domingo, 3 de junho de 2007

Rompeu-se o laço social mínimo

Um dos aspectos da nossa sociedade contemporânea é ser uma sociedade da vigilância e da suspeita, e da auto-vigilância (interiorização do sentimento de culpa, auto-culpabilização pela falha e pelo erro, etc). Vigilância exterior, controlo de tudo o que fazemos. Os burocratas precisavam de ler Lacan, ou até mais prosaicamente um livro de divulgação sobre o desejo ou a psicanálise: sem "pontos de fuga" (para o interior ou exterior) sem sonho nem momentos de distensão é impossível sobreviver e adequar-se a qualquer sistema que seja. Mas isso - relativamente aos burocratas - seria ter a ingenuidade de que os livros lhes provocariam alguma coisa...
Porque as regras, quando consensualizadas, não são um elemento de falta de liberdade, mas, evidentemente, o seu contrário: eu tenho de ter uma moldura clara, ESTABILIZADA, para exercer a minha liberdade, a minha criatividade, para ser um ser social. A permanente fluidez das regras, ao serviço de interesses poderosos e longínquos, abstractos, cria uma nova sociedade que já não é democrática, como muitos autores têm justamente denunciado. É uma sociedade cínica onde todos cumprimos regras ser crer nelas - apenas para que não nos macem demasiado.
Uma outra característica actual é a dos automatismos, largamente relacionados com a circunstância da irreversibilidade. Ou seja, o indivíduo vê-se, a uma velocidade acelerada, preso em situações inesperadas que já não pode corrigir, como quando se engana na "selagem" de um documento pela internet e já não pode voltar atrás. A não capacidade de auto-correcção é de inspiração fascista: inscreve o indivíduo para sempre no estigma, na situação de erro, ou seja, fora do optimismo mínimo, da auto-estima e da crença partilhada que constituem (constituíam?) o laço social.
Uma outra característica da sociedade em que vivemos , evidentemente, é a do indivíduo narcísico levado a um extremo patológico. É hoje extremamente difícil gerir uma situação psicológica de equilíbrio, porque ao indivíduo permanentemente carente aparecem outras pessoas em carência, num jogo de desabafos demencial. Tanto que as pessoas avisadas já não desabafam com ninguém: isso iria logo despoletar do outro lado ou um chorrilho de outras queixas ou um fechamento total, que para muitas pessoas é a forma (quase louca) de se tentarem equlibrar, ou pelo menos sobreviver.
Cada pessoa vive para seu lado, imaginando que o seu projecto (que pode ser a ausência de projecto, claro) é melhor que qualquer outro, ou pelo menos o único que lhe é adequado. Cada indivíduo sente-se culpado por "não ter sucesso", interiorizando (incorporando) noções correntes de sucesso e sendo extremamente permeável ao senso-comum, mesmo quando dispõe de capacidades que supostamente lhe permitiriam exercer um certo descentramento.
Claro que as pessoas que dispõem de algum capital (de qualquer tipo) ainda vão gerindo este desequilíbrio... em vários planos da vida... mas não sei por quanto tempo. Vão criando ilhas de fuga temporária, como colóquios e congressos, viagens, etc., onde se encontram pessoas novas. E, tal como pela internet, prometem tudo, abrem-se umas às outras, num rodopio de promessas que só muito parcialmente (se alguma vez) se podem cumprir, porque são do domínio da fantasia.
Muitas coisas que diz Gilles Lipovetsky (filósofo francês mediático que já veio várias vezes a Portugal e tem diversos livros publicados cá) são ambíguas. Ele publicou ontem (sábado) uma entrevista no Público (P2 - p.5) em que dava uma no cravo e outra na ferradura... a pessoa tem de vender, tem de ter impacte nos media, se quiser continuar a cultivar o seu ego por alguma razão descompensado. Aparecem agora muito estes gurus que são porta-vozes da redenção, mas de facto alimentam ainda mais o sistema do ruído. Sobre tudo são assertivos, numa pedagogia sem falhas. O que é suspeito... e serve maravilhosamente o sistema.

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