Seria muito interessante escrever um livro, de raiz (seria preciso um ano sabático...) em que se perspectivasse a "arqueologia vista de fora", na sequência do que fez Julian Thomas no seu livro "Archaeology and Modernity" (Londres, Routledge, 2004). Neste livro encontramos muitas coisas que já (mais ou menos) sabíamos, e que depois de as lermos nos parecem evidentes: que a arqueologia é um produto da modernidade, que ela emerge no séc. XIX conjuntamente com todo um envolvimento de técnicas, de ideologias, de economias, de formas de olhar o mundo, etc, que marcam o domínio da Europa e da nossa cultura, e ao mesmo tempo o começo do seu declínio e do seu descentramento (em favor dos EU, a partir do séc. XX). A industrialização, a modernização, a ascensão definitiva da burguesia e do capitalismo, etc - tudo realidades sem as quais a arqueologia tal como a vemos hoje seria impensável...
Sabíamos isso, mas não sabíamos... porque estava sub-liminar, não inteiramente explorado. E às vezes, quando alguém faz ou diz algo inteligente em que logo nos revemos, cometemos a injustiça de dizer, como que a desvalorizar: mas é óbvio! Não, não, é óbvio, tornou-se óbvio, depois dessa pessoa o dizer, o estruturar através de toda uma visão e de todo um trabalho, e às vezes através de uma simples dica que incorporámos sem nos darmos conta. É aqui, ao nível do inconsciente, que as coisas, as crenças, os "adquiridos" se jogam... e em que tantos "discípulos", instalados nesses adquiridos, deixam de se lembrar dos mestres que lhes revelaram pela primeira vez o que agora é para todos óbvio... Há que reconhecer o mérito de quem tem a intuição de um tema novo, quer dizer, de uma combinatória de fios numa teia diferente, numa malha que permite sentir e experienciar de modo diferente, que nos passa a ser familiar, como se tivesse estado sempre ali.
Ora é curioso verificar que as transformações que permitem à arqueologia emergir e afirmar-se no séc. XIX e XX são as mesmas que levam ou estão implicadas no aparecimento da fotografia, na emergência do cinema, no carácter subversivo (no bom sentido, claro, como aberturas para mundos insuspeitos, e não tanto em certas aplicações infelizes) da psicanálise e do marxismo, no colonialismo europeu e sua queda (e substituição por formas mais sofisticadas), no desenvolvimento dos transportes, na "libertação" do corpo e das "mulheres" como seres sociais nos seus múltiplos episódios e percalços, na emergência dos fascismos e sua evolução pós-moderna para formas cada vez mais refinadas e interiorizadas de atitudes de exclusão e de promoção de elites (com o apoio de tecnologias de vigilância e de tratamento automático de informação), na atitude gráfica e na valorização da imagem (sem a qual a observação e representação científicas seriam impensáveis, como acontece por exemplo na medicina), no desenvolvimento dos media, na invenção e mercantilização da "informação" e na informática, na passagem progressiva do turismo de elites a um turismo de massas, na racionalização (e tendencial automatização) de tudo, na obsessão museográfica e arquivística (lacar e guardar a realidade), na ideia de protecção da natureza e de equilíbrio ecológico, na globalização e na progressiva consciência de uma inter-relação à escala planetária, no desenvolvimento dos transportes e comunicações (compressão do espaço/tempo, aceleração), na transformação do pitoresco em recurso, na ideia de ordenamento e planeamento generalizado (incluindo o território), na higiene pública e na ideia de paisagem, no desenvolvimento das "instituições totais" e em particular das de encarceramento de que falam Foucault e Goffman, na ideia de estado-nação e na de Estado-providência, etc., etc., etc.
Ideias soltas, escritas a correr, mas que seria importante, fulcral mesmo desenvolver por quem quisesse e pudesse pegar-lhes... pequenas notas soltas de quem entrevê os fios, as conexões, as ligações e paradoxos, as historicidades disto todo, sem ter tempo, dramaticamente, para as pôr em livro.
Ideias que exigiriam uma universidade nova, como organismo de cultura / ciência / aprendizagem, verdadeiramente interdisciplinar, criativa, estimuladora e menos burocrática...
E, a própria atitude de querer ver de fora a arqueologia, porquê, para que serve? Não será perda de tempo, atitude pedante de quem se quer mostrar culto, e por exemplo não se sujar no contacto com o mundo material? É aparentemente mais cómodo ler um livro à fresca do que suar coberto de pó numa escavação...
É obviamente porque assim uma pessoa pode ver-se com mais nitidez a si própria, encarar com distância as suas rotinas, perceber até o estatuto social e o papel mitologizante que muitas arqueologias cumprem.
E perdemos tanto tempo com minudências... quando os livros estão por escrever, o público, os estudantes e os editores mesmo a pedir uma obra assim... porém, não há tempo!
Deixaram-nos pensar, mas retiraram-nos o tempo para argumentar e estruturar o nosso pensamento. E não foi nenhum complot, nem se deve a quaisquer burocratas sádicos em particular. Não há um centro de onde emane o "mal"; mal e "bem" convivem em todos nós, arrastados por um processo inédito de que somos coniventes sem saber como fazer face a este tsunami...
Eles, burocratas, administrativos, sobretudo os mergulhados numa rotina oca e sem estímulos, são também vítimas, tal como os infelizes que só vivem para a notoriedade ou para ganhar dinheiro. Estes julgam - apenas julgam - que estão muito bem, a curtir à grande, e se calhar até se satisfazem assim - mas iludem-se, ou estão embotados na sua sensibilidade, tenham paciência. É um juízo moral, sim.
Porém, no mar inquietante em que vivemos, alguém tem de conduzir o Titanic, enquanto ele não vai contra algum iceberg, e a elegante festa prossegue no salão dos alienados, que somos todos.
Bon voyage!
Foto: Pascal Renoux
Fonte: http://www.pascalrenoux.com
Sabíamos isso, mas não sabíamos... porque estava sub-liminar, não inteiramente explorado. E às vezes, quando alguém faz ou diz algo inteligente em que logo nos revemos, cometemos a injustiça de dizer, como que a desvalorizar: mas é óbvio! Não, não, é óbvio, tornou-se óbvio, depois dessa pessoa o dizer, o estruturar através de toda uma visão e de todo um trabalho, e às vezes através de uma simples dica que incorporámos sem nos darmos conta. É aqui, ao nível do inconsciente, que as coisas, as crenças, os "adquiridos" se jogam... e em que tantos "discípulos", instalados nesses adquiridos, deixam de se lembrar dos mestres que lhes revelaram pela primeira vez o que agora é para todos óbvio... Há que reconhecer o mérito de quem tem a intuição de um tema novo, quer dizer, de uma combinatória de fios numa teia diferente, numa malha que permite sentir e experienciar de modo diferente, que nos passa a ser familiar, como se tivesse estado sempre ali.
Ora é curioso verificar que as transformações que permitem à arqueologia emergir e afirmar-se no séc. XIX e XX são as mesmas que levam ou estão implicadas no aparecimento da fotografia, na emergência do cinema, no carácter subversivo (no bom sentido, claro, como aberturas para mundos insuspeitos, e não tanto em certas aplicações infelizes) da psicanálise e do marxismo, no colonialismo europeu e sua queda (e substituição por formas mais sofisticadas), no desenvolvimento dos transportes, na "libertação" do corpo e das "mulheres" como seres sociais nos seus múltiplos episódios e percalços, na emergência dos fascismos e sua evolução pós-moderna para formas cada vez mais refinadas e interiorizadas de atitudes de exclusão e de promoção de elites (com o apoio de tecnologias de vigilância e de tratamento automático de informação), na atitude gráfica e na valorização da imagem (sem a qual a observação e representação científicas seriam impensáveis, como acontece por exemplo na medicina), no desenvolvimento dos media, na invenção e mercantilização da "informação" e na informática, na passagem progressiva do turismo de elites a um turismo de massas, na racionalização (e tendencial automatização) de tudo, na obsessão museográfica e arquivística (lacar e guardar a realidade), na ideia de protecção da natureza e de equilíbrio ecológico, na globalização e na progressiva consciência de uma inter-relação à escala planetária, no desenvolvimento dos transportes e comunicações (compressão do espaço/tempo, aceleração), na transformação do pitoresco em recurso, na ideia de ordenamento e planeamento generalizado (incluindo o território), na higiene pública e na ideia de paisagem, no desenvolvimento das "instituições totais" e em particular das de encarceramento de que falam Foucault e Goffman, na ideia de estado-nação e na de Estado-providência, etc., etc., etc.
Ideias soltas, escritas a correr, mas que seria importante, fulcral mesmo desenvolver por quem quisesse e pudesse pegar-lhes... pequenas notas soltas de quem entrevê os fios, as conexões, as ligações e paradoxos, as historicidades disto todo, sem ter tempo, dramaticamente, para as pôr em livro.
Ideias que exigiriam uma universidade nova, como organismo de cultura / ciência / aprendizagem, verdadeiramente interdisciplinar, criativa, estimuladora e menos burocrática...
E, a própria atitude de querer ver de fora a arqueologia, porquê, para que serve? Não será perda de tempo, atitude pedante de quem se quer mostrar culto, e por exemplo não se sujar no contacto com o mundo material? É aparentemente mais cómodo ler um livro à fresca do que suar coberto de pó numa escavação...
É obviamente porque assim uma pessoa pode ver-se com mais nitidez a si própria, encarar com distância as suas rotinas, perceber até o estatuto social e o papel mitologizante que muitas arqueologias cumprem.
E perdemos tanto tempo com minudências... quando os livros estão por escrever, o público, os estudantes e os editores mesmo a pedir uma obra assim... porém, não há tempo!
Deixaram-nos pensar, mas retiraram-nos o tempo para argumentar e estruturar o nosso pensamento. E não foi nenhum complot, nem se deve a quaisquer burocratas sádicos em particular. Não há um centro de onde emane o "mal"; mal e "bem" convivem em todos nós, arrastados por um processo inédito de que somos coniventes sem saber como fazer face a este tsunami...
Eles, burocratas, administrativos, sobretudo os mergulhados numa rotina oca e sem estímulos, são também vítimas, tal como os infelizes que só vivem para a notoriedade ou para ganhar dinheiro. Estes julgam - apenas julgam - que estão muito bem, a curtir à grande, e se calhar até se satisfazem assim - mas iludem-se, ou estão embotados na sua sensibilidade, tenham paciência. É um juízo moral, sim.
Porém, no mar inquietante em que vivemos, alguém tem de conduzir o Titanic, enquanto ele não vai contra algum iceberg, e a elegante festa prossegue no salão dos alienados, que somos todos.
Bon voyage!
Foto: Pascal Renoux
Fonte: http://www.pascalrenoux.com
1 comentário:
Como se pode ver de fora uma "coisa invisível"??!!!
Enviar um comentário