Para pensar é preciso aprender a pensar, e, aprender a pensar, a partir de uma certa idade sobretudo (este aspecto é muito importante), implica antes de mais concentrar a atenção individual ao máximo, ler bastante e, praticamente, a maior parte do tempo, não ter interlocutor - implica um afastamento dos outros.
Porque os outros interessantes e empenhados no mesmo esforço estão também isolados a tentar fazer o mesmo, a tentar tirar todo o partido possível do nosso bem mais precioso, o tempo, que tudo (na lógica da sociedade do lucro em que vivemos, nomeadamente do lucro simbólico, isto é, da capitalização máxima de cada indivíduo em si, na sua construção, na sua identidade) nos convida a não desperdiçar.
É muito difícil (e pode até parecer contra-natura) elidir os outros na sociedade da comunicação, em que as pessoas comunicam para não pensar, ou para fazerem intervalos no seu pensar (mas de acordo com ritmos individuais e dificilmente conjugáveis).
É também muito árduo fazer coincidir temporal e espacialmente os espaços/tempos de duas pessoas que estão unidas pela afectividade mas que querem pensar, experienciar, viver. Cada uma por si própria, está claro.
Pois cada uma delas tem de facto o seu próprio programa de auto-isolamento (que pode até, no extremo, ser entrar na con-fusão do convívio constante, isto é, só pensar na companhia dos outros, o que para mim é uma utopia), e assim vê-se na obrigação de negociar permanentemente, o que cansa muito.
Este cansaço inútil mas porventura inevitável destrói as energias que se deveriam canalizar para a actividade muito mais bela do sentir e do pensar, as quais teoricamente deviam estar confundidas numa e mesma coisa, mas foram separadas nos indivíduos.
Os indivíduos são hoje uma espécie de máquinas de quererem ser indivíduos, eles próprios, na sua insubmissão a qualquer disciplina, imaginando ser essa a sua libertação e realização enquanto seres humanos, opinativos e certos de tudo quanto fazem e desejam, mesmo sem pensar muito nisso.
"Escolhe" (suprema ilusão) cada um o melhor para si e frui. Tudo o que não seja fruir, fruir logo ali, é recepcionado como extremamente repelente e a evitar o mais possível. As pessoas têm uma espécie de orgulho orgânico, o seu programa é como uma necessidade fisiológica, ou uma dor forte, que interrompe o pensar.
Julgam que primeiro actuam (que isso é o mais urgente) e que depois pensam (que hão-de ter ocasião de pensar a posteriori). Que a sua actuação é a certa; e mais tarde justificam-se retroactivamente apresentando isso como uma opção consciente tomada antes, a priori.
Os indivíduos são touros tristes toureados por si próprios na arena do seu desejo e prazer; e sangram. Mas excitam-se imenso com esse masoquismo imparável. São auto-flagelados. Há toda uma erótica da flagelação, que pode até ser a flagelação da erótica, naturalmente.
Entretanto, e para quem quer pensar, as constantes interrupções, por mensagens sonoras e telefonemas para o(a) nosso(a) interlocutor(a) privilegiado(a), interrompendo a privacidade a qualquer hora com alguma desmesura (para não dizer falta de elegância, como se as pessoas vivessem sozinhas, o que ainda não acontece com todos) não facilitam nada.
Nas quadras festivas, em particular, a comunicação atinge o paroxismo: repetição do mesmo ao infinito, e eco do vazio, da falta absoluta de cada ser, iterativa até à náusea.
Esse vazio é imprescindivel, seria imprescindível, justamente, para pensar: mas as pessoas querem preenchê-lo compulsiva, neuroticamente.
Estamos assim condenados sem remissão a uma tremenda escolha: estar com o(s) outro(s) e não aprender a pensar, abdicando da vida, ou tentar aprender a pensar, abdicando de certo modo do outro.
Contemplar ou mergulhar no quotidiano; e, em alternativa, passar de espectadores (consumidores) a autores (actores) e tentar, desesperadamente, pensar, quer dizer, repensar o já pensado. Produzir alguma coisa que mereça atenção e publicação.
Repensar o já pensado, mesmo com a intransigência do indivíduo determinado, implica o afastamento da vida vulgar durante a maior parte da vida. É uma obsessão e um enorme prazer, mas também é uma certa morte do(s) outro(s) em nós.
Pensar realmente é tentar eliminar toda a contingência previsível (rituais, visitas, encontros, contactos mais ou menos indesejados), para apenas nos entregarmos nas mãos da contingência imprevisível, sempre rodeada de silêncio, e no meio dela encontrar espaços de pensamento.
É muito duro, tentar pensar realmente. Implica uma enorme força de vontade.
Pensar não é só ler: é deixar tempo para as entre-linhas, para poder dormir um pouco quando os olhos ardem, para olhar a sala ou as estantes ou o mar ao longe. Pensar às vezes é adormecer de cansaço, escrever o texto em sonhos e acordar espavorido na vontade inútil de pôr esses fragmentos de que nos lembramos num contexto que faça sentido na vigília, que seja transmissível aos outros pela linguagem.
Pensar (as condições para tal) passam depressa como os dias. As cores do pensamento envelhecem como as folhas do inverno. Às vezes olhamo-las, e estão amarelas e brilhantes, ou vermelhas. E exaltamo-nos. E depois de repente caem no cinzento, e temos de nos contentar com a estética baça do frio, em que nada se espelha já, ou esperar pela noite, em que há a esperança, apesar dos ataques de sono, de ninguém nos vir finalmente incomodar. De podermos acender as velas, sem receio de incêndio.
As velas, no seu tremelicar, são as companheiras do pensamento. E as jarras de flores secas que elas iluminam. Como um corpo irrequieto, o pensamento deambula então entre velas e jarras, à procura de si próprio, ansioso por capas e lombadas, por citações e por palavras, sobre as quais vai erguendo o edifício sempre precário que é ele próprio.
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Foto: Ernesto Timor
Fonte: http://www.ernestotimor.com/pages/_01_unfixed00.html
Porque os outros interessantes e empenhados no mesmo esforço estão também isolados a tentar fazer o mesmo, a tentar tirar todo o partido possível do nosso bem mais precioso, o tempo, que tudo (na lógica da sociedade do lucro em que vivemos, nomeadamente do lucro simbólico, isto é, da capitalização máxima de cada indivíduo em si, na sua construção, na sua identidade) nos convida a não desperdiçar.
É muito difícil (e pode até parecer contra-natura) elidir os outros na sociedade da comunicação, em que as pessoas comunicam para não pensar, ou para fazerem intervalos no seu pensar (mas de acordo com ritmos individuais e dificilmente conjugáveis).
É também muito árduo fazer coincidir temporal e espacialmente os espaços/tempos de duas pessoas que estão unidas pela afectividade mas que querem pensar, experienciar, viver. Cada uma por si própria, está claro.
Pois cada uma delas tem de facto o seu próprio programa de auto-isolamento (que pode até, no extremo, ser entrar na con-fusão do convívio constante, isto é, só pensar na companhia dos outros, o que para mim é uma utopia), e assim vê-se na obrigação de negociar permanentemente, o que cansa muito.
Este cansaço inútil mas porventura inevitável destrói as energias que se deveriam canalizar para a actividade muito mais bela do sentir e do pensar, as quais teoricamente deviam estar confundidas numa e mesma coisa, mas foram separadas nos indivíduos.
Os indivíduos são hoje uma espécie de máquinas de quererem ser indivíduos, eles próprios, na sua insubmissão a qualquer disciplina, imaginando ser essa a sua libertação e realização enquanto seres humanos, opinativos e certos de tudo quanto fazem e desejam, mesmo sem pensar muito nisso.
"Escolhe" (suprema ilusão) cada um o melhor para si e frui. Tudo o que não seja fruir, fruir logo ali, é recepcionado como extremamente repelente e a evitar o mais possível. As pessoas têm uma espécie de orgulho orgânico, o seu programa é como uma necessidade fisiológica, ou uma dor forte, que interrompe o pensar.
Julgam que primeiro actuam (que isso é o mais urgente) e que depois pensam (que hão-de ter ocasião de pensar a posteriori). Que a sua actuação é a certa; e mais tarde justificam-se retroactivamente apresentando isso como uma opção consciente tomada antes, a priori.
Os indivíduos são touros tristes toureados por si próprios na arena do seu desejo e prazer; e sangram. Mas excitam-se imenso com esse masoquismo imparável. São auto-flagelados. Há toda uma erótica da flagelação, que pode até ser a flagelação da erótica, naturalmente.
Entretanto, e para quem quer pensar, as constantes interrupções, por mensagens sonoras e telefonemas para o(a) nosso(a) interlocutor(a) privilegiado(a), interrompendo a privacidade a qualquer hora com alguma desmesura (para não dizer falta de elegância, como se as pessoas vivessem sozinhas, o que ainda não acontece com todos) não facilitam nada.
Nas quadras festivas, em particular, a comunicação atinge o paroxismo: repetição do mesmo ao infinito, e eco do vazio, da falta absoluta de cada ser, iterativa até à náusea.
Esse vazio é imprescindivel, seria imprescindível, justamente, para pensar: mas as pessoas querem preenchê-lo compulsiva, neuroticamente.
Estamos assim condenados sem remissão a uma tremenda escolha: estar com o(s) outro(s) e não aprender a pensar, abdicando da vida, ou tentar aprender a pensar, abdicando de certo modo do outro.
Contemplar ou mergulhar no quotidiano; e, em alternativa, passar de espectadores (consumidores) a autores (actores) e tentar, desesperadamente, pensar, quer dizer, repensar o já pensado. Produzir alguma coisa que mereça atenção e publicação.
Repensar o já pensado, mesmo com a intransigência do indivíduo determinado, implica o afastamento da vida vulgar durante a maior parte da vida. É uma obsessão e um enorme prazer, mas também é uma certa morte do(s) outro(s) em nós.
Pensar realmente é tentar eliminar toda a contingência previsível (rituais, visitas, encontros, contactos mais ou menos indesejados), para apenas nos entregarmos nas mãos da contingência imprevisível, sempre rodeada de silêncio, e no meio dela encontrar espaços de pensamento.
É muito duro, tentar pensar realmente. Implica uma enorme força de vontade.
Pensar não é só ler: é deixar tempo para as entre-linhas, para poder dormir um pouco quando os olhos ardem, para olhar a sala ou as estantes ou o mar ao longe. Pensar às vezes é adormecer de cansaço, escrever o texto em sonhos e acordar espavorido na vontade inútil de pôr esses fragmentos de que nos lembramos num contexto que faça sentido na vigília, que seja transmissível aos outros pela linguagem.
Pensar (as condições para tal) passam depressa como os dias. As cores do pensamento envelhecem como as folhas do inverno. Às vezes olhamo-las, e estão amarelas e brilhantes, ou vermelhas. E exaltamo-nos. E depois de repente caem no cinzento, e temos de nos contentar com a estética baça do frio, em que nada se espelha já, ou esperar pela noite, em que há a esperança, apesar dos ataques de sono, de ninguém nos vir finalmente incomodar. De podermos acender as velas, sem receio de incêndio.
As velas, no seu tremelicar, são as companheiras do pensamento. E as jarras de flores secas que elas iluminam. Como um corpo irrequieto, o pensamento deambula então entre velas e jarras, à procura de si próprio, ansioso por capas e lombadas, por citações e por palavras, sobre as quais vai erguendo o edifício sempre precário que é ele próprio.
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Foto: Ernesto Timor
Fonte: http://www.ernestotimor.com/pages/_01_unfixed00.html
2 comentários:
«As velas,no seu tremelicar, são as companheiras do pensamento.» ... ... ...
Quem é você?
Laura Marino.
Contacte-me pessoalmente sff.
Pelo nme não conheço, mas sou muito mau para memorizar nomes de pessoas...Obrigado.
vojorge@clix.pt
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