Mais cedo ou mais tarde teria, também eu, de me confrontar contigo. Com esta sombra quase irrespirável que paira aqui dentro. Que nem a luz das janelas, nem a curiosidade de quem ao fundo abriu a porta e segura a cortina, conseguem desvelar.
Que sombra é esta que se depositou no tecto, que parece pender daí sobre toda a sala, num arremedo de estalagtites, disfarçadas de candeeiros? Em que estranho compartimento, flutuando no tempo e no espaço, viajamos aqui, parados para sempre?
Que tela é esta, pintor, de que só nos mostras a armação, como se nos fosse impossível ver o mais importante da missão que te foi atribuída, não tanto para repararmos em ti, que nos fitas, mas para nos sugerires que a obra é sempre coisa inacabada, impossível, inacessível ao olhar?
Ao mirar-nos, tão fixamente, estás-nos a anunciar simultaneamente o desejo de nos sentirmos em foco e a nossa irremediável ausência. E não nos venhas dizer que estamos reflectidos no espelho do fundo, que somos nós os retratados, que somos os reis de todas as Espanhas. Porque de facto, neste cruzamento infinito de imagens e de olhares e de espelhos, nós estamos confinados na nossa ridícula situação de seres que vêem, e não entendem. Porque quem vê algo, está condenado a querer ver sempre mais; e quem tem o poder, nem que seja o poder de se acercar da tela, fica sempre insatisfeito.
Tu jogas com o descentramento, és imensamente hábil ao pôr a ridicularia da infanta e suas criadas em primeiro plano, com a infanta fitando-nos toda coquette, como se se estivesse ela própria a mirar no espelho do nosso olhar.
Nesta paragem, nesta sombra, tu conseguiste fixar a vanidade do mundo, a anãzinha e o cão, a luz que inunda e ilude os poderosos. E talvez que o carácter absorto do animal, reflectindo sobre si mesmo, seja da mesma natureza dos candeeiros que se fixam ao tecto, presos à sua tarefa de estarem no chão da sala invertida.
Experimenta, pois, rodar a imagem cento e oitenta graus, e verás como ela nos parece muito mais verosímil, muito mais real, com as figuras a caírem lentamente, como flocos desprendidos pela atmosfera, para o enorme chão escuro da história, onde tudo envelhece e por fim se perde.
Ganharão muito mais sentido, e tema, as pinturas que ornamentam as paredes. Aproxima-te então de cada uma delas, e percorre as paisagens. Verás as figuras presas ao tecto como bonecos, a sua estranha iluminação de feira, a comédia da vida.
As roupas, os cabelos armados, os gestos, os olhares, os movimentos, os reflexos. Tudo a cair do próprio sem-sentido em que parece assentar.
Vai ao Museu do Prado e explica-lhes que já é altura de se pôr este quadro ao contrário, de caminharmos finalmente pela sala dentro, sobre a sua verdadeira sombra.
Que sombra é esta que se depositou no tecto, que parece pender daí sobre toda a sala, num arremedo de estalagtites, disfarçadas de candeeiros? Em que estranho compartimento, flutuando no tempo e no espaço, viajamos aqui, parados para sempre?
Que tela é esta, pintor, de que só nos mostras a armação, como se nos fosse impossível ver o mais importante da missão que te foi atribuída, não tanto para repararmos em ti, que nos fitas, mas para nos sugerires que a obra é sempre coisa inacabada, impossível, inacessível ao olhar?
Ao mirar-nos, tão fixamente, estás-nos a anunciar simultaneamente o desejo de nos sentirmos em foco e a nossa irremediável ausência. E não nos venhas dizer que estamos reflectidos no espelho do fundo, que somos nós os retratados, que somos os reis de todas as Espanhas. Porque de facto, neste cruzamento infinito de imagens e de olhares e de espelhos, nós estamos confinados na nossa ridícula situação de seres que vêem, e não entendem. Porque quem vê algo, está condenado a querer ver sempre mais; e quem tem o poder, nem que seja o poder de se acercar da tela, fica sempre insatisfeito.
Tu jogas com o descentramento, és imensamente hábil ao pôr a ridicularia da infanta e suas criadas em primeiro plano, com a infanta fitando-nos toda coquette, como se se estivesse ela própria a mirar no espelho do nosso olhar.
Nesta paragem, nesta sombra, tu conseguiste fixar a vanidade do mundo, a anãzinha e o cão, a luz que inunda e ilude os poderosos. E talvez que o carácter absorto do animal, reflectindo sobre si mesmo, seja da mesma natureza dos candeeiros que se fixam ao tecto, presos à sua tarefa de estarem no chão da sala invertida.
Experimenta, pois, rodar a imagem cento e oitenta graus, e verás como ela nos parece muito mais verosímil, muito mais real, com as figuras a caírem lentamente, como flocos desprendidos pela atmosfera, para o enorme chão escuro da história, onde tudo envelhece e por fim se perde.
Ganharão muito mais sentido, e tema, as pinturas que ornamentam as paredes. Aproxima-te então de cada uma delas, e percorre as paisagens. Verás as figuras presas ao tecto como bonecos, a sua estranha iluminação de feira, a comédia da vida.
As roupas, os cabelos armados, os gestos, os olhares, os movimentos, os reflexos. Tudo a cair do próprio sem-sentido em que parece assentar.
Vai ao Museu do Prado e explica-lhes que já é altura de se pôr este quadro ao contrário, de caminharmos finalmente pela sala dentro, sobre a sua verdadeira sombra.
voj 2007
1 comentário:
Viajei no tempo com tão belas palavras
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