quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

cochonnerie

Foto: Ernesto Timor
Fonte: http://www.ernestotimor.com/pages/_01_unfixed00.html



a noiva antiga, uns minutos antes de descer a escada que a conduzirá à cerimónia irreversível, já toda embrulhada em tule branco, descalça-se ainda uma última vez e abre-se para o espelho como uma flor. um pé para cada lado da divisão, ora apoiado no móvel ora nos varões da cama, a saia distribuída em gomos; e vista de baixo, toda a imagem configura um malmequer branco que se estica uma última vez até atingir o tecto e as paredes, antes de transportar o seu pó amarelo, fértil, ao rés-do-chão, numa caixa herdada da avó.
dantes ia nela a virgindade, o hímen intacto. agora vai apenas um caril activo, que mais tarde, já noutro quarto, ela introduzirá com uma pipeta nas narinas do noivo, para que ele aspire ferozmente essa cor densa e, qual touro entontecido, cumpra a sua pobre função de erigir a ordem e dar descendentes à família.
são trabalhos, máquinas, energias distribuídas como a das criadas que, na cave, passam a ferro entre nuvens de vapor as golas com que assistirão à cerimónia ao fundo da sombra, onde a imagem lhes não dará direito ao rosto.
rostos só os dos senhores, de todas as idades, a reunião da família para a foto, a qual terá por baixo, caligrafado, o título de um livro escrito mais tarde: vivemos, comemos, dormimos e ressonamos “comme des cochons”. enfim, a cultura dos grandes “boulevards”.

mas antes de descer, a noiva acaricia ainda uma vez mais os seus objectos de solteira e, em frente ao espelho, fala com eles pela última vez: não é propriamente uma despedida, eles estarão todos de novo no seu novo quarto, os ursos de peluche, o vibrador, as amigas, os frascos de cosmética, as fotografias das festas do liceu e dos prémios ganhos nos vários concursos, os diplomas.
tudo isso, e as gavetas falsas com os maços de cartas atadas por lacinhos, reaparecerão em novas gavetas falsas da mansão a habitar, mais ampla para o sono dos cônjuges e para as entradas furtivas das mulheres e dos homens.

a noiva sorri. hoje é o seu dia de festa, a celebração de todos em volta da própria celebração em si, quer dizer, compondo diferentes jogos e danças, trocando peças do xadrês das salas, girando de saia em saia, de corpete em corpete, de bigode em bigode. a vida na sua leveza intensa e juvenil, distribuída por todos os que acorreram.
e destapa o vestido, confere pela última vez os seios núbeis, põe um pouco de talco na roupa interior, de essência nalguns interstícios. e deixa os sapatos vermelhos por debaixo da cama, sabendo que eles reaparecerão no seu quarto de casada, algures.
pode finalmente descer toda excitada pela escada abaixo, pronta para o seu novo papel, e levando na graciosa malinha o mais necessário para qualquer ocasião, o cartão branco dobrado e sem segredos, porque o pai teve o cuidado de há muito o assinar com tinta também branca, não fosse vir a saber-se.

transporta vaporosa a realidade coincidindo consigo mesma, a hiper-realidade civilizada do que está certo. e espreguiça o corpo dentro de novos devaneios, por sob o traje de cerimónia. pronta para dar o beijo à mãe, para abrir o cortejo, dar seguimento ao mundo, aparecer entre as sobrecasacas, ouvir os galanteios.
impossibilitadas de assistir de perto ao espectáculo, as bonecas vêm à janela do quarto, e despem-se todas ao som de uma música que as entusiasma mutuamente, entornam-se ansiosas pela escada, deslizando atrevidas no corrimão, por onde os relógios de pêndulo já sobem a cumprir o tradicional rito de as esfregarem num banho de espuma, entre as figuras de porcelana brilhantes, coradas pela excitação.

voj 2007

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