponto, como um museu. Um espaço de representação de si para si mesmas e para os outros.
É para isto que serve ser arqueólogo: para estar atento à semiologia das pequenas coisas.
Nada é obrigatório ou natural, a não ser o que a lei (com a sua componente contingente, histórica, sempre em mutação) obriga.
Por que se obrigam tanto as pessoas a uma ordem das mais pequenas coisas?... O assunto como sabemos foi tratado pelos mais diferentes autores.
É esta micro-morfologia do quotidiano que me interessa: é também com ela que se pode trabalhar em poesia, quer dizer, construir objectos textuais que transformem uma cama feita em algo que é... uma cama feita.
Se não for assim, deixamos o senso comum ou os sentidos obrigatórios (esta espécie de legislação incorporada) "fazer-nos", todos os dias, "a cama"... e ter sobre nós um poder enorme.

2 comentários:

sr. grauuu disse...

É através de fazer a cama e de todas as outras coisa que somos de facto, que existimos e vivemos.
Porque "nascemos para existir, não para conhecer; para ser, não para nos afirmarmos" Emile Cioran

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado pela citação de tão excelente autor, que admiro quesde que em novo li "Précis de Décomposition".