terça-feira, 25 de dezembro de 2007

aproximação e fuga

Fotos: Ernesto Timor (rep. autorizada)
Fonte: http://www.ernestotimor.com/pages/_01_unfixed00.html

Homenagem a David Lynch, o maior cineasta vivo





Ia a escrever, de forma simplista e injusta, que, quando a maioria das vidas dos outros acaba (por morte, doença, envelhecimento, ou simplesmente cansaço), começa a dos Girinos, espalmados contra a realidade de que parece quererem encontrar o segredo último.

Não é que sejam noctívagos, ou trabalhem mais tarde, como os padeiros ou os lixeiros; simplesmente não se pautam por regras deste tempo contínuo, feito de caminhos e clareiras, mas antes vivem em subidas e descidas permanentes, trocando frequentemente de universo e de horários.

Habitam entre nós, mas são indiferentes às regras estáveis, e dão-se bem atravessando cortinas, detrás das quais não está a continuação da história, mas a pontuação.

Os Girinos vivem de acordo com inflexões de percurso e com acidentes, abismos mesmo, que marcam as suas trajectórias e desejos: morrem aqui, ressuscitam acolá, como as flores e os insectos, que estão em toda a parte e em parte nenhuma.

A sua principal característica pode talvez ser a do movimento, ou a do aparecimento e desaparecimento súbito, embora às vezes fiquem parte num, parte noutro espelho, pelo que não se tornam facilmente compreensíveis, nem são uma realidade paralela que se atinja por meio de exorcismos.

Não são compatíveis com as palavras de alguns profetas, que ainda ecoam no deserto, ou no interior das grutas do deserto, mas que poderiam não estar lá, sabendo qualquer um que o céu continuaria à mesma a ser azul ou negro, indiferente como desde o início.

Os Girinos por vezes saem e entram em máquinas, mas não são nem autómatos, nem humanos, nem cyborgs, nem mesmo espécies extintas de animais, fósseis restaurados, restos ou misturas seja do que for. Os Girinos são indiferentes à história, e a narrativa tem muita dificuldade em se aproximar deles.

São inteiriços, têm realidade própria, completamente independente, e deslocam-se com frequência para planos que lhes cortam a imagem, e assim, como já foi insinuado, nem sempre os tornam visíveis. Por qualquer motivo não são fotográfeis, estando vários laboratórios no entanto a fazer experiências de ponta no sentido de rapidamente ser superada essa contrariedade. É urgente arquivá-los.

Podemos encontrar-nos com um Girino num café, mesmo falar com ele de rosto para rosto, trocar impressões sobre a última temporada de ópera.

É frequente confundirmos um Girino com uma Pessoa Normal, porque ambos existem e não existem, isto é, deambulam as ruas com igual forma e têm a documentação individual em ordem como qualquer cidadão que queira sobreviver face ao Estado, às polícias, às máfias, às instituições de acolhimento, ao crime legalizado pelos que fabricam continamente leis sobre leis para se anteciparem, numa corrida desesperada, à imaginação dos Desviantes.

Enfim, estão preparados como qualquer um para tudo quanto existe no espaço público, espalhado pelas praças da vigilância e das sombras, pelos átrios de hotel, por todo o lado onde um novo tipo de nazis esperam com delicadeza, disfarçados de ornatos de monumentos, a sua vez de voltarem ao palco da história, que evidentemente já ocupam, mas onde querem cometer crimes ainda mais espectaculares, como seja o de considerar que a Realidade é Real e Obrigatória para todos.

Há Girinos cantores, que são sublimes, e eu acredito que poderão ser os únicos a salvarem-se no meio disto tudo, se é que é possível alguém escapar da asfixia que se apodera lentamente de nós, os Normais.

Aqueles de nós que, precavidos, já tentaram evadir-se antes, sobrevivem agora mal em florestas, em caixas de cartão das cidades, em periferias infestadas pela cólera e pela falta de condições mínimas de humanidade, sob a égide da Ordem Legal Universal.
São apanhados todos os dias em fuga por agentes vestidos de fatos de treino negro, bailarinos extremamente velozes e bem equipados, bandos de encapuçados que lhes espetam estiletes muito finos na retina, fazendo escoar-lhes todo o sangue por aí.


Por isso admiro os Girinos, que ainda querem enfiar a cabeça em tudo, perceber, embora dentro da fantasia que sabem constituir o ar que todos respiramos, que é aquilo que ainda nos faz por mais uns dias escapar ao esgotamento do texto.

Tentar procurar, por meio da gargalhada delirante, a saída da rotação das máquinas, evitar o olhar alucinado e mortífero das imagens que fogem para as margens do seu suporte, e se perdem para sempre no espaço sideral dos frios digitais.

Um destes dias convidei uma série de Girinos para almoçar. Vieram por peças, e, depois de montados, portaram-se lindamente, tendo sido muito produtivo o nosso encontro.
Um resumiu-me a aula que ia dar ao Instituto Superior Europeu, entre os seus pares; o outro o capítulo que tinha preparado para um livro, e este deu muitos saltos quando explicou o que era o conteúdo do capítulo seguinte, que estava agora a escrever.
O último não cheguei a percebê-lo muito bem, mas foi por isso mesmo talvez o mais interessante.
Tinha um aspecto meio de serpente, grossa e listada; de mulher, toda tatuada e ondulante; e de hindu velho numa pose de oração.
E gostei muito da dança que executou antes de se dirigirem os três para o aeroporto, onde já estavam em atraso para a descida e subida mais próxima, pelo que utilizaram a escada rolante do prédio.

Minutos depois ainda os julguei ver aos três a passarem no céu em frente à minha varanda, com ar de Girinos, como era seu mister. Tem juízo, disse para mim próprio, estes seres não se submetem a essas regras da imaginação infantil, como lembrei de início, e que foi o que nos tramou a nós, os Normais, que acreditámos mais uma vez.

voj 2007


1 comentário:

Anónimo disse...

Alguns girinos não serão normais?
Alguns... ou todos os normais... não serão, de vez em quando, girinos?
Ou não seremos todos girinos?

Bom texto!