quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Sala d' aula

Foto: Linda Elvira Piedra
Fonte: http://www.wertzateria.com/lindapiedra


“Sala d’ aula”.
Poder e erotismo difusos na relação pedagógica:
Alguns apontamentos preliminares



Quando o(a) professor(a) fecha a porta da sala para começar a “dar uma aula”, por que razão o(a) incomoda tanto (mais nuns casos do que noutros, naturalmente) que alguém chegue atrasado, saia antes de tempo, ou estejam pessoas frequentemente a entrar e/ou sair? É apenas porque tais pessoas assim interrompem a atenção e o raciocínio dos outros, ou mostram desleixo pelos horários lectivos, desinteresse pelas matérias ou pelo modo como esse(a) professor(a) “as dá”?
Esta pergunta poderia desdobrar-se em muitas outras, mas o seu objectivo é tão só acentuar algumas evidências de conhecimento e interesse geral – o que implica que sejam debatidas.
Há obviamente um “recalcamento social” imenso no que toca ao ensino e à erótica e política da relação pedagógica, tentando permanentemente os discursos “oficiais” esbater o que há nisso de incontrolável, e “institucionalizar”, acomodar, legalizar, canalizando energias e “forças” em circulação difusa para a reprodução social, para a manutenção de elementos de equilíbrio que permitem a própria continuidade homeostática do “status quo”. Compreende-se que seja assim, mas isso não nos impede de tentar pensar livremente.
Aliás, poder-se-ia dizer que todo o discurso de poder e todo o discurso legislador é um formidável embuste, por todos percebido e por todos recalcado ou silenciado: a justificação, pela “necessidade” (algo que se apresenta como incontroverso) da imposição aos outros de um desejo (algo de perverso, no “bom” sentido desta palavra, desde já o digo) de um conjunto de pessoas que num determinado momento detêm qualquer capacidade de impor as suas decisões aos outros. Pouco importa o carácter mais ou menos "lesivo" ou arbitrário dessas decisões: quem está no poder, qualquer poder, precisa de o comprovar pelo seu exercício, que é sempre normalizador - tem de alterar algo para se sentir. O poder auto-verifica-se e reforça-se permanentemente sobretudo através daqueles que suposta ou realmente infrigem as regras que ela determina.
Claro que nos sistemas democráticos o poder é exercido a todos os níveis por eleitos, que estão sob observação e escrutínio dos eleitores, os quais se podem organizar para em qualquer momento os substituir. Porém, e salvo casos de violência que ninguém deseja - a não ser extremistas ou pessoas psiquicamente doentes, quer dizer, gente que está excluída, ou se auto-excluíu, do sistema - , é evidente que o poder que têm os governados relativamente aos governantes, ou o cidadão comum relativamente às elites, é pequeno.
Nas democracias os partidos tornam-se também instituições clientelares, onde as que possuem vocação de governar têm de ter uma forte ligação aos grandes interesses económicos, que são os que financiam, no fundo, a continuidade de um sistema de tipo capitalista, ainda por cima completamente globalizado, deixando pouca margem de manobra aos estados-nação menos ricos.
Porém a mim interessa-me sobretudo pensar o poder no sentido mais alargado ou difuso que lhe conferiu Michel Foucault. Escreveu por exemplo este autor (1) que o poder “é o nome que damos a uma situação estratégica complexa numa dada sociedade” (p.617). Precisando, nas suas palavras: “ Por poder (...) entendemos antes de mais a multiplicidade das relações de força que são imanentes ao domínio em que se exercem, e são constitutivas da sua organização; o jogo que por via de lutas e de afrontamentos incessantes as transforma, as reforça, as inverte; os apoios que estas relações de força encontram umas nas outras, de maneira a formar cadeia ou sistema, ou, ao contrário, os desfasamentos, as contradições que as isolam umas das outras; as estratégias, enfim, nas quais elas se efectivam, e cujo desenho geral ou cristalização institucional se corporizam em aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.” (pp. 616-617).
Depois avança um certo número de afirmações muito interessantes, que obviamente não posso transcrever ou resumir aqui, como por exemplo (pp. 618-620): o poder não se adquire, exerce-se; as relações de poder são imanentes a todos os outros tipos de relações; o poder vem de baixo, no sentido de que se nutre de múltiplas relações locais e não de uma oposição de princípio entre dominantes e dominados; as relações de poder são simultaneamente intencionais e não subjectivas; onde há poder há resistência mas esta não está nunca em posição de exterioridade em relação a ele, etc.
Interessa-me aqui chamar a atenção para alguns pontos.
Primeiro, toda a relação humana (no seu carácter particular e contingente, que é de facto como ela se processa) assenta numa “economia libidinal”, ou seja, numa gestão de emoções que em última análise descolam de “lugares secretos”, isto é, não se conformam com (e são travessas em relação a) objectificações e taxonomias “psicológicas”. Por isso é que a observação sociológica, antropológica, psicanalítica atentas ao detalhe de cada ser humano são muito importantes para constantemente vigiar a tendência para o lugar comum generalizante que todos, como agentes sociais, temos necessidade de construir.
Segundo, erotismo e poder andam muito ligados, como é óbvio, nomeadamente na acepção difusa que me interessa aqui realçar, tendo em particular a relação pedagógica condições especiais para o exercício dessa mescla indistinta. Por um lado, há uma evidente erótica do poder, ligado ao carisma, à imagem, à aura, e às suas evidentes conotações sado-masoquistas, etc. Por outro, o poder exercido pelos mais velhos como educadores tem longa tradição de conotação afectiva, que não se pode ver angelicamente como neutra do ponto de vista da relação erótica. Tudo isto são banalidades. A transposição para a relação educativa e de aprendizagem de elementos parentais edipianos é óbvia, tanto por parte dos instrutores como dos instruendos.
A sala de aula, para nos atermos ao ensino público colectivo (diferente da “explicação privada” – veja.-se a esse respeito a magnífica peça de E. Ionesco “A Lição”, onde só intervêm três personagens, a aluno, o professor e a criada) é um espaço fechado aurático, onde o docente se sente todo-poderoso perante os discentes.
Esta situação é tanto mais patente quanto a inusitada presença de um outro professor (que pode ter pedido para assistir, por exemplo) é, se não esperada, sempre intrusiva numa relação de intimidade entre os dois pólos. Essa intimidade depende muito do contexto (grande anfiteatro, pequeno seminário, matéria leccionada, ambiente laboratorial, etc., etc.). Mas eu aqui estou sobretudo a pensar na aula expositiva comum, onde uma turma de uma ou algumas dezenas de pessoas interage com um professor, podendo interrompê-lo para levantar questões, resolver dúvidas, etc.
O único pólo de poder e de emanação de forças libidinais não é evidentemente o do docente; os alunos podem constantemente emitir imagens, expressões, mensagens de todo o tipo que são sinais vários de toda uma técnica subtil de expressão de submissão, de resistência ou de experimentação de reacções relativamente ao discurso e comportamento do pólo dominante. Esse pólo é claro que é o do professor, facilitado pela própria arquitectura habitual da sala, de tipo panóptico, onde o docente, virado para o auditório, pode monitorizar permanentemente as reacções faciais de cada um dos elementos deste. Esse cara a cara é em princípio intimidatório para o receptor, que muitas vezes vê o emissor como um espectáculo, uma figura que gesticula, e cuja voz, irrompendo no silêncio da sala, transporta para dentro dela e para cada um dos presentes toda uma carga libidinal típica do jogo de dois parceiros. A voz penetra, literalmente, na atenção expectante dos ouvintes, numa clara conotação erótica.
Ora, é esse fluido, esse poder libidinal, que a entrada ou saída de alunos, ou a penetração eventual de intrusos (um colega que vem dar um recado, um funcionário que vem trazer algo) quer dizer, a interrupção momentânea da extática gerada, vem cortar cerce. A paixão do discurso fica fora de rotação, tem de embraiar de novo, se o conseguir. As forças que povoam uma sala de aula são, portanto, muito complexas e contextuais, variando infinitamente com os interlocutores em causa, com a situação concreta que se gera em cada caso e ao longo do tempo.
As práticas de resistência por parte dos discentes (que assumo aqui como adultos, para simplificar as coisas, e até porque é disso que tenho mais de três décadas de experiência) são dos mais variados tipos, que vão da sedução à agressividade. Um elemento heterossexual da turma pode ter pelo(a) docente uma particular empatia ou atracção, projectando nessa figura tutelar (pelo menos durante algumas horas por semana) um conjunto de fantasias e estando à espera de sinais de receptividade (passiva ou activa) por parte do pólo em referência.
A situação mais comum é de tipo muito prático. Independentemente de outras emoções ou afectos, o (a) estudante quer, sobretudo, obter um bom resultado na disciplina, e para isso pode usar de recursos muito diversificados, que normalmente se traduzem em situações de adulação falsa, submissão exagerada, ou simulação de sedução mais ou menos erotizada, contraproducentes relativamente ao efeito desejado se o docente tiver a distanciação e amadurecimento requerido a uma profissão deste tipo. Mas há certos aspectos que são quase sempre de efeito garantido, como seja o enaltecimento inteligente das qualidades do docente, ou a insinuação de um desejo difuso em gestos-relâmpago que pode , de facto, “fazer a diferença” no meio da massa discente, quer dizer, levar o(a) professor(a) a pensar/sentir/fantasiar que determinado(a) estudante nutre por ele uma afecção especial.
Esta passagem da situação higienicamente “profissional” - em que o investimento da libido de uns e outros seria mínimo ou nulo (o que é impossível numa situação de interacção humana) - até à situação perturbadora de se ter de estar permanentemente a disfarçar emoções para manter uma situação de equidade na relação docente/discente (competindo essa responsabilidade de equilíbrio sobretudo ao pólo de poder, ao docente) é uma passagem evidentemente muito fácil.
Nunca estudei história e teoria da educação nem técnicas pedagógicas, mas estas são algumas das muitas reflexões que podia fazer no sentido de dizer: mal de nós se as relações inter-pessoais fossem assépticas, desprovidas de afectos e desejos; mas mal também de nós se não tivéssemos todos interiorizado, incorporado, um “habitus” profissional que nos permite resistir às tentações e, sobretudo, cumprir a lei (o tal poder que afinal todos servimos, e acabamos por sustentar através da gestão diária, por vezes muito difícil, das tensões difusas), para mantermos a nossa posição profissional num mínimo de estabilidade (impera aqui um princípio de realidade mais que evidente – não se pode perder a cabeça e o salário ao mesmo tempo).
Mas negar as fantasias e a erótica do poder docente ou do poder discente, e o seu jogo complexo (que tanto nos distingue da situação de um técnico ou de um investigador “full time”, por exemplo), seria uma tontaria infantil. Quem, quando era adolescente, não idolatrou ou se apaixonou por um(a) professor)(a), qualquer que fosse a sua idade (mas com tendência a acontecer com docentes e discentes não muito distantes etariamente)?
Não falo, obviamente, de comportamentos ditos desviantes da norma, que são frequentíssimos, mas sim do dia a dia escolar.
E para terminar, uma história: há muitos anos um(a) colega meu (minha) foi convidado(a) a dar uma aula noutra faculdade (de uma universidade que não a minha, claro) por um(a) professor(a) da mesma. E contou-me esta situação algo embaraçosa: é que quase não conseguiu dizer nada de muito significativo aos estudantes, tanto tempo o(a) colega ocupava a falar do interesse daquela visita, da importância da interdisciplinaridade, etc. Perante o anfiteatro um tanto sem perceber o que se passava, o(a) meu (minha) colega percebeu. Ele (a) estava ali para ser mostrado(a) como troféu, não para dar uma aula ou transmitir conhecimentos. A situação libidinal era muito mais requintada. Tornava-se manifesto que o(a) colega tinha uma “queda” por ele(a) e que o(a) tinha chamado ali para, em situação em que ele(a) era o pólo principal (regente da cadeira), encenar uma peça complexa, um jogo de desejo e de exibição desse desejo sublimado e totalmente encoberto pelo contexto pedagógico. Perante testemunhas de uma aura que ele(a) normalmente exercia, aquele(a) colega podia inteiramente passar a sua mensagem difusa de desejo, realizar a sua fantasia.



(1) Foucault, Michel (2004), “Philosophie. Anthologie établie et presente par Arnold I. Davidon et Fréderic Gros”, Paris, Gallimard, texte 56 (ext. De “La Volonté de Savoir”)

3 comentários:

Pedro Ludgero disse...

Não, ainda não conhecia o seu blogue. Ficarei atento a partir de agora.

Saudações

Anónimo disse...

"Ele (a) estava ali para ser mostrado(a) como troféu,..."

Mas não é isso que você faz, quando publica aqui cartas pessoais de outros poetas?

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado a Pedro Ludgero.
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Pergunta ao (à) "sempoder":
Não vejo relação, mas...talvez tenha lido apressadamente o meu texto.
Entretanto, acha mal num blogue meu colocar a opinião de colegas sobre o meu trabalho?... olhe que se fosse a fazerem-me críticas e sugestões de correcções também publicava, desde que os autores se não importassem com tal.
E você, gosta do que escrevo?...