sábado, 22 de setembro de 2007

sereníssimo, pianíssimo

Foto: Natasha Gudermane
Fonte: http://photo.net/photos/gudermane


não se pode dizer, com firmeza, que algum lado seja aquele em que o júbilo nos invade, nos embebe de forma tão total o corpo e a alma, que não conseguimos mais mexer-nos, transidos.
mesmo quando ao fim do dia nos dirigimos ao sapal - na direcção inversa em que todas as pessoas regressam a casa, aos afazeres, aos encontros, às comidas que as reúnem em volta da mastigação social - não podemos estar certos se a maré sobe ou desce.
se os caranguejos ainda lá estão, entrando e saindo das suas tocas de argila, e se viram para nós o lombo claro, como fazem certos bichos domésticos, confiantes, aqueles com os quais podemos trocar olhares.
não sabemos se está frio, se pelo caminho ainda haverá daquelas flores secas exalando incenso, se as ondas serão mais altas do que a lua, se sobre as dunas aparecerão as figuras dos espectros, negras e alteradas como violoncelistas alados.
tentamos agarrar algo de indefinido que há muito se perdeu como esperança, na verdade erguemos uma pequena taça de nostalgia nas mãos, uma oferenda a nós próprios, com um arrepio de prazer atravessando as pistas interiores, de lado a lado, como bandos de estorninhos que fossem capazes de nos trespassar o corpo desmaterializado, transparente.
tudo o que afinal queremos é dar algum trabalho aos sentidos: a vista, que se concentra na lua enorme, na sua cor alaranjada de vitral; o tacto, que pega na madeira carcomida com a ternura de festejar um velho corpo amado, e falecido; o cheiro, que se inebria sob as palmas, de onde as tâmaras, estranhamente prontas a comer, destilam a sua resina açucarada; o sabor do sal que ficou do banho, nos recôncavos do corpo; o som dos insectos que se entrecruza com o dos violoncelos, uns e outros tocando na nossa memória, produto da orquestra de toda uma vida.
porque é de facto uma imensa história, a que desemboca aqui, nesta frente do mundo em que o corpo se volta para o dia, e sob as suas vestes longas, estendidas até aos pés, já começa qualquer coisa de totalmente diferente.
ao enrolar nas pernas essa saia, para que as sansálias não a pisem, ao sentir a circulação do ar entre esse manto e o corpo, ao perceber como as essências nos saem de detrás das orelhas e dos cabelos, compreendemos a nobreza de estar aqui.
a soberania de não ter nada, de não ter absolutamente ninguém, e no entanto de se caminhar na praia como um imperador que passasse lentamente da sua figura viva, percorrida por veias, para a sua estátua marmórea, iluminada pelas pupilas vazas da eternidade.
quando os solos de violoncelo sobem e descem, vindo por vezes lamber os pés com a sua espuma baixa de ondas já quebradas ao longe, quando as sereias usam de todos os seus artifícios, uma pessoa convence-se finalmente de que a sua beleza está completa.
esse poder extremo, quase divino, enerva o próprio mar, que se agita para tentar vir, com os séculos, abrir brechas no saber soberano, deixar buracos na pedra, enterrá-la mesmo, para que ela um dia volte a aparecer, com os mesmos olhos sereníssimos de um fim de tarde.

voj copyright 2007

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