quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Lar, doce lar. Algumas palavras prévias sobre o conceito de “família” e suas transformações recentes

Foto: Darren Holmes
Fonte: http://www.darrenholmes.com/


O que apetece logo dizer quando alguém pretende abordar este assunto é que se não poderia escolher tema mais difícil e controverso.

Primeiro, porque quase toda a gente (excepto os cientistas sociais, é claro) parece estar convencida de que se trata de algo de evidente, natural, vital, universal, simples de definir. Algo que, inclusivamente, seria próprio do ser humano, embora se possa falar metaforicamente ou por analogia de “famílias” entre os animais, como ocorre constantemente.
Segundo, porque as conotações da ideia de “família” (mais ou menos espontânea ou trabalhada) com a “casa”, a consanguinidade, a intimidade e a emoção (e, mais genericamente, com a “ideologia” de cada um, ou seja, algo em que esse alguém está de certo modo “contido”) a tornam o “locus” mesmo da discórdia, da dificuldade de distinguir observação/argumentação pertinente e consistente de mera opinião ou então de “wishful thinking”. Por outras palavras, é difícil separar nestas matérias o inteligível e o sensível, para usar uma dicotomia habitual.
Há assuntos como este em que toda a gente se sente não só com o direito de falar (o que é evidentemente desejável), mas com a autoridade de falar (o que é já confundir entre si saberes, ou planos, diferentes, ou seja, experiência de vida e competência para elaborar sobre essa experiência qualquer conceptualização sustentada).
Sobretudo hoje em dia, em que equidade (igualdade de direitos) e igualdade em geral (horizontalização utópica das pessoas ao mesmo nível, como ideologia) permanentemente se con-fundem. O individualismo, o hedonismo e a vontade de afirmação pessoal pelo diferente e pelo “novo” levam as pessoas à crença de que qualquer um pode discretear sobre seja o que for, com igual pertinência.

A família seria assim, como acentua F-H. Augé (1991, p. 271), “pelo menos na sua forma elementar [uma unidade], de tipo conjugal, definida pela união socialmente reconhecida de um homem e de uma mulher vivendo com os respectivos filhos.” Esta “célula conjugal elementar” seria a “unidade de base” das sociedades, tanto as sustentadas na “família extensa” como as de tipo poligâmico.
Estas últimas famílias seriam aquelas em que um mesmo cônjuge (homem ou mulher) é partilhado por várias ou vários cônjuges.
As “famílias extensas”, por seu turno, são aquelas em que coexistem, como diz F. H.-Augé (id, ib), “sob um mesmo tecto e uma mesma tutela” várias “células conjugais aparentadas” (incluindo linhagens colaterais) e descendentes de um antepassado comum e referencial, ao longo de diversas gerações.
A evidência universal da ideia de família baseia-se numa ideologia que distingue os planos do material e do espiritual, ou da natureza e da cultura, e que é a da existência das “necessidades básicas” (v. H.-H., id. ib.) a que tal “unidade” proveria: sexo, procriação, sobrevivência, amparo dos descendentes e sua preparação para a vida, distribuição de papéis e de identidades baseados na cooperação.
O locus por excelência dessas “necessidades” (e sua “satisfação”) é um universal mítico: a “casa”, ou lar (“home”, por oposição a “house” - desde a “caverna primitiva” à moderna habitação sofisticada). Munido desta ideologia, tida como indiscutível, o estudioso poderia então fazer a história, a antropologia, a sociologia, a arqueologia, etc., etc., deste “universal” (axioma) de partida: descrever as suas modalidades, a sua variabilidade no espaço e no tempo, a infinda experiência humana.
O conhecimento poderia assim preencher uma cartografia, um continente, cujos contornos a ideologia “grosseira” das “necessidades básicas” contempla. “Grosseira”, obviamente, porque tais “necessidades básicas” só existem na ideologia basista, a que apeteceria chamar “fisiológica” (frequentemente de cariz materialista ingénuo) de quem não se apercebeu de que as suas “necessidades” elementares são tudo menos "elementares".

Reduzir a pessoa humana a tal imagem é obsceno, e nada tem a ver, obviamente, com um materialismo filosoficamente sustentado. Este, pelo contrário, e como toda a interrogação filosófica, vai em busca do porquê de certas “necessidades” (acções, actividades, comportamentos) serem consideradas, ou não, “básicas” pela ideologia desta ou daquela sociedade, sem o que nada se entende sobre ela.
É aliás na diferença, ou desfasamento, entre o que uma sociedade quer passar idealmente como básico, ou incorporou como tal, e o que realmente acontece, que se pode detectar traços da(s) sua(s) ideologia(s). Embora, claro, o primeiro aspecto (“representação”) e o segundo (“realidade”) estejam profunda e mutuamente imbricados, e se alimentem um ao outro, na “ilusão” característica de toda a ideologia que os distingue.

Família seria então a “célula básica” de qualquer sociedade (H.-A, p. 274), “servindo” para ela se reproduzir, para realizar a troca (“échange”) de cônjuges sem a qual, não haveria, para a autora, organização social. Assim, diz-nos, não estamos aqui perante nenhuma necessidade básica, natural, ou “biológica”, mas perante o que designa uma característica “eminentemente social”, ou da ordem da “legalidade”.
Assim, a autora aceita certas “exigências universais”; porém, transporta-as para a ordem institucional: a família é uma “instituição artificial” e “arbitrária” (id, p. 274) mas que, apesar das múltiplas formas que revestiu no espaço e no tempo, mostra, ainda assim, algumas invariantes. A razão seria a da necessidade “de estabelecer uma relação durável entre os indivíduos”, um princípio de cooperação estável, e portanto através de um “contrato” (persistente crença, esta do contratualismo social) que estabelecesse acordos fora do grupo consanguíneo (grupo esse que, se se mantivesse isolado, endogâmico, tenderia a ser fechado sobre si e a desencadear a agressividade dos grupos rivais).
Na linha de Lévi-Strauss, a autora afirma assim peremptoriamente (id, ob): “A sociedade [e com ela, claro, acrescento eu, a família, seu núcleo] teve de se construir contra a consanguinidade.”
E insiste (ib, p. 275): “Em qualquer sociedade o contrato de aliança entre grupos consanguíneos regidos por uma regra de filiação é o fundamento mínimo de uma sociedade estável; o casamento é o instrumento desse contrato; as mulheres são o seu material reprodutor.”

Neste contexto, a família é o que permite à sociedade existir e reproduzir-se sem propriamente um plano prévio, mas segundo uma espécie, deduz-se, de fundamento tácito, imposto pela necessidade de um mínimo de ordem, de paz, inerente à existência das comunidades humanas.
A família, o casamento, a consecução dessa união entre grupos diferentes torna-se assim em algo de perfeitamente explicável e de universal. Apenas passou da esfera do natural para a do cultural.
Esta explicação, julgo, não satisfaz; nem sabemos se a autora, uma antropóloga, a escreveria hoje, pelo menos no que toca às sociedades contemporâneas.
No mundo ocidental, a ideia predominante durante muito tempo foi a de que a “família extensa” seria a característica das sociedades tradicionais, rurais. Esse tipo de família teria ido dando lugar a sociedades mais modernas, industrializadas, urbanas, caracterizadas pela “família nuclear” (por exemplo, um casal e dois filhos) e pelo individualismo.
Quem resume utilmente a evolução destes conceitos é, entre outros, Dortier (2004, pp. 232 e segs - apoiado na opinião de A. Burguière), chamando a atenção para que tal ideia da progressão da família extensa (ou comunitária) para a nuclear pode ter sido mais um mito, entre outros, que o Ocidente (e os próprios fundadores da sociologia, como Durkheim) criou sobre si próprio (sempre tendendo a afirmar a sua originalidade, a sua superioridade).
Na verdade, o antropólogo Jack Goody (cit. por Dortier, ib.) é de parecer que a “família nuclear”, como unidade produtora e reprodutora, é praticamente um “universal do género humano”. Também este autor, contrariando ideias muito espalhadas, afirma que o “amor conjugal” ou “família afectiva” (versus o casamento por conveniências familiares) não é exclusivo da modernidade: mas os exemplos que dá são claramente recentes (da Idade Média em diante), europeus, e não se podem generalizar.
Ou seja: temos de estar abertos a uma grande diversidade de formas de relação e de organização neste domínio, tanto hoje, como no passado.
Giddens (1995) distingue claramente o amor apaixonado, que seria algo de “mais ou menos universal” (p. 26), do amor romântico, uma realidade ligada ao romantismo, ao séc. XIX, ao desenvolvimento do romance como género literário e a certa sublimação da sexualidade. Com a mulher burguesa em casa, o patriarca divide a sua vida relacional entre a prostituta (o sexo sem amor) e a amada idealizada, ou companheira sem sexo, isto em termos muito esquemáticos. A mulher entretanto ganha novos espaços de poder doméstico como esposa, tanto no que toca à regulação do lar como à educação dos filhos como, ainda, embora de forma diminuta, a tentativas de passar da idealização à verdadeira aventura extra-conjugal, que sempre foi apanágio das classes no poder (a ordem rígida é boa para os dominados).
A fragmentação do ordenamento burguês familiar e as novas formas de "família" a que assistimos na modernidade tardia (se é que ainda lhes podemos chamar assim) estão ligadas, entre muitos aspectos, à maior revolução a que acabámos por assistir na segunda metade do séc. XX - a chamada “libertação das mulheres”, um processo ainda em curso.
As guerras do século XX levaram muitas mulheres para fora de casa, para o mercado de trabalho, e para o ensino público; a pílula contraceptiva e o divórcio por consentimento mútuo tornaram-se depois uma realidade; deu-se a emergência de uma “feminilidade” autónoma (libertada da visão masculina), de uma concepção da mulher como ser diferente do homem, mas com os mesmos direitos (incluindo um certo direito ao desejo e à transgressão); em suma, o “campo social”, o espaço público deixou de ser uma propriedade privada do “homem”. Em breve essa "feminilidade" não se aceitaria como monolítica, como uma essência. Não há "mulher", existem mulheres. E, acima, de tudo, seres humanos, cada um com a sua especificidade.
Simultaneamente a polarização dos sexos em “homem” e “mulher”, que tinha sido a base da família patriarcal burguesa, entrou em crise, com a ascensão à visibilidade pública de comportamentos sexuais de muito tipo. O individualismo (o culto do indivíduo “autónomo”, hedonista e consumidor, responsável pela criação da sua própria identidade e não apenas sujeito passivo de uma identidade imposta) e o mercado, estimulando sempre a procura de novos nichos de “aventura” pessoal, levaram à decomposição da figura do macho tradicional e da conjugalidade como modelo. Este mantém-se apenas como carcaça, como ritual oco: as pessoas casam para logo se descasar, numa sucessão de actos que os põem por um dia sobre o palco, que atraem a atenção sobre si (dos convidados e das agências que lhes vendem esses serviços), numa vacuidade repetitiva.
A figura do indivíduo blasé, a do descomprometido, a do efeminado, e os movimentos feministas, lésbicos, homossexuais, transexuais, etc, decompuseram a ordem tradicional, fictícia ou real, das coisas. É óbvia a relação desta situação num primeiro momento com o Estado-providência e seu aspecto protector e “tolerante” (hoje em desaparecimento), e mais em geral com o desenvolvimento do capitalismo neo-liberal, com a sobreposição dos valores do lucro a quaisquer outros, e com a liquefacção das antigas polaridades e das identidades.
As pessoas hoje em dia prestam-se a uma grande multiplicidade de “experiências” (pelo menos no Ocidente), recusando etiquetas relacionadas com essas opções, mas continua a ser muito grande, e certamente cada vez maior, o abismo entre as possibilidades de experimentação de uns e de outros.
São identidades em permanente busca de si mesmas, com grande acesso a uma multiplicidade infinita de fontes de prazer, incluindo o tido como supremo, o sexual, que emergem com a modernidade (a pornografia é sobretudo uma criação dos sécs. XVIII-XIX) e que estão também ligadas à imagem, à fotografia, ao exotismo, ao turismo, e a um aspecto básico da modernidade que é a sacralização da "vida", do instante, em substituição da antiga transcendência e sacralização de um além (eternidade) ou de qualquer valor a longo prazo que hoje, dificilmente, encontra aderentes. Como o jogador e como o dinheiro, quando parado, não rende. Por isso os deuses, por definição parados, têm um estatuto ambíguo: só "rendem" enquanto ícones que se visitam, ante os quais circulamos; mas nenhum deles nos faz prostar a seus pés.

Mesmo as formas de religiosidade popular e de massas tornam-se fenómenos de grande espectacularidade, como Fátima, Lurdes, ou outros destinos “turísticos” preparados para o “êxtase colectivo” de pessoas em geral pouco sofisticadas e urbanizadas, que buscam uma antiga identidade ritual perdida no meio desumanizado urbano, ou rural penetrado de urbanidade, de conforto. Sobretudo traduzem, como muitos outros fenómenos, a perda íntima de uma ordem tradicional e securizante; são formas embrionárias de “crise da consciência moderna”, não intelectualizadas. Cheias de autenticidade, são formas irrisórias aos olhos dos que tiveram a possibilidade de pensar sobres estes fenómenos, de sobre eles ganhar alguma distanciação. Quando muito, provocam nostalgia e compaixão.
A facilidade e banalização do divórcio e o investimento a longo prazo na relação parental versus a relação conjugal (v. referência em Dortier, 2004, pp. 236-237) são outros elementos a entrar em linha de conta na liquefacção da família como instituição.
Famílias monoparentais, casais homossexuais, adopção de crianças, inseminação artificial, etc – toda uma plêiade de fenómeno inovadores e de opções "a la carte" alterou por completo, nas ultimas décadas, a visão que se tinha da família. O que é importante são as relações, e não as uniões (v. Dortier, 2004, p. 235); e as fidelidades são do indivíduo a si próprio, à compulsão da auto-realização, a não a valores exteriores ou “elevados”.
Cada indivíduo tornou-se no seu próprio deus, e assim, de certo modo, na sua própria fonte de ansiedade e de depressão. É frenético na aquisição de algo que lhe falta sempre, é movido por um desejo que não tem satisfação possível.

Neste aspecto o aparecimento da psicanálise no início do séc. XX e a sua remodelação por muitos autores, e entre eles um como J. Lacan - que foi fundamentalmente um filósofo um tanto esotérico (e como todos datado, nomeadamente pela sua excessiva ligação à linguística saussuriana e ao estruturalismo) mas ainda hoje não totalmente absorvido, e muito sedutor (até pelo aspecto um tanto iniciático do seu saber e dos seus seminários) - são também sintoma de um movimento de curiosidade pelas “profundidades do ser” e, ao mesmo tempo, de descentramento da consciência racional herdada dos sécs XVII e seguintes e de afastamento de uma visão esterilizada da ciência que a leva, também, a ser um objecto de culto mas só acessível, na prática, ao entendimento de iniciados. A procura da profundidade, da escavação, da arqueologia de tudo e de nada vai a par com a superfície da sociedade actual, uma superfície polida des-sacralizada. A penetração em todos os "segredos" do mundo é coetânea da sua des-sacralização, da sua des-institucionalização. São produtos de consumo.
Uma nova religião, de facto, como toda a cultura em geral, transformada, na “sociedade dita da informação”, no capital simbólico que todos desejam adquirir, numa competição cada vez mais generalizada e num estabelecimento de redes e de contactos, virtuais e reais, cada vez mais fragmentados.
Estamos na sociedade do zapping e da visão irrequieta, saltando de ecrã em ecrã, de estímulo em estímulo. As novas relações humanas e sociabilidades que advirão desta grande transformação “ecológico-tecnológica” são difíceis de resumir e de prever. Aquilo a que chamávamos "família" é hoje um resto, desfigurado.


voj

Algumas referências

- Castells, Manuel (1997), "The Power of Identity", Oxford, Blackwell Publishers (esp. cap. 4).
- Dias, Isabel (2004), "Violência na Família. Uma Abordagem Sociológica", Porto, Ed. Afrontamento.
- Dortier, J.F. (coord.) (2002), “Familles: Permanence et Métamorphoses”, Auxerre, Sciences Humaines Éd.
- Dortier, J.F. (coord.) (2004), “Le Dictionnaire des Sciences Humaines”, Auxerre, Sciences Humaines Éd.
- Foucault, Michel (1976), “Histoire de la Sexualité”, vol. 1 : La Volonté de Savoir, Paris, Gallimard.
- Foucault, Michel (1984), “Histoire de la Sexualité”, vol. 2 : L’Usage des Plaisirs”, Paris, Gallimard.
- Foucault, Michel (1984), “Histoire de la Sexualité”, vol. 3 : Le Souci de Soi, Paris, Gallimard.
- Giddens, Anthony (1995), “Transformações da Intimidade. Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas”, Oeiras, Celta.
- Goody, Jack (1995), "Família e Casamento na Europa",
Oeiras, Celta.
- Héritier-Augé, F. (1991), “Famille”, entrada do “Dictionnaire de l’ Ethnologie et de l’ Anthropologie” (dir. De P. Bonte e de M. Lizard), Paris, PUF, pp. 273-275.
- Mesure, Sylvie e Savidan, Patrick (2006), “Le Dictionnaire des Sciences Humaines”, Paris, PUF.
- Segalen, Martine (1981), "Sociologie de la Famille", Paris, Armand Colin.




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