Escrever um texto é como qualquer outra tarefa. Pega-se numas palavras – pode ser mulher e pode ser casa, por exemplo – e em duas molas de roupa, e põe-se essas palavras num fio inicial, à vista. A partir daí já se tem um princípio para começar, porque todas as palavras, quando assomam à memória, vêm já ligadas entre si, e podem dançar umas com as outras de modo imprevisível, no seu detalhe, tal como a roupa a secar treme e ondula sempre nos pátios, tocando-se às vezes mutuamente sem aparente intenção. As palavras são como as fotografias, objectivam, precisam o que só intuíamos antes de forma fosca, difusa, e podem ser expostas (os fotógrafos também usam molas para secarem as suas provas).
Tal como cartas, que se desdobram noutras, de forma potencialmente infinita, a casa e a mulher podem ser postas lado a lado, ou misturadas (por exemplo, a casa em que sabemos que está uma mulher dentro, a mulher que, de dentro, vemos espreitar a partir do interior da casa - da sombra em que vive - para o seu exterior, etc.) Nós somos de uma liberdade soberana aqui, podemos fazer todas as conjugações e movimentos, e é mesmo dessas variações, como na música, que, ao contrário de outras tarefas, o nosso prazer se compõe.
Há porém, como em qualquer actividade, um segredo do ofício. Estes jogos têm de ter umas regras mínimas, que cada um inventa e reinventa, e dos textos deve emanar qualquer coisa que nos muda quando acabamos de os ler, uma lâmpada de energia fixa mas forte, como uma vela feita de muitas velas dentro, um bolbo que se acenda desde o começo até ao fim da tessitura. Esse é um corpo, quer dizer, uma unidade irrequieta, possuída por uma coisa que lhe falta, que não se desvendará nunca até ao fim, porque um corpo, um desejo, não é descritível, decomponível, previsível: é o motor da impassibilidade, da sua promessa, da sua totalidade de miragem.
Tomemos o exemplo da mulher e da casa: são duas modalidades muito antigas de segredo, de mistério. Para que precisamos em boa verdade dos deuses, da sua banalidade de estátuas rodeadas de velas e de incensos, anunciados por sinos, se temos na mulher e na casa, e suas infinitas conjugações (que não vou enumerar aqui) uma espécie de dilatação, ou de luz dissolvente, que as anima como corpos sob e sobre o corpo do texto? Nada convoca ninguém para esta oração, para este recolhimento. Não ouvimos nada de exótico ou de longínquo. E no entanto podemos ver como as casas se iluminam, como têm mulheres dentro cujas saias se dobram, como tudo ondula dentro da sua aparente fixidez.
Há passos que já foram dados mas estamos agora a ouvi-los porque os escrevemos, há seios que se espreguiçaram mas de que só agora o tacto chega em toda a sua perturbação até à superfície do papel, tal como uma foto na tina quando começa nela a boiar a revelação da imagem.
Uma casa, uma mulher, rebatidas uma na outra em inúmeros planos, que jogo silencioso, que inúmeras jornadas a percorrer, já consumadas, talvez nem uma coisa nem outra, ou as duas. Uma vida, sem necessidade de mais nada vindo de lá fora para apenas perturbar a serenidade das cores, a compostura das frases, a autonomia soberana do texto. Um soalho, uma cor forte, uma porta entreaberta, uma saia cheia de pequenos espaços entre os fios do tecido por onde espreita o corpo do texto, de um outro texto sempre a escrever, uns seios que se distendem nessa atmosfera azul (a conceder uma oportunidade ao movimento, à estória), uma luz, ao fundo, que caminha e penetra até aqui. C’est tout. Ah, meu deus, se as pessoas soubessem como é simples.
Tal como cartas, que se desdobram noutras, de forma potencialmente infinita, a casa e a mulher podem ser postas lado a lado, ou misturadas (por exemplo, a casa em que sabemos que está uma mulher dentro, a mulher que, de dentro, vemos espreitar a partir do interior da casa - da sombra em que vive - para o seu exterior, etc.) Nós somos de uma liberdade soberana aqui, podemos fazer todas as conjugações e movimentos, e é mesmo dessas variações, como na música, que, ao contrário de outras tarefas, o nosso prazer se compõe.
Há porém, como em qualquer actividade, um segredo do ofício. Estes jogos têm de ter umas regras mínimas, que cada um inventa e reinventa, e dos textos deve emanar qualquer coisa que nos muda quando acabamos de os ler, uma lâmpada de energia fixa mas forte, como uma vela feita de muitas velas dentro, um bolbo que se acenda desde o começo até ao fim da tessitura. Esse é um corpo, quer dizer, uma unidade irrequieta, possuída por uma coisa que lhe falta, que não se desvendará nunca até ao fim, porque um corpo, um desejo, não é descritível, decomponível, previsível: é o motor da impassibilidade, da sua promessa, da sua totalidade de miragem.
Tomemos o exemplo da mulher e da casa: são duas modalidades muito antigas de segredo, de mistério. Para que precisamos em boa verdade dos deuses, da sua banalidade de estátuas rodeadas de velas e de incensos, anunciados por sinos, se temos na mulher e na casa, e suas infinitas conjugações (que não vou enumerar aqui) uma espécie de dilatação, ou de luz dissolvente, que as anima como corpos sob e sobre o corpo do texto? Nada convoca ninguém para esta oração, para este recolhimento. Não ouvimos nada de exótico ou de longínquo. E no entanto podemos ver como as casas se iluminam, como têm mulheres dentro cujas saias se dobram, como tudo ondula dentro da sua aparente fixidez.
Há passos que já foram dados mas estamos agora a ouvi-los porque os escrevemos, há seios que se espreguiçaram mas de que só agora o tacto chega em toda a sua perturbação até à superfície do papel, tal como uma foto na tina quando começa nela a boiar a revelação da imagem.
Uma casa, uma mulher, rebatidas uma na outra em inúmeros planos, que jogo silencioso, que inúmeras jornadas a percorrer, já consumadas, talvez nem uma coisa nem outra, ou as duas. Uma vida, sem necessidade de mais nada vindo de lá fora para apenas perturbar a serenidade das cores, a compostura das frases, a autonomia soberana do texto. Um soalho, uma cor forte, uma porta entreaberta, uma saia cheia de pequenos espaços entre os fios do tecido por onde espreita o corpo do texto, de um outro texto sempre a escrever, uns seios que se distendem nessa atmosfera azul (a conceder uma oportunidade ao movimento, à estória), uma luz, ao fundo, que caminha e penetra até aqui. C’est tout. Ah, meu deus, se as pessoas soubessem como é simples.
voj copyright 2007
FOTO: SOPHIE PAWLAK (rep. aut.)
Fonte: http://www.ma-nouvelle-vie.net/index.php
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* parafraseando um título de livro de nuno júdice
1 comentário:
Belo texto, profundo, mas nem tanto...
A mensagem passa, fica dentro de nós uma senção de enriquecimento de querer mais... muito mais. Saciar a nossa vontade de partilhar as sensações descritas...
também sinto uma certa frustração de não ter a habilidade para a fluidez da escrita como a que tem o vitor.
adorei o texto...quero mais.
beijinho
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