Quadros do meu amigo e genial pintor Manuel Amado, que aqui reproduzo com sua autorização e de sua mulher Teresa Amado. Muito obrigado pela vossa imensa generosidade.
O salão do conde Karlof, 2005.
O grande claustro, 2002.
Devem estar atrasados, 2002.
O Jardim Encantado, 1999.
A Praça do Município, 1997.
O pátio (Campo Grande), 1993.
Corredor, 1992.
A Praça do Comércio, 1989.
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Este é um país plano. habita-o o silêncio e a água, o silêncio que está dentro de água e que está também fora dela. Ambos estão deitados numa praia, e os edifícios e toda a nossa cultura é feita disto, de areia e de escamas de peixe. Mesmo Fernando Pessoa esteve engasgado numa espinha, e ao tentar arrancá-la da garganta trouxe atrás de si os heterónimos, que fizeram rir o paço e a multidão que esperava cá fora. Os candeeiros da luz e os prédios estão também deitados, mas como a imagem está de lado não se nota.
Este é um país sem céu, ou melhor, tem uma cama azul feita por cima, e sobre ela, nas ondulações dos lençóis, os navegadores tentam alcançar uma costa, quer da Índia, quer da Guiné ou do Brasil. Vão em barcos pequenos e levam areia, areia legitimamente portuguesa para trocarem por ouro, pimenta e pérolas; mas já tiveram que deitar muita fora, porque se envolveram em mares de sargaço e as mulheres ficaram nuas e a morrer de escorbuto.
No que somos mais ricos é em sombra. E nesse caso ela não é avessa às geometrias, nem aos planos: estende-se em qualquer lado, como um sem-abrigo, e tende a prolongar-se pelo chão, a fazer efeitos, e distrai o olhar.
O olhar neste país tem de se distrair com alguma coisa, porque está muito cansado de estar deitado, de só ver praias e outras coisas jazendo, como os seus heróis no panteão. Nós temos grandes heróis, e uma história antiga, mas os monumentos são pequenos, de forma que os pombos e as gaivotas os foram debicando. Estão sempre em perigo de cair, de voltar à horizontalidade de tudo, como as rochas brilhantes que saem da praia.
Por vezes também a paciência se cansa, e algo então ergue-se com uma enorme indignação e há uma corrida de barcarolas pelo ar, com um frei bartolomeu de gusmão em cada uma. O povo gosta muito destes espectáculos, e diz que só é pena terminarem depressa, devido ao pouco impulso. Muitos aparelhos caem, vão parar ao mar, voltam como destroços, com uma mão ainda segurando um cravo, mas confirmando a horizontalidade do país.
Quando eu era pequeno, o meu pai levava-me a passear entre casas coloridas, com as janelas simétricas, mas um dia disse-me uma frase incompreensível e desapareceu por detrás de uma esquina, onde permanece, atirando-me cartas que esvoaçam na horizontal.
Mas o que mais me impressionou desde sempre foram os corredores das pensões, cheios de férias de verão e de maresia, prolongando-se indefinidamente. E os sofás, compenetrados na sua posição pessoal, dispostos sempre à conversa. Não há nada para fazer. Apenas esperar por um movimento de regicídio, de qualquer terramoto, de algo que caia e nos faça companhia, como as tardes estendidas sobre si mesmas, com as camas feitas por criadas de fardas de renda à volta do pescoço.
Este é um país limpo, aqui aportam de vez em quando acontecimentos trazidos pela maré baixa. Mas o mais importante são as carpetes, as calçadas, o piso. Limpo. Onde uma pessoa se pode deitar sem risco de sujidade, e, se lhe apetecer, invertendo a posição das imagens, ficar no céu a olhar cá para baixo, deitado entre as histórias trágico-marítimas, às vezes cheias de pimenta e de desgraça. Mesmo eróticas, como os bivalves que se agarraram à memória de todos os naufrágios, ou os peixes que navegam sob o silêncio das águas, indiferentes aos sextantes submersos, que já serviram para encontrar estrelas, e agora repousam.
Este é um país sem céu, ou melhor, tem uma cama azul feita por cima, e sobre ela, nas ondulações dos lençóis, os navegadores tentam alcançar uma costa, quer da Índia, quer da Guiné ou do Brasil. Vão em barcos pequenos e levam areia, areia legitimamente portuguesa para trocarem por ouro, pimenta e pérolas; mas já tiveram que deitar muita fora, porque se envolveram em mares de sargaço e as mulheres ficaram nuas e a morrer de escorbuto.
No que somos mais ricos é em sombra. E nesse caso ela não é avessa às geometrias, nem aos planos: estende-se em qualquer lado, como um sem-abrigo, e tende a prolongar-se pelo chão, a fazer efeitos, e distrai o olhar.
O olhar neste país tem de se distrair com alguma coisa, porque está muito cansado de estar deitado, de só ver praias e outras coisas jazendo, como os seus heróis no panteão. Nós temos grandes heróis, e uma história antiga, mas os monumentos são pequenos, de forma que os pombos e as gaivotas os foram debicando. Estão sempre em perigo de cair, de voltar à horizontalidade de tudo, como as rochas brilhantes que saem da praia.
Por vezes também a paciência se cansa, e algo então ergue-se com uma enorme indignação e há uma corrida de barcarolas pelo ar, com um frei bartolomeu de gusmão em cada uma. O povo gosta muito destes espectáculos, e diz que só é pena terminarem depressa, devido ao pouco impulso. Muitos aparelhos caem, vão parar ao mar, voltam como destroços, com uma mão ainda segurando um cravo, mas confirmando a horizontalidade do país.
Quando eu era pequeno, o meu pai levava-me a passear entre casas coloridas, com as janelas simétricas, mas um dia disse-me uma frase incompreensível e desapareceu por detrás de uma esquina, onde permanece, atirando-me cartas que esvoaçam na horizontal.
Mas o que mais me impressionou desde sempre foram os corredores das pensões, cheios de férias de verão e de maresia, prolongando-se indefinidamente. E os sofás, compenetrados na sua posição pessoal, dispostos sempre à conversa. Não há nada para fazer. Apenas esperar por um movimento de regicídio, de qualquer terramoto, de algo que caia e nos faça companhia, como as tardes estendidas sobre si mesmas, com as camas feitas por criadas de fardas de renda à volta do pescoço.
Este é um país limpo, aqui aportam de vez em quando acontecimentos trazidos pela maré baixa. Mas o mais importante são as carpetes, as calçadas, o piso. Limpo. Onde uma pessoa se pode deitar sem risco de sujidade, e, se lhe apetecer, invertendo a posição das imagens, ficar no céu a olhar cá para baixo, deitado entre as histórias trágico-marítimas, às vezes cheias de pimenta e de desgraça. Mesmo eróticas, como os bivalves que se agarraram à memória de todos os naufrágios, ou os peixes que navegam sob o silêncio das águas, indiferentes aos sextantes submersos, que já serviram para encontrar estrelas, e agora repousam.
voj 2007
2 comentários:
Vi uma vez uma exposição deste pintor no Palácio Galveias, tem imenso talento, obrigada por reproduzir aqui estes quadros. Feliz Natal para si e para o seus. :)
Obras de arte destas acompanhadas de palavras artisticas, tornam a arte mais interessante :)
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