em fratel, no alto vale do tejo português, havia dantes um rio. as águas eram límpidas, e passavam no interior delas peixes que se moviam tão docemente que pareciam raparigas dormindo. tu e eu conhecemos esse lugar, sabemos como o destruiram. quando nós próprios descíamos juntos a corrente, impulsionados pela força das cachoeiras fortes que vinham de montante, e víamos tudo desfocado pela imensa quietude que nos entrava pelos olhos, e voltava a sair deles para brilhar nas pedras, nos caules, nos seixos redondos, nas arestas do xisto, nas figuras gravadas por toda a parte, há milhares de anos, em quadro gigantesco feito exclusivamente para nós habitarmos. tu sabes desse silêncio abafado por tantos outros silêncios, do vermelho das tulipas quando nos aproximávamos da margem, procurando não perturbar com os nossos pés a exaltação das plantas, o modo como os pólens circulavam no ar ansiosos por atingirem os estames. ali havia só o vermelho e o verde, o sangue e a carne, e toda a natureza se organizava em pares de opostos, e suas infinitas combinações: luz e sombra, rugosidade e aveludado polimento, ocos e volumes, insectos e estrelas, o que ficava parado nas margens e o que seguia com o rio. e estas realidades mudavam constantemente, trocavam de papel umas com as outras, num bailado fluido e musical, pois muitas vezes víamos os peixes a substituir os astros no céu, e a água polvilhada de cintilações celestes. tu às vezes pedias-me: dá-me o vermelho, dá-me o sono que me fará confundir-me com a terra. eu dizia-te: deita-te, debruça-te, levanta-te, dança comigo esta melodia de que trago na mão a linha das notas, esta espiral que desliza pelas margens ao lado do rio, e se fixa nas copas no momento em que a tarde acaba por detrás delas, para se reanimar de novo com a noite, formando búzios e conchas grandes no firmamento. em fratel, quando ainda havia sítios em portugal, quando uma pessoa tomava um comboio tão lento como o rio, mas que subia ao lado dele, no sentido oposto, cheio de sono, e o verão entrava pelas janelas e fazia agitar as cortinas lentas do desejo, inchar as protuberâncias, cobrindo os lábios e a glande de uma cor de tulipa. onde havia uma aldeia em que eu era o senhor engenheiro, acabado de casar contigo graças a umas alianças de plástico compradas no largo do rato, e nos davam a melhor cama e o melhor quarto, desalojando a filha dos donos, que nos ficava a olhar com nostalgia no fundo do corredor enquanto a porta se fechava lentamente. descíamos então ao vale a todas as horas, e havia uns vultos à nossa volta, e era preciso realizar ali algumas tarefas que depois se punham em relatórios, com fotografias, evitando molhá-las da tinta escura que bebíamos em demasia, e que parecia vir do rio, da sua noite, ou nos embriagávamos com as cores do verde que eram a própria essência da paisagem, do vermelho das roupas interiores, do azul celeste denso das águas. isso não fazia parte do currículo, sobretudo os laivos e a cadência lenta de todas as imagens, de todos os odores, de todos os movimentos, em particular quando o corpo finalmente se virava para descansar e se deixar ir, pelas águas, com a certeza de que daria a volta ao rio, em todas as suas dimensões e correntes, acordando numa margem com novas cores, já os corpos deitados noutra posição de juventude, e o sono e a fome sempre saudáveis, sempre contrastantes, emanando uma energia que agora só posso acender na vela perfumada das palavras.
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Foto (reprod. autoriz): Sophie Pawlak
Fonte: http://www.ma-nouvelle-vie.net/index.php
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