segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

sobe



Sobe. Já toda a família
Está presente à mesa.
Não há dúvidas possíveis
Quanto aos lugares
Em que cada um se senta:
O teu nome está espetado
Com um alfinete nas costas
De uma das cadeiras.

Eu vou já, diz que estou
Atardado em papéis,
Misturando ainda versos desconexos
Com as filhoses do almoço:
Mas já vou, há que comparecer,
Enquanto as vitualhas não esfriam,
Mesmo desalinhado. A mãe vai gostar
De me ajustar o laço, sorrir
Como quem pede desculpa
De já não poder falar: esgotaram-se-lhe
Os assuntos, já não vê para bordar.

Há que irmos comer todos juntos,
Olhando sempre para as bocas
De uns e de outros mastigando.
Comer continuamente, celebrar não sei
O quê: mas não é sempre para isso
Que nos juntamos todos os anos:
Porque não sabemos muito bem
Do que é que se trata aqui?

Sobe. Temos de mastigar a família
Toda, mesmo a mais afastada.
Alguns vieram de longe, com cabazes
De ovos e galinhas e penas.
Fez-se limpezas, mudou-se as camas,
Arejou-se o jazigo. É humano, estamos
Assim juntos. Todos os anos, sempre este menu.

E há que ver as fotografias todas.
Comentar cada uma; disse comentar,
Comer é só o que estiver sobre a mesa,
Sobre naperons. Ninguém tem culpa
Que não percebas ainda bem a nossa
Língua; veste-te e sobe; basta sorrir
Todo o tempo, e acaba por passar depressa.

Não dói. É só preciso trincar, e olharmos
Uns para os outros: a ceia, talvez sempre a última.
A comunhão. Mesmo que um de nós,
Indesejado, esteja a ingerir algo que lhe venha
A ser indigesto. Tu sabes como são as famílias.
Às vezes um elemento explode à mesa,
Enche de nódoas as paredes.
E todos se queixam sempre de doenças,
Sem contenção, nem uso dos guardanapos
Para recolher o azeite que escorre num queixo.

Fizeram a comida: cada um trouxe uma parte
Do repasto; não querem saber
Do que eu ou tu escrevemos,
Das terras distantes, das noites passadas
Em branco, dos livros publicados: isso são minudências.

Só existe isto aqui, uma vez por ano.
Todos juntos. Todos em roda. Podias ter-te tapado
Um pouco mais, aqui as pessoas vestem-se todas
Como perus enfeitados para estas coisas.
Mas mastiga muito, come sempre, que disfarça.

Não dói. Só às vezes um ou outro alfinete
Fica espetado por engano nas costas.
Para já sabermos o lugar do ano seguinte.
Mastiga. Come a família. Estamos todos.
Vem aí o bolo que temos de repartir.
Amo-te, és bela, és a minha única prenda.

Sobe. Que a música mais louca te acompanhe.
Isto passa depressa. Havemos mal pudermos
De fugir daqui,

Para um quarto onde só haja
Almofadas luxuosas, e onde cada um ponha
O indicador sobre o meio da testa do outro.

No esplendor das cítaras e das tablas,
No grená dos bordados, onde te pintarei os pés,
Dançará a poesia, arderão as velas vermelhas
Com a ponta pequenina dilatando a chama.

Abrir-nos-emos ao meio, para cada metade
De nós passar por aí, pela fresta improvável
Onde os deuses pagãos sorriem, iguais a nós.





voj 2007





Fotosw: Ernesto Timor
Fonte: http://www.ernestotimor.com/pages/_01_unfixed00.html

2 comentários:

Anónimo disse...

"Sobe. Que a música mais louca te acompanhe.
Isto passa depressa. Havemos mal pudermos
De fugir daqui."


Sim, sei-o.

Sei.o.

Seio.
_________________/

Anónimo disse...

Hei, minha! Você ta-se metendo com palhinha seca?