Vivemos hoje em dia numa sociedade codificada. A transformação que se deu, tão súbita e brutal, não é perceptível aos mais novos, que já nasceram ou pelo menos acederam à “idade da razão” dentro deste novo ambiente. O digital substituindo o analógico, o automatismo (por vezes com o seu carácter irreversível), acentuando a pontualidade e suplantando o “artesanal” e a flexibilidade dos antigos sistemas, a relação a distância, com pessoas sem rosto, substituindo a relação directa, incluída numa situação de vivência global. O virtual a mesclar-se e a fazer parte do real.
Pins, puks, passwords, usernames, etc., etc., como formas de mediação entre nós e a acção, tornando-a mais distante do contexto de relação do que chamávamos vida de todos os dias, em que lidávamos com pessoas, embora delas pudéssemos ter uma imagem mais funcional do que humana. Ou seja, o paradigma da máquina já há muito orienta os "sistemas de racionalização" modernos. Mas essa própria máquina, estruturalmente mudou, é de um tipo novo e invasor, medeia tido. Não só estamos numa sociedade dos media; estamos numa sociedade em que tudo é mediado, e entre nós e o objectivo estão "de permeio" uma série de automatismos e de códigos, de regras que em geral são lineares, isto é, não atingiram (ainda?) a sofisticação da capacidade humana. Por exemplo, ainda não temos aviões no ar sem pilotos nem carros a circular sem condutores. Tenho pouco jeito para ficção científica, mas muito do que o foi já é hoje uma realidade e às vezes até uma banalidade.
No próprio vocabulário quotidiano essa procura de "eficácia" se nota: prova superada, conseguiu com sucesso, obstáculo ultrapassado, etc. A vida tornou-se numa remoção de obstáculos por sujeitos impacientes. Às vezes angustiados no cerne da sua própria identidade: perderam o código. Não memorizaram a password.
Escusado será dizer que isto lembra um pouco os sistemas militares ou policiais que desde sempre se regeram por modos de identificação, de transmissão de comunicação e de comando codificados.
Mas também é interessante reflectir em toda a história como um "desenvolvimento" de sistemas de mediação, desde a chamada arte rupestre até à escrita, etc. Ou seja, a complexificação liga-se ao maquínico, ao estandardizado, ao aumento de escala, ao desenvolvimento da globalização versus as relações de proximidade, de vizinhança, de pertença ao local. Esta sociedade deslocalizou-nos e tornou-nos uma abstracção.
Eu sou essencialmente, para o Estado e para o poder financeiro e de seguradoras (para o capital, de que ele - Estado ou, cada vez mais, poderes supra-estatais - é a expressão última e a moldura), um conjunto de números: Bilhete de identidade, cartão de contribuinte, número da segurança social, cartão de débito/crédito, cartão da companhia de seguros, número de carta de condução, etc, etc.
Diz-me o teu código, dir-te-ei quem és. O nome é de somenos importância. Aliás, há muitos nomes iguais!
Tens um problema? Diz-me o número.
Esqueceste-te da tua password? Estás tramado.
Não és portador (reparem na palavra) dos documentos necessários? Já estás excluído, não entras, não embarcas, não resolves, volta outro dia. Mas você conhece-me: meu caro senhor, tenha paciência, temos de tratar todos por igual. Eu aliás sou novo aqui, cinjo-me às regras; tive um curso de formação de atendimento. Espere na fila. Mas qual? Tem de tirar primeiro uma senha na máquina com o código. Olhe para o ecrã: lá verá anunciado o seu momento de se aproximar do balcão na altura própria, e o tempo de espera calculado.
Entretanto um amigo, à porta de minha casa, de telemóvel (felizmente tinha crédito): é pá, ajuda-me, estou à porta da tua casa mas não sei em que botões tocar. Estão em baixo na porta do prédio: ah, deixa-me cá ver então o código. Não te preocupes, eu digo-te, é mais fácil.
Um dia, até os autores terão um código para assinar as suas obras, o que talvez tenha um package associado: registando-se, passarão a poder entrar no sistema codificado e a controlar se lhes fotocopiam ou plagiam as obras, etc. De modo que um livro pode ter a seguinte capa (cheia de imagens atraentes, claro):
w#42gkhgl.kgjkbb (autor)
VBGR98098098908ngz< (título)
aSDXC85 (editor)
etc.
Vai facilitar imenso.
Pins, puks, passwords, usernames, etc., etc., como formas de mediação entre nós e a acção, tornando-a mais distante do contexto de relação do que chamávamos vida de todos os dias, em que lidávamos com pessoas, embora delas pudéssemos ter uma imagem mais funcional do que humana. Ou seja, o paradigma da máquina já há muito orienta os "sistemas de racionalização" modernos. Mas essa própria máquina, estruturalmente mudou, é de um tipo novo e invasor, medeia tido. Não só estamos numa sociedade dos media; estamos numa sociedade em que tudo é mediado, e entre nós e o objectivo estão "de permeio" uma série de automatismos e de códigos, de regras que em geral são lineares, isto é, não atingiram (ainda?) a sofisticação da capacidade humana. Por exemplo, ainda não temos aviões no ar sem pilotos nem carros a circular sem condutores. Tenho pouco jeito para ficção científica, mas muito do que o foi já é hoje uma realidade e às vezes até uma banalidade.
No próprio vocabulário quotidiano essa procura de "eficácia" se nota: prova superada, conseguiu com sucesso, obstáculo ultrapassado, etc. A vida tornou-se numa remoção de obstáculos por sujeitos impacientes. Às vezes angustiados no cerne da sua própria identidade: perderam o código. Não memorizaram a password.
Escusado será dizer que isto lembra um pouco os sistemas militares ou policiais que desde sempre se regeram por modos de identificação, de transmissão de comunicação e de comando codificados.
Mas também é interessante reflectir em toda a história como um "desenvolvimento" de sistemas de mediação, desde a chamada arte rupestre até à escrita, etc. Ou seja, a complexificação liga-se ao maquínico, ao estandardizado, ao aumento de escala, ao desenvolvimento da globalização versus as relações de proximidade, de vizinhança, de pertença ao local. Esta sociedade deslocalizou-nos e tornou-nos uma abstracção.
Eu sou essencialmente, para o Estado e para o poder financeiro e de seguradoras (para o capital, de que ele - Estado ou, cada vez mais, poderes supra-estatais - é a expressão última e a moldura), um conjunto de números: Bilhete de identidade, cartão de contribuinte, número da segurança social, cartão de débito/crédito, cartão da companhia de seguros, número de carta de condução, etc, etc.
Diz-me o teu código, dir-te-ei quem és. O nome é de somenos importância. Aliás, há muitos nomes iguais!
Tens um problema? Diz-me o número.
Esqueceste-te da tua password? Estás tramado.
Não és portador (reparem na palavra) dos documentos necessários? Já estás excluído, não entras, não embarcas, não resolves, volta outro dia. Mas você conhece-me: meu caro senhor, tenha paciência, temos de tratar todos por igual. Eu aliás sou novo aqui, cinjo-me às regras; tive um curso de formação de atendimento. Espere na fila. Mas qual? Tem de tirar primeiro uma senha na máquina com o código. Olhe para o ecrã: lá verá anunciado o seu momento de se aproximar do balcão na altura própria, e o tempo de espera calculado.
Entretanto um amigo, à porta de minha casa, de telemóvel (felizmente tinha crédito): é pá, ajuda-me, estou à porta da tua casa mas não sei em que botões tocar. Estão em baixo na porta do prédio: ah, deixa-me cá ver então o código. Não te preocupes, eu digo-te, é mais fácil.
Um dia, até os autores terão um código para assinar as suas obras, o que talvez tenha um package associado: registando-se, passarão a poder entrar no sistema codificado e a controlar se lhes fotocopiam ou plagiam as obras, etc. De modo que um livro pode ter a seguinte capa (cheia de imagens atraentes, claro):
w#42gkhgl.kgjkbb (autor)
VBGR98098098908ngz< (título)
aSDXC85 (editor)
etc.
Vai facilitar imenso.
3 comentários:
É o matrix no seu melhor.
Ya
V.
O matrix inspirou-se, em parte, na manga japonesa, que há anos que se debruça sobre o tema: máquina vs humano.
Não foi novidade, pelo menos, para alguns.
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