domingo, 8 de novembro de 2009

Des-amparado

Foto: Pascal Renoux
Site: http://www.pascalrenoux.com

texto voj nov. 2009
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Mesmo – e talvez sobretudo –

Quando olhas de frente,

Não sei de onde estás a olhar,

Nem o que estás a ver.


Concebo-te como a um gato

A olhar para mim; ou

Concebo-me a mim próprio como gato

A olhar na tua direcção.


E para este novelo rotativo

Não há resposta, nem começo,

Ou fim: estivemos sempre aqui,

Postados de frente para a pergunta.


Mas o tempo há-de passar, os olhos

Abrirem-se e fecharem-se

Como a luz sobre os campos

Impressa em papel albumina,

Para acompanhar as estações

E as mudanças naturais, as plantas,

E os animais que do mato saem,

E olham.

Ou eu, animal, que os olho também.


De facto deste labirinto não saímos,

Umas vezes com mais frio,

Outras vezes à chuva, mas sempre

Com a pergunta, os novelos,

A rodarem sobre nós.


Começamos inexoravelmente a meio,

Disse Deleuze, e tinha razão.


E depois morreste-me, de certo modo

Temporariamente, porque tudo se reinicia.


Morreste por eutanásia, de olhos

Muito abertos, e desse modo para sempre

Me fixaste como gato atónito

A ter de olhar para ti, sobre uma marquesa

De alumínio, onde depois passou um pano

Desinfectante, e entrou na sua vez

Outro bicho, para também olhar antes de morrer,

Entre aparelhos que continuaram a soar

Da mesma maneira,


Antes e depois dos cristais de prata,

E do soro, conjugados, te trazerem à vista

Essa fixação final, fotográfica,

Esse olhar de glóbulos atingidos

Pela proliferação do líquido

Nas veias, pelo alastramento da morte

Injectada no já teu frágil corpo.


E na minha memória a perdição

De ter de viver como sobrevivente,

Como verdadeiro bicho,

A fazer perguntas como um verdadeiro gato.


A olhar-te sempre, sem saber quem foste

Ou és, sem saber quem sou eu, ou serei,

Sempre a ouvir este som de aparelhos indiferentes,

Mecânicos, automáticos, atrozes na sua persistência,

De sílaba em sílaba, de estrofe em estrofe,

De devir em devir, numa condenação ao olhar


Des-amparado.


1 comentário:

Anónimo disse...

Felizes os poetas...que esconjuram a dor.... com uma "dor imensa"...