sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Viver como máquinas, conviver com máquinas







Fonte da imagem: http://en.wikipedia.org/
wiki/Image:Duck_of_Vaucanson.jpg

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A máquina - essa "externalidade", e que pode fazer as coisas por nós, diferente do instrumento, que era um prolongamento de nós, do braço por exemplo - é, toda a gente o sabe, o paradigma da modernidade, a sua metafísica, a sua teologia.

A máquina por excelência é pois o autómato: o que teoricamente nos substituiria por completo, perfazendo (muito melhor que nós, dizem os fascinados por ele) todas as tarefas com muito maior rapidez, eficiência, e até inteligência: de facto, esta não teria de ter uma base orgânica.
E quanto a biografia, cuidado com as precipitações...há que ver se um computador altamente sofisticado não tem toda uma história e não pode gerar uma espécie de "auto-reflexão" sobre esse historial. Não será isto com que sonham os pesquisadores da inteligência artificial?
Nada de criar uma teologia do humano, como se fôssemos algo assim tão diferentes.
Claro que os adoradores das máquinas (um dos muitos cultos contemporâneos, e dos mais rentáveis) procuram imitá-las, tendo-se a si próprios tornado há muito máquinas também, ou fazendo esforços desesperados por isso.
Anonimato, relação máquina a máquina, provimento de serviços por comandos automáticos - eis o paradigma.
Ideal. Perfeito, limpo, sem atrito nem ruído. Civilizado.
Permite poupar imenso em pessoal.

Cruzar dados, ordenar, arrumar, classificar, vigiar, controlar - eliminar o segredo, transformar a privacidade numa espécie de paródia de si própria: a repetição do seu (dela privacidade, sacralizada) direito é o sintoma da sua não existência.

Tudo isto permite-nos poupar imenso em sentimentos.
E gastar imenso em psiquiatras (e outros médicos, porque o stress resultante de irmos atrás das máquinas tem consequências orgânicas de todos conhecidas). Felizes aqueles especialistas de curar a "psique" alheia, que (apesar de terem de aturar muitos malucos, certamente) devem ouvir umas histórias picantes, e no fim, maquinalmente, ver a sua continha de banco sempre a subir. E com toda a experiência alcançada, é ainda possível, se se for inteligente, escrever uns livros interessantes, que serão avidamente procurados nas livrarias por sujeitos em défice emocional (haverá uma estante para senhoras... já há). É negócio que nunca falha.
Tudo isto não é nostalgia da pré-história, nem vontade de voltar a um mundo anterior ao de hoje. Sofreu-se horrivelmente no passado (os gritos chegam até aqui) e as máquinas dão-nos muito jeito.


Como dizia uma vendedora do meu primeiro computador Mac quando tive de o substituir por outro, após ter pago na altura, tudo somado ao fim de uns anos, para aí uns 700 contos ao banco em prestações e juros (incluindo impressora, e adentro daqueles descontos para educação, etc.):
"Não pense mais nisso - "isso" era a pena que eu tinha de abandonar o computador a que já me tinha afeiçoado, e também o dinheiro que eu ia gastar com o computador seguinte - nem ligue a ter de deitar fora o computador que já não lhe serve: pense no que ele entretanto lhe permitiu fazer."
E eu pensei que devia ter realizado coisas extraordinárias para naquela altura ter pago tantas centenas de contos.
Senti-me importante, ou talvez ridículo: deveria ter escrito coisas mais importantes, por tanto dinheiro. Mas enfim...

A afectividade ainda podia ser salva:
- ou se houvesse um mercado para resgate das máquinas obsoletas; por pouco que nos dessem, sentíamo-nos menos culpados por ter de pagar tanto;
- ou se houvesse um museu onde as meter (ganhavam nova função); mas o mundo produz muito mais objectos para obsolescência rápida do que museus; de forma que a alternativa é lixo. Estamos a acumular imenso lixo e imenso património e não se vê onde isto vai dar...
- ou se tivesse espaço pessoal para fazer um museu meu, com tudo o que já consumi, no género daqueles gabinetes de curiosidades ou daqueles móveis para pôr as pratas da família, que havia dantes.


Porém, perante estas impossibilidades, vejo uma solução clarificar-se no horizonte.
Telefonar para empresa de mudanças e mandá-los deitar tudo quanto já não sirva para o lixo. O único (...) problema é ter tempo para proceder a essa difícil classificação, porque o servir e não servir (voltamos ao mesmo) têm contornos indecisos.
Isso é tema magno, para outras postagens...

Já estou a imaginar o telefonema, em voz gravada de menina de atendimento (não sei se é esta a expressão técnica, e não quero ofender nenhuma "operadora"):


"- Bom dia. Reciclagens e Mudanças. Se for para máquinas, prima a tecla um.
- Máquinas. Se for para computadores, prima a tecla três.

- Computadores: diga o nome, morada, etc., e o dia em que quer que vamos buscar a sua casa.
- Operação concluída. Toque na tecla x.
- Êxito, Sr. Vítor Jorge. Iremos buscá-lo no dia x às tantas horas."


Buscá-lo?! Deixa ver...
Ai, bolas, enganei-me no código! Era uma agência funerária, e fui dar o meu nome.
Agora virão buscar-me como cadáver ainda vivo?!
Não haverá máquinas para resolver estes casos?


Claro que sim, esteja perfeitamente tranquilo. O sistema é reversível, existe sempre a possiblidade automática de auto-correcção. Era o que faltava.



Que bom.


"Vamos já tomar conta disso e corrigir a encomenda, substituindo por uma nova, que passa a ter o código (...).

Um bom reveillon, Sr. Vítor Jorge."


Também para si.

Ai, bolas, desculpe, enganei-me de novo; esqueci-me de que era uma gravação.
Mas você não me ouve, dá o mesmo.
Silêncio.

"Sr. Vítor Jorge, para sua segurança, informamos que esta conversa foi inteiramente gravada".

2 comentários:

Anónimo disse...

Gosto de máquinas, todas, e penso que muitas outras pessoas também ao ponto de se terem realizado filmes como A.I., Blade Runner, Matrix, muita muita manga japonesa e a lista continua sem fim. Mas gostei especialmente quando o autómato assassino em Blade Runner pergunta ao humano com um ar desamparado: quando eu morrer para onde vão as minhas memórias? Eu acho que se algum dia um autómato fizer e sentir esta pergunta então terá razão de existência. Terá ganho o seu lugar.
Este tema não tem fim.

Vitor Oliveira Jorge disse...

A Inquisição também gostava de máquinas... as possíveis na altura para torturar o próximo, e os nazis adoravam máquinas,sentindo-se eles próprios máquinas perfeitas.
Claro que as máquinas são imprescindíveis ao ser humano e que os autómatos em especial são uma temática muito interessante, fascinante mesmo, para caracterizar a modernidade e o que aí vem... porque parece que nunca chegámos a ser modernos.
Veja-se a ternura com que o chauffeur limpa e abrilhanta o carro do patrão,o seu objecto fetiche, que o conecta ao seu estatuto securizante de escravo (da máquina e do patrão).
Mas eu (questões de gosto) ainda prefiro a carne, com todas as suas imperfeições, ao metal e ao maquínico,com todo o seu brilho. A paisagem pós-moderna é uma paisagem de máquinas obsoletas e abandonadas, como os tanques militares bombardeados ao lado das estradas. Mas há quem escreva sobre a sua poética, sobre a poética da guerra, sobre o abismo de um pós-terror em que já vivemos.
A manga japonesa não sei o que é. Ignorância minha. Os "kamikase" também eram máquinas.E parece que o imperador queria, no fim da guerra, tornar boa parte do exército em kamikase. Não sei em função de que código de honra, seria preferível suicidarem-se todos a renderem-se. Como o Salazar na Índia - queria que todos morressem como heróis nos inícios dos anos 60, para preservar o princípio da pátria una e multi-continental. Sonhos de loucos provincianos mas perversos.
Como espectáculos de máquinas, temos também os grandes festivais ginásticos nazis, expondo os corpos saudáveis, enfim... milhares de coisas dão-nos uma ideia da ambiguidade e complexidade destes temas, de facto temas sem fim.
Tenho fascínio pelo Cronenberg precisamente no que ele "denuncia" sobre esta erótica das máquinas, das pessoas e das suas máquinas, dos acidentes e do metal perfurando a carne, dessa interface obscura e ambígua. Fico sempre espantado pela atracção que os carros despertam nas pessoas, mas isso é já porque faço do espanto um método de olhar para a realidade óbvia, explicada mil vezes, de todos os dias, como uma realidade por explicar. Questão de postura...