quarta-feira, 12 de setembro de 2007

joaninha

Foto: j. s.


quase no fim do verão, uma joaninha veio aqui pousar. recorda-te da tua infância, da superfície dos campos, do dorso das colinas, do seu suave tacto, enobrecido pelas cores e brilhos, como uma grande almofada de luxo, macia no seu cetim ou seda, onde um corpo pode enfim encostar-se e entregar-se ao sono com a lentidão com que deve consagrar-se ao amor.
aparição longínqua, súbita, como se tivesse nascido sobre a mão, saído de sob a pele, revelando as imensas possibilidades sempre a aparecer, nas coisas mais simples, quando os campos lavrados de longe semelham quadros, composições de sulcos traçadas por unhas de grandes felinos, debruadas de tons, tapetes estendidos uns a seguir aos outros sobre o deserto, cobrindo as paredes beiges de terra, dando cor, sabor e odor ao mundo. de forma muito forte, instantânea.
de onde vens, para onde te diriges? ou o teu destino - a tua missão - é estar de costas, sempre a passar, sempre a tentar alcançar as árvores que se afastam à medida que caminhas, como se quisesses deitar-te à sombra delas, e aí, de cabeça finalmente recostada sobre as almofadas nobres, encontrar o que buscas.
peço-te: encosta-te perto da realidade, chega à imagem muito ampliada desta joaninha, até que toda a tua visão seja por ela preenchida, e confunda as suas pequenas pontuações com as primeiras estrelas do dia, ou com o fulgor de olhares tão fascinantes que toda a tua vida apenas os imaginaste. cintilantes como é todo o universo à noite visto por aquele que se deita no deserto, sobre uma almofada de luxo, e olha no absoluto espanto para a aparição do mundo.
pode a poesia, pode o amor, que é que pode afinal resgatar-nos desta ânsia que temos de chegar a um limite, onde nos esperem todos os cavaleiros do apocalipse, todos os monstros contorcidos do fim do mundo, todos os mortos já mortos, e bem assim aqueles que ainda estão vivos e os que estarão para nascer?
uma joaninha entrou hoje inadvertidamente sob a minha lupa de cientista. fui capaz, finalmente, de lhe ver os olhos. e fitou-me atentamente como se eu estivesse a observar-me ao espelho. ou seja, perguntou-me sem nada dizer tudo o que não sei.
ouvi o deserto, quer dizer, o sítio onde imagino que o horizonte finalmente pára. ouvi ao longe o verão a passar. ouvi as ervas dobrando-se sobre o próprio verde. vi a menina a deslizar no seu vestido branco. os camelos começaram a sua longa rota para o outro canto do seu universo. uma voz alta ergueu-se, absolutamente inesperada, rodeada de pontuações brilhantes, como se a almofada de um trono vazio perdesse peso, e levitasse.
perguntei: quem é?
será por ti que esperei todo este tempo?
não sei, a casa ao longe parece esfriar sobre a colina. uma pessoa fica com a mão esticada. o ar em volta torna-se azul. talvez não escapemos a isto, a esta irreversibilidade.
não sei.



Texto: copyright voj 2007 para a j.s.


Foto: Sophie Pawlak
(reprod. aut.)
Página: http://www.ma-nouvelle-vie.net/index.php

2 comentários:

Vitor Oliveira Jorge disse...

Não há comentários prá joaninha?! que tristeza. Ingratos. O artista esforça-se.

Joana Serrado disse...

Ninguem já se interessa por joaninhas. Esta fora de moda. As donzelinhas, libelinhas, louva-a-Deus são talvez uma possibildade de angariar mais comentários.