sábado, 3 de novembro de 2007

Museu de Freixo de Numão (Vª N.ª de Foz Côa) - Núcleo de Pré-história - documento produzido e enviado em 2 Junho 2005

ACDR DE FREIXO DE NUMÃO
MUSEU DE FREIXO DE NUMÃO
NÚCLEO DE PRÉ-HISTÓRIA


= Algumas reflexões preliminares para estimular a reflexão dos outros, e um verdadeiro trabalho colectivo que urge fazer. Todos os que estamos na página “architectures”
http://www.architectures.home.sapo.pt
do meu ponto de vista, podíamos e devíamos dar um contributo =



Introdução

No dia 21 de Maio de 2005 foi solenemente inaugurado o edifício onde vai ser instalado o núcleo museológico em epígrafe, edifício esse situado na zona mais antiga da vila, e primorosamente restaurado pelos Arquitectos Professores Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez, da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
Estiveram presentes numerosos convidados e público, entre os quais significativo número de arqueólogos, tendo a sessão sido presidida pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, Eng.º Sotero Ribeiro, e pelo Sr. Presidente da ACDR, Dr. António Sá Coixão. Além daqueles dois arquitectos, foram distinguidas na ocasião pela ACDR diversas personalidades, por serviços prestados à vila do Freixo, e em particular o Sr. Dr. Luís Calado (que, quando era Presidente do IPPAR, desencadeou o processo que permitiu a aquisição do imóvel e sua posterior valorização arquitectónica) e os investigadores, e professores da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Susana Oliveira Jorge, responsável científica pelos trabalhos no sítio de Castelo Velho desde 1989, e Vítor Oliveira Jorge.
Entre os presentes na sessão permita-se ainda destacar a directora do PAVC e o director do CNART (organismos do IPA) além de praticamente todos os arqueólogos responsáveis por estudos aprofundados na região de Freixo de Numão/Horta do Douro, integrantes ou não do projecto ARQUEHORFREN.
Já há anos os arqueólogos signatários procederam à elaboração de um primeiro documento genérico sobre o destino e objectivos deste núcleo museológico, com vista à orientação do trabalho dos arquitectos e à perfeita clarificação de toda a situação por parte das instituições envolvidas, isto é, o IPPAR – nomeadamente através da sua delegação do Porto – e a ACDR.
Pronto agora o edifício, urge:
- definir mais precisamente o seu programa museológico, sobretudo no que toca aos conteúdos do primeiro andar (piso 1), área pública do edifício;
- precisar as utilizações a dar ao piso 0 (reservas e serviços de apoio).
Esta urgência prende-se com a necessidade de definir,
em função de um projecto muito específico (conteúdos e utilizações dos espaços, com o maior detalhe possível), todo um conjunto de acções a realizar, incluindo aquisições de equipamento, estabelecendo objectivos e metas a atingir. Em suma, trata-se de dar utilidade real ao espaço agora pronto. É para tal efeito, como primeiro contributo, que se elabora e divulga entre os principais intervenientes este segundo memorando.



Núcleo museológico

Conteúdo: explicitar aos visitantes o que sabemos sobre o modo de vida das populações da região entre o VI milénio e o II milénio antes da nossa era, e os estudos que se têm feito nesse sentido (através de prospecção, inventariação de sítios, e escavação de locais específicos como o Prazo I (fase neolítica), da responsabilidade do Dr. Sérgio Rodrigues (FLUP) – aguardo dados muito sintécticos que ficou de me enviar - , Castelo Velho de Freixo de Numão, da responsabilidade da Prof.ª Susana Oliveira Jorge (FLUP) (fases calcolítica e da Idade do Bronze), e Castanheiro do Vento (Horta do Douro, sítio genericamente contemporâneo do Castelo Velho), da responsabilidade do Prof. Vítor Oliveira Jorge (FLUP), do Dr. João Muralha Cardoso (bolseiro FCT), da Drª Leonor Sousa Pereira (IPA), do Dr. António Sá Coixão (ACDR) e da Drª Ana Margarida Vale (doutoranda da FLUP).

Basicamente o 1º piso é constituído:
- por uma sala de entrada – sala 1 (recepção dos visitantes, venda de produtos); desta sala tem-se acesso a outras três: gabinete do director; sala polivalente e para apresentação de produtos multimedia; e sala que intitularemos 2;
- sala 2 – Introdução à região, suas características geofísicas, e seus antecedentes fundamentalmente “neolíticos” (Prazo, etc.)
- a partir da anterior, tem-se acesso à maior sala, a sala 3 – consagrada a Castelo Velho, sítio “nuclear” e mais bem estudado da região, do ponto de vista da pré-história. Esta sala dá acesso à sala 4, muito mais pequena;
- sala 4 – dedicada a Castanheiro do Vento, sítio que serve de comparação e de contraponto a Castelo Velho, mas está ainda num processo inicial de investigação, e sobretudo sem plano de salvaguarda e de recuperação, por falta de meios.
Assim, poderão ficar representados de forma condigna
e proporcionalmente à sua importância actual os principais conteúdos apurados até hoje. Como vamos materializá-los nestes espaços?
Como é óbvio, essa questão implica um filosofia
museológica, um conjunto de conhecimentos de pré-história, e um processo prático de preparação de suportes materiais em que se plasmarão essa filosofia e esses conhecimentos, concatenados no seu essencial.
É básico ter em mente certos princípios fundamentais:
- não se pode acumular demasiada informação, seja de que natureza for, num espaço tão pequeno, porque, se tal informação for escrita, transforma um museu num jornal de parede, se for gráfica, obriga a um esforço muito grande por parte do público de incorporação,.de “passagem” conceptual de uma imagem para outra, e se for objectual, volumétrica (coisas, contentores de coisas, etc.) ocupa espaço, condiciona a visibilidade e o movimento, e impede a distância que é psicologica e esteticamente necessária para a incorporação de mensagens num movimento de cisculação corporal.
- um museu (sobretudo quando se trata, como é o caso, de um “núcleo” de um museu mais amplo) deve ter uma valência própria, ser complementar de outros, ter uma “imagem de marca”, e não querer esgotar matérias, ou tratar de assuntos que podem estar mais bem representados noutros museus da região, numa lógica de complementaridades e de circuitos de visita.
- um museu tem de ser entendível por públicos diversos, sendo essa comunicação, polifacetada e polivalente, uma “experiência”, através da criação de uma atmosfera, de um contexto específico, de uma ambiência, em que se tente passar mensagens que possam ser lidas a vários níveis.

Comunicar, representar o passado, torná-lo inteligível aos outros, implica um exercício de equilíbrio entre a imaginação (o que não sabemos mas pensamos verosímil) e a erudição ( o que sabemos mas precisamos de triar para escolher o mais significativo em função de uma mensagem que queremos transmitir), o que é mesmo muito difícil e, por isso mesmo, muito aliciante.
É preciso que o visitante não encontre neste museu um “passado domesticado”, uma espécie de versão exótica, simplificada, ou infantilizada de nós próprios, mas algumas ideias-força e imagens-força que o façam pensar, percebendo que os cientistas, em arqueologia como em qualquer outro saber, têm basicamente dois momentos: o da pergunta, o da procura, que não tem fim; e o da resposta, o da comunicação, que está sujeito a outras temporalidades (urgências) e compromissos sociais.
É preciso encontrar uma “ponte imaginativa” entre o que já sabemos e o que o público quer saber – sem nunca mistificar, isto é, sem fazer de conta que essa ponte difícil de atravessar não existe, e que constitui sempre um risco a sua utilização. É esse o desafio que temos pela frente, e se plasmará no próprio discurso do museu e no livrinho de divulgação que SOJ deverá fazer sobre “Castelo Velho há 5000 anos e sua região”.
Sobre um sítio que nunca foi um “castelo”, mas de facto, como diz o topónimo, é “velho”, velhíssimo mesmo, porque muito anterior a todos os “castelos” que as pessoas em geral visitam. E não estava isolado, mas profundamente articulado com populações que construiram outros monumentos semelhantes na região. Por que é que o fizeram? Para que serviam estes edifícios? Que género de pessoas eram essas, e a que tipo de comunidades pertenciam? Por que haviam de despender tanto “esforço”, tanto empenho, nestes monumentos, se neles vivia habitualmente pouca gente, e não era aí que se defendiam? Que lógica presidia então a estes seres humanos, e que tipos de sociabilidades se podem deduzir do estudo deste tipo de locais?
Estas as perguntas óbvias a que temos de dar resposta.



“Filosofia” subjacente ao núcleo museológico
Há cinco mil anos, no Alto Douro, é óbvio que a actual zona de Vila Nova de Foz Côa era muito diferente da de hoje.
A vida pautava-se pelo ritmo dos dias e das noites,
pela sequência das estações. Sem luz (a não ser a de localizadas lareiras) iluminando a noite, o contraste com o dia era intenso, e então o firmamento estava perto das pessoas, era uma espécie de duplo da terra, onde se podiam encontrar sinais, orientações, regularidades.
O rio Douro corria lá bem fundo, num rego duramente
escavado nos xistos, e tanto ele como os seus afluentes eram rios vivos, contendo peixes, moluscos, e toda uma vida animal que pululava em torno da água, do seu som e da sua frescura. Esse ambiente devia variar muito ao longo do ano, em temperatura, como ainda hoje acontece, numa zona tão interior, tão escavada, e onde os xistos espelham a luz durante o dia, e retêm o calor.
A vida naquelas épocas não seria nenhum paraíso. As
pessoas em geral não duravam tanto tempo como hoje. Por outro lado, a dicotomia entre a vida e a morte não tinha o mesmo significado que tem para nós. Eram duas realidades muito próximas uma da outra, no quotidiano vivido.
As pessoas conheciam muito bem o espaço em que se
movimentavam, que para elas era uma realidade à qual se sentiam intimamente pertencer, como se fossem parte integral dos seres animados ou inanimados que compartiam esse espaço. Tal como agora, as pessoas habitavam meios carregados de sentidos, de lembranças, de recordações, de histórias, de interditos e de entreditos; mas esses meios não seriam talvez entendidos como algo de externo, como um “objecto” sobre o qual se podia mexer. Ou seja, o meio seria mais um “ser vivo”, de grande escala e abarcando outros seres, do que uma realidade “inerte”.
As populações, relativamente dispersas, procuravam
conjugar a caça, a pesca, a colheita de alimentos, com a agricultura de cereais e com a pastorícia de ovicraprídeos (carneiro e cabra) e também mesmo de bovídeos (boi) e de suídeos (porco). Deviam viver em pequenos aglomerados (lugarejos de algumas cabanas agrupadas) que utilizassem nichos do território mais abrigados, perto de fontes de abastecimento, e sobretudo protegidos das temperaturas extremas destas regiões interiores, dos ataques dos predadores, e de eventuais “más surpresas” causadas por esse predador do homem por excelência, o próprio homem.
A melhor forma de “habitar” uma “natureza” tornada
fértil pelo trabalho humano (para usar conceitos correntes) não era as pessoas concentrarem-se em grandes aglomerados; mas antes colocarem-se em pontos do território que não só lhes permitissem o acesso a uma gama grande de certos recursos vitais, como também a gestão de relações de vizinhança e uma formas diversificadas de se relacionarem, de transmitirem informações, de se entre-ajudarem, de repartirem tarefas a uma escala relativamente pequena.
O mais vital dos recursos para o ser humano – aliás, como para muitos, para não para todos, os animais - é “sentir-se em casa”, num ambiente densamente povoado de conhecimentos e de memórias de experiências anteriores, de emoções. É o bem estar psicológico de pertencer a uma comunidade de outros seres – o sentido de sociabilidade. Numa sociedade não complexa, não industrializada, um indivíduo isolado era particularmente impensável.
Se o povoamento não era denso, concentrado em
aldeias, de que nenhum testemunho sério ficou, mas descontínuo, disperso em pequenos lugarejos, se a realidade dita (por nós hoje) “natural” estava cheia de referências e de nomes, se as pessoas na sua grande maioria viviam em relativa autarcia, como se relacionavam as populações entre si, a um nível mais geral? Por forma a estabelecerem acordos, sentidos de pertença e de exclusão, em suma, de modo a ampliarem as sociabilidades num plano que não fosse puramente local, evitando a conflitualidade e a surpresa (o perigo) potencialmente permanentes, trocando informações, estabelecendo ritmos, regimes de previsibilidade mínima?
A aliança, a reciprocidade, a troca, são a base da
sociabilidade, mesmo antes da existência do poder coercivo do Estado, que só surgiria milénios mais tarde. Os conflitos existiriam, tanto ao nível local, como num âmbito mais amplo, mas a sua escala não seria a da guerra organizada como uma actividade independente e especializada.
Estas pessoas de há cinco mil anos conviviam
diariamente, como se disse, com o que hoje chamamos a morte, mas não a conceptualizavam decerto como nós (como uma perda, como um desaparecimento).
A desigualdade de estatutos existia, mas sob formas
mais ou menos frágeis ou embrionárias, essencialmente carismáticas, baseadas no poder da palavra, na capacidade de liderança, nos dotes de alguns para a mobilização dos outros para a acção, para a acumulação de valor.
Que acção? A de todos os dias, mas também a
excepcional. A acção excepcional era a que se plasmava em reuniões, em comemorações, em rituais que marcassem e escandissem o termpo, tornando-o inteligível, dando um sentido de conjunto ao cosmos, uma explicação para o aqui e o agora, integrado num antes e num alhures.
O que chamamos hoje arquitectura, no seu sentido mais abrangente (isto é, envolvendo uma radical indistinção entre acidentes “naturais” e “artificiais”, entre volumetrias herdadas e outras agora feitas), foi a forma essencial das comunidades se unirem, e, construindo novos “cenários”, se contruirem a si mesmas como comunidades. Essa arquitectura não era um design “imposto” ou mesmo “aposto” à “natureza”; era uma espécie de despoletar, pelo trabalho humano, de propriedades inerentes ao meio, tornando mais visível aquilo que de certo modo uma natureza acidentada já continha, com todos os seus “acidentes” geomorfológicos.
Antes do “aparelho de estado”, das cidades e das estradas, dos exércitos e das polícias, dos impostos e das classes bem definidas, dos privilegiados e dos muito pobres, durante milhares de anos, e em alguns casos até à actualidade, os seres humanos viveram de formas diferentes destas.
Para imaginarmos tais populações temos de as despir daquelas instituições especializadas, bem definidas, assertivas e impositivas, que constituem o nosso quadro actual de vida dos últimos séculos, e que se nos tornaram tão familiuares que, se não fosse a antropologia, as consideraríamos quase “naturais”.
Imaginar essas populações de há cinco mil anos é libertarmo-nos da necessidade de pensar a nossa forma de vida actual como a única possível; é termos a certeza de que essa forma de vida foi “seleccionada” de entre milhares de outras “à partida” igualmente concretizáveis. Não é pensar numa humanidade livre e feliz, espécie de outro de nós, que mais não seria do que a nossa sombra. Não. É libertarmo-nos de nós e simultaneamente da nossa sombra.
Por isso o trabalho que os arqueólogos produzem para os seus contemporâneos de hoje – preparar sítios, construir museus, estabelecer circuitos e sobretudo “contar histórias” - é uma tarefa tão importante, tão dignificante, e de tão grande alcance filosófico e político, digno do maior respeito, como qualquer outra forma de criatividade, seja ela do âmbito da ciência ou da arte (outra lamentável dicotomia moderna).
As sociedades sem Estado regiam-se por laços de consanguinidade e de parentesco, de vizinhança, que nunca devem ser vistas por nós como coisas naturais, mas sempre como formas de sociabilidade particulares, como construções colectivas, em negociação constante. Que formas de valor acumulado conheceriam estas sociedades da memória e da oralidade? Os seus celeiros, os seus animais, pois decerto, mas sobretudo as suas tradições, a sua memória – o principal não era dito, era subentendido no que era feito, era transmitido e retrabalhado através do fazer.
As sociedades de há cinco mil anos eram já, sem dúvida, sociedades de informação. Quer dizer, de partilha de certos saberes e de certos saberes-fazer, mas também de ocultação, de segredo, de diferença. Porque toda a sociedade – toda a “economia” diríamos nós hoje, ou seja, todo o fundamento do valor (e aqui há que ultrapsssar a dicotomia moderna do “valor de uso”/”valor de troca”) - se instala sobre a diferença, sobre a distribuição desigual e negociação dos valores, das identidades, daquilo que é raro e que é único, e portanto particularmente prezado.
O “económico” (conceito evidentemente moderno) não está sobretudo na sobrevivência, na comida, na fisiologia, nem sequer na reprodução do mesmo, na eternização da “sociedade” (outra noção nossa) como ela é num determinado momento; está sobretudo na invenção de algo que crie alguma forma de diferença, de distinção, entre os indivíduos e os grupos.
O ser humano é ávido de ordem, as sociedades reproduzem-se na norma (o que não implica uma estabilidade das normas, porque há constantemente forças minoritárias a erosionarem as normas vigentes), mas a norma é sempre o produto de uma negociação, de uma instabilidade, e sobretudo não precisa de estar codificada, pode apenas produzir-se, reproduzir-se, desenvolver-se e transformar-se através da acção (do agenciamento).
Como se cria tal diferença? Povoando os espaços, os territórios, os lugares, de duplos físicos das pessoas, tão efémeras e de vida em geral tão curta. Deixando memórias. Fugindo ao tempo – naturalmente, para nossa maneira de pensar actual, essa fuga é sempre uma “ilusão”. Como vemos, imaginar o passado é estar sempre a medir forças com a “distância” (com a diferença) que nos separa dele.
E quando se não “foge ao tempo” pela embriaguês e pela festa, foge-se pelo que hoje chamamos “monumento” – por aquilo que dura, que se vê (ou imagina ver-se) e nos pode sobreviver, projectar. Dois modos, portanto, do que hoje chamaríamos a tal “ilusão” (ou, em termos marxistas, “alienação”). Mas foi em nome dessa “ilusão” que a humanidade criou as obras que nós agora respeitamos como “património” (isto é, como valor perdurável) e que não cessamos de revisitar, de tentar interpretar, sem descanso procurando multiplicá-lo, tal como fazemos com qualquer outro bem. Numa luta incessante contra a erosão do tempo.
Há cinco mil anos algumas populações tiveram necessidade de, pelo menos no que diz respeito ás suas elites dirigentes, “se alçar” para cima de pontos dominantes da paisagem. Aumentavam assim esses grupos o seu campo de visão, permitindo “monitorizar informação” de um território mais abrangente. Quem assim via de cima, previa. Ganhava poder, como quem olha um mapa. Essa função controladora podia ser delegada pelo conjunto da população que vivia dispersa no território, em líderes particularmente vocacionados para se sacrificarem pelo carisma, pela aura (o que faz ainda correr os políticos modernos, ou os criadores actuais, não é algo de semelhante, quererem elaborar visões mais panorâmicas, isto é, sentirem-se de algum modo em posição superior aos outros?).
Sem dúvida que a visão é um sentido muito valorizado na modernidade e na sociedade da imagem, do “glamour”, do tempo comprimido e da desmitificação dos deuses. Mas também nas comunidades que ontologicamente habitavam o interior dos símbolos (não se limitando, de fora, a manipulá-los, como nós imaginariamente fazemos) a visão era sem dúvida importante, pelo menos desde que as imagens objectivadas, e os cromatismos e texturas da matéria, foram valorizados, ou seja, desde há dezenas de milhares de anos.
Que significa fazer arquitectura? Significa tornar o espaço, e o movimento que nele se gera, em elementos de significação. Significa estabelecer pontos de apoio para uma multiplicidade infinita de “performances”. Trata-se de elaborar “artefactos” que são também e simultaneamente “ecofactos”, têm uma escala abrangente de um território, na medida em que alteram a sua materialidade, a sua imagem, a sua vivência.
A filosofia subjacente a esta ideia é: o ser o meio são elementos que formam parte de uma unidade, que “crescem” e se constroiem mutuamente; o ser humano, activo produtor de “artificialidades”, entre as quais aquelas que convencionalmente designamos arquitecturas, interagiu com o meio de forma talvez mais intensa do que a maioria das outras espécies, competindo ao arqueólogo perceber porquê, e explicá-lo aos outros.
Longe de ser uma realidade que se acrescenta às sociabilidades, ou que as exprime (elemento passivo), a chamada actividade arquitectónica é uma actividade que constrói as sociedades, na medida em que contribui para fazer do “espaço indiferenciado” um “espaço vivido”, isto é, ocupado por uma rede de caminhos e de nós, de lugares, uns eventualmente de menor porte (arquitecturas precárias, vida quotidiana), outros de maior porte (arquitecturas duráveis, vida colectiva e ocasiões cerimoniais). Reporto-me naturalmente á chamada Pré-história recente de que estamos a tratar.
Uma estaca ou simples monólito fixado no solo não só permite a rotatividade em torno dele (tornando-se uma espécie de íman para o espaço em redor, para os movimentos do corpo que em torno dele giram), como define fisicamente um sentido ascensional, vertical, telúrico, do que une a terra ao céu, podendo associar-se ao falo e à sua estranha capacidade de se estumescer e de servir de símbolo de tudo quanto se opõe ao jacente, ao que está sujeito à gravidade. Uma árvore pode ter a mesma conotação – há toda uma antropologia e uma fenomenologia das árvores que nós temos que valorizar.
Um recinto, por sua vez, cria um dentro e um fora, um espaço fechado, mais ou menos claustrofóbico ou agorofóbico, dependendo dos volumes, das pessoas que o experienciam, e das aberturas para o exterior que possa ter. Essas aberturas podem ser críticas, estar por exemplo orientadas a sentidos azimutais, terem uma conotação macrocósmica. Mas tais aberturas, ou portas, passagens, etc., nao se devem ver de forma estatica, independentemente do movimento dos individuos for a e dentro dos rcintos, porque os campos de visão mudariam conforme o movimento, criando uma dinâmica e uma temporalidade.
Também posso construir barreiras no território, como muros, paredes, socalcos, taludes, mais ou menos rectilíneos ou não, que inclusivamente podiam delimitar “campos” já desde o Neolítico (Norte da Irlanda, por exemplo), e que eventualmente exigirão que os contorne.
Ou, ainda, caminhos, que facilitam a ligação entre pontos de um percurso, que balizam o movimento, enchendo o território, quando visto do ar, de imagens que parecem “veias” de um corpo. Ou, ainda também, avenidas, grandes espaços cerimoniais que marcam no terreno uma progressão linear mais ou menos rectilínea, como os alinhamentos de Carnac (Bretanha) ou os “cursus” da Grá-Bretanha. Estes últimos são monumentos neolíticos em terra, compostos por fossos e valados. Mas também se descobriram, em zonas pantanosas (Dartmoor) caminhos feitos em madeira, por vezes muito extensos. Enfim, é impossível sumariar aqui os traços gerais de uma matéria muito vasta - um livro sobre as arquitecturas pré-históricas que nunca foi escrito.
Mas fazer arquitectura é, ou pode ser, também, uma atitude minimalista, a de valorizar ocos, concavidades (em último caso, cavidades ou grutas) e não só convexidades ou volumes salientes. Aliás, os dois elementos da paisagem estão em toda a parte relacionados, interagem. Se elas (concavidades) se conotam ou não com ventres maternais ou sentidos de fertilidade, ou ainda mesmo com arquétipos vaginais, depende evidentemente muito dos contextos. Fizeram-se pirâmides, mas estas continham também criptas. O chão, e o que se ergue acima dele ou se enfia por debaixo dele, são arquitectura. A “arquitectura” pode resultar apenas de uma maneira de ler, de sentir, o espaço, e não implicar quase intervenção nenhuma (aborígenes do deserto australiano, por exemplo). Um corpo a deslocar-se num espaço geográfico, pode ser arquitectura, neste sentido geral.
A nossa percepção do espaço tem a ver com os movimentos do corpo. Se caminho num terreno liso, em que o contacto dos pés com o solo é macio, quase não sinto atrito, nem esforço, quase poderia continuar a caminhar indefinidamente. Se, pelo contrário, sou obrigado a esforços de equilíbrio, se encontro planos opostos ao sentido da gravidade, se tenho de subir ou de descer, se o terreno é escorregadio ou se me oferece resistência (arbustos, pedras, pequenos acidentes que tenho de contornar), a experiência de progressão é outra. No limite, posso ser obrigado a escalar ou a descer ravinas, e posso estar sujeito à queda. É esta expeiência fenomenológica, evitando fatalidades irreversíveis, que me permite ir incorporando um espaço, tornando-o meu. E, disto podemos ter a certeza, era também do que a experiência dos homens e mulheres pré-históricos era feita. Os corpos são produto do espaço em que circulam, e vice-versa.
Quando os “construtores” de Castelo Velho e de Castanheiro do Vento decidiram pôr dispositivos cénicos para-circulares no alto de colinas, não estavam apenas a fazer recintos murados, estavam de facto a monumentalizar essas colinas. Este aspecto é tão capital quanto perceber que aqueles sítios eram sobretudo construções de argila e ramos, sobre basamentos de pedra.
É portanto de colinas monumentalizadas que devemos falar, nas quais os recintos, simples ou complexos, eram não a totalidade, mas a parte – uma das múltiplas formas de “afeiçoar” o espaço da colina como um todo. Quer as suas construções viessem até ao sopé, quer não. Não podemos, na nossa imaginação científica, ser presa das ocorrências visíveis, das positividades; também não podemos cair na atitude oposta, a do delírio, da invenção sem limites nem regras. Mas sem imaginação, sem inventar, no bom sentido (sob a forma da hipótese sujeita a controlo) é impossível fazer pré-história.
Falo para sublinhar que a acção ali era feita, nestes locais, tornava significante a elevação como um todo, em termos semiológicos. Isto é fundamental. Aqueles homens e mulheres eram arquitectos paisagistas “avant la lettre”.
Nós sabemos muita coisa sobre esta gente e suas obras. Não é verdade que saibamos pouco, por se tratar de uma época longínqua, ou de tudo estar muito reduzido a ruínas. “Sabemos” por vezes “pouco” porque não valorizamos o que já sabemos, no seu detalhe, e porque temos pouca experiência de antropologia para poder ter o treino da imaginação e o quadro dos possíveis imagináveis para integrar as situações que observamos.
E parte considerável do que sabemos, e podemos comprovar pelos nossos trabalhos, e “in situ”, com documentação recolhida, com registos feitos, é que a maior parte do que foi dito sobre este tipo de sítios tem hoje pouco sentido. Falta-nos porém ainda estudar muito mais, e sobretudo digerir, trabalhar a informação obtida, para ela se tornar útil aos outros, e sobretudo perceptível pelo não especialista, cumprindo o tal papel social nos dias de hoje- e realizando um discurso museológico entendível, mas não ridículo, anacrónico, desajustado, já visto noutros lados, noutros museus.
Observados de longe, dos vales circundantes, Castelo Velho e Castanheiro do Vento eram um pouco diferentes entre si. Ambos se encontravam em rebordos de arribas que marcam a periferia de bacias fluviais, maiores ou menores.
Castelo Velho está retraído entre colinas quase simétricas, ladeado por ribeiras, abraçado por norte por elevações mais altas. Provavelmente, quase toda a área oposta ao vale (a zona plana por onde agora acedemos de carro) constituía uma enorme plataforma cheia de construções, que foram demolidas com o tempo. A parte oposta, conservada, debruça-se ao vale, sobre o qual em especial avulta o monte de S. Gabriel, que era e é um grande “monumento natural” em relação com o Côa. Essa elevação necessariamente “dialogava” com Castelo Velho; podia até ser muito mais importante do ponto de vista das narrativas cosmológicas de há cinco ou quatro mil anos, do que o próprio Castelo Velho em si.
Para ser vista de longe, para ser notória (em especial do alto quartzítico de S. Gabriel, com a sua grande linha de afloramentos ponteagudos), isto é, para ter impacte visual e se destacar da massa contínua da arriba em que se integra, a colina monumentalizada de Castelo Velho devia ter efeitos cromáticos importantes.
Não sabemos qual a altura dos muros de argila que se estenderiam pela colina abaixo (2 metros? – creio que é uma boa medida, hipotética, para o recinto superior conservado), mas eles dariam provavelmente superfícies excelentes para serem ornamentadas.
Se as cerâmicas, artefactos de menor escala igualmente em argila, eram em muitos casos decoradas, por que o não haviam de ser as paredes dos recintos ou das construções mais pequenas (habitações, contentores de oferendas ou deposições, etc.)?
Por outro lado, se a cal é, em muitas construções de taipa, essencial à manutenção e consolidação da estrutura, misturada com a argila, por que motivo é que não poderia ter sido utilizada para revestir as paredes, dando-lhes um efeito cromático a distância?
Argumentar-se-á em sentido contrário, dizendo que talvez não existisse possibilidade de produzir cal na região.
Parece que não é verdade. Haverá que nos informarmos com geólogos, e fazer mais estudos científicos dos componentes das argilas encontradas, por forma a esclarecer tal aspecto. Pessoalmente, estou quase certo de que qualquer forma de cal seria utilizada, para reforçar a qualidade e resistência da argila, mas também para a colorir, conservando melhor as superfíciews expostas, e permitindo que o monumento se visse a distância e comunicasse não só uma volumetria à colina, mas um cromatismo. Pessoas que faziam pinturas rupestres fortemente coloridas (ocorrem no Côa, por exemplo), por que não haviam de pintar estes locais carismáticos? Temos sempre de nos lembrar de que estamos apenas a estudar elementos residuais – não para nos queixarmos da insuficiência de “dados” (nenhum cientista toma tal atitude positivista), mas para valorizarmos o que não vemos, o que não está lá. Ou que está lá sob forma indicial. A arqueologia é a arte de estudar indícios, no sentido semiológico, peirciano, desta palavra (“índice”).
Se estes sítios mantinham relações a maior ou menor distância, que lhes permitiam obter alguns elementos mais raros ou exóticos, por que não poderiam obter matérias cromáticas (a referida, ou outras) usadas na sua monumentalização? Não estaremos a olhar para estes locais, hoje monocolores, amarelados pela argila,. de forma errada, quando sabemos que os seus construtores escolhiam cuidadosamente certas matérias, como o xisto negro, ou azul, ou até placas de xisto brilhante, que se encontram em numerosos contextos?
A textura dos materiais – e não apenas a forma - era um elemento certamente fundamental, e a sua cor quase de certeza também. O que temos é de estar abertos a estas hipóteses, e não ver estes sítios como é mais fácil, como eles parecem agora. Se não, cometemos o mesmo erro da DGEMN e de outros “restauradores” e agentes patrimonializadores, que transformaram por exemplo o interior das igrejas, na sua época autênticas festas de cor, na nudez austera e fria que agora os turistas contemplam. Aquilo nunca foi assim! Os pigmentos dos mais diversos tipos, desde logo para a pintura corporal, aparecem em inúmeras sociedades. Por que haveriam de estar ausentes – quando temos indícios claros do contrário, mas que nunca valorizamos suficientemente – destes sítios calcolíticos?
Castanheiro do Vento é diferente, em certos aspectos já muito focados, de Castelo Velho. Se de noroeste, visto de elevações mais altas, surge como uma colina circular ladeada de outras colinas ou plataformas, de leste, da Ribeira da Teja, aparece como uma imponente fachada que sugere de imediato um grande impacte visual que deveria ter tido no passado.
Se aquela era uma cenografia, uma espécie de “palco” (para usar uma palavra da nossa cultura greco-latina), e se em certos momentos do ano se animava particularmente com a reunião de pessoas, no dia a dia os “espectadores” (residentes ou de passagem) estavam principalmente por toda a bacia da dita Ribeira da Teja e outras zonas envolventes do sítio. E, daí, o que poderiam contemplar, quando se voltavam para Castanheiro do Vento, volumetria tutelar omnipresente, era um autêntico espectáculo arquitectónico, uma enorme fachada de volume e de cor, emergindo das arribas. Algo que comparado, por exemplo, com Stonehenge, tornaria este último sítio mítico (o local mais visitado do Reino Unido) uma realidade muito relativa do ponto de vista monumental.
Apesar do grande vale, ou paisagem, adjacente a Castanheiro do Vento, estar muito mais próximo visualmente deste do que no caso do Castelo Velho (onde essa função” seria cumprida pelo planalto de Vila Nova de Foz Côa), e apesar do Castelo Velho se virar muito mais claramente à Meseta (e desde logo ao seu prolongamento mais próximo, o planalto de Figueira de Castelo Rodrigo) não deixa de ser significativo o facto de, a partir de ambos, se ver a Serra da Marofa, acidente quartzítico que, como outros da mesma rocha, parece marcar de forma indelével o relevo da região.
Impressionam-nos hoje imenso, à medida que as vamos descobrindo, as numerosas formas de diálogo com o território envolvente, a várias escalas, que estes sítios entreteciam. São uma arquitectura paisagística tanto mais “sábia” quanto os seus arquitectos não eram “letrados”, nem se viam como seres destacados do mundo, mas como agentes no mundo, actuando nele, e transformando-o não no sentido de impor um “design”, mas no sentido de inscrever uma série de marcas identitárias e ancestrais, indispensáveis ao próiprio funcionamento e coesão de sociedades essencialmente segmentárias, isto é, compostas por unidades domésticas cooperantes, mas sem grande especilização do trabalho, ou diferenciação de funções, que não as determinadas por sexo ou idade, ou por status, diferente do comum no caso das elites. Não estou a ver, por hipótese, que esse status se transmitisse hereditariamente (aquilo que se chamava tradicionalmente chefado, na antropologia neo-evolucionista).

A história, ou histórias, que estes sítios nos contam, e que queremos e devemos trasmitir aos públicos, aos visitantes, passam apenas por intervenções locais minimalistas, ajudadas por materiais visuais e textuais de apoio? Ou poder-se-ia fazer restauros reversíveis, experimentais, erguendo por exemplo alguns muros em argila, sobre os seus socos pétreos, e evitando apresentar estes como paredes, já que foram spbretudo basamentos? Penso que esta segunda hipótese seria a mais trabalhosa, mas também a mais audaz e a mais interessante. Creio que ela teria exigido um imenso trabalho interdisciplinar, e não apenas fugaz, entre todos os intervenientes, especialistas da arquitectura do presente, e especialistas da arquitectura do passado.
Porém, o esforço feito por Susana Oliveira Jorge em Castelo Velho, abrindo uma frente de pesquisa, e seus colaboradores, foi já hercúleo, e, por outro lado, “pedir tudo” de uma só vez seria, além de desajustado, injusto. O trabalho investido no sítio dará origem a diversos resultados muito positivos, e permitirá talvez um dia, quem sabe, fazer em Castanheiro do Vento uma experiência contrapontística em relação a Castelo Velho. Assim, os dois sítios, que já dialogavam e eram inter-visíveis há cinco ou quatro mil anos, continuarão a servir-se mutuamente, irmanados num mesmo projecto, e a dialogar pelo século XXI. A investigação não acabou, continua viva, com os mesmos protagonistas.
Como eu costumo dizer, Castelo Velho e Castanheiro do Vento, do ponto de vista da pesquisa, das questões que levantam, são um e o mesmo sítio. Estudar um, é estudar outro. Para o público visitante, são complementares.


Algumas considerações práticas finais


Pensamos (conversas com S. O. J., e J. M. C., e reunião havida na passada semana no Porto com Gonçalo Velho e Guida Casella) que cada sítio deve estar mais representado por arquitecturas do que por vitrinas clássicas com peças soltas lá dentro, vitrinas .que em certos museus mais lembram tumbas de vidro que outra coisa, e que seccionam o espaço de circulação.
Vitrinas sim, mas adaptadas aos contextos a apresentar, para sua protecção, e de preferência baixas, ou aproveitando interstícios de parede, ou encostadas a recantos em que não colidam com a atmosfera actual do interior do edifício, agradável porque está vazio...
Arquitecturas, como? Sob a forma de “estruturas exemplares”, certamente reduzidas à escala 1/2 /(metade do real). Em torno delas, ou dentro delas, podiam estar artefactos restaurados exemplares, não de uma vida quotidiana, ou do que “aconteceu” ou foi encontrado nas estruturas precisas musealizadas, mas porque apesar de tudo constituem elementos de informação importante, sobretudo se contextualizados por outros elementos informativos.
Vamos fugir ao museu de peças, de tipologias, ou de exemplares apontados para supostas quotidianeidades, e pôr em destaque que estes sítios são também sistemas de deposições e de circulação de objectos, pelo que é falsificar estar a fazer (expor) “contextos domésticos” ou outros, muito definidos.
Assim, para Castelo Velho, teríamos:
- estrutura (de tipo convencionalmente chamado “bastião”) com ossos humanos, encontrada na zona oeste, fora do recinto central:
- estrutura (tipo “cista”) com sementes e fragmentos de vasos depositados simbolicamente encontrada junto à “porta” NW, no interior do recinto, encostada ao basamento de muro.
No caso do Castanheiro do Vento, deveríamos colocar um dos “bastiões”, também na escla 1/2 ou mesmo 1/3.

Nada disto obsta a que o museu deva conter exemplos de objectos ou conjuntos de objectos, como:
- peso de tear encontrado no Castelo Velho sobre uma base de xisto brilhante, tipo prato redondo, mostrando claramente o aspecto intencional da deposição;
- laje com covinhas encontrada em Setrembro de 1994 na plataforma 1, lado oeste, e portanto no exterior do recinto principal de Castelo Velho, incorporada nas estruturas de talude do basamento, numa clara intenção de ocultar elemento com “arte rupestre” no sítio, ao modo de citação ou de deposição ritual;
- troço de murete delimitador da plataforma na zona oeste de Castelo Velho, que devia ser retirado urgentemente do sítio enquanto não é destruído ou coberto pelos restauros; é o que se encontra encostado à chamada “estrutura dos ossos”, e está muito bem conservado. Devia ser desenhado em pormenor, para se repor no museu;
- marcadores espaciais ou “estelas”, nomeadamente uma que se encontra no nosso escritório do Porto, com forma quase antropomórfica, e, se possível, repor outra que estava associada à deposição de um machado plano de cobre, na zona leste do interior do recinto principal;
- lajes com gravuras encontradas em Castanheiro do Vento, nomeadamente em relação com a “porta” estreita voltada a leste;
- nicho central do “bastião” F (ou D) de Castanheiro do Vento, após cuidadosa escavação.
- Etc.

Deve evitar-se é mostrar coisas soltas, que só interessam a especialistas, ou que não são susceptíveis de se integrar num contexto visível, fetichizando (=esteticizando) a peça, e obrigando o visitante a ler legendas (ou brochura) extensas.
Deve também a todo o custo evitar-se a carnavalização, ou “asterixização” do passado, do tipo um osso de uma ovelha com uma foto de uma ovelha ao lado, uma colecção de pesos de tear com uma foto de pretenso tear semelhante (egípcio? etnográfico?) ao lado, ou imagens género “eles e elas em Castelo Velho a perfazer uma cerimónia, ou num dia de encontro de vários clãs”, sendo eles jovens musculados antecedidos por um ancião com ar decidido e mais ou menos de druída, e elas jovens frescas com traje mais ou menos tipo mocassin, a alimentar bébés ou a moer grão para farinha, numa espécie de cenário ligeiramente erotizado, etc. Esse passado é ridículo. Ora, para ridículo já nos basta quase o resto do país todo! Salvemos este pequeno espaço do ridículo, da acumulação, do “déjà vu”.
Façamos NOVO.

Porto, 27/28 de Abril - 2 de Junho de 2005
Vítor Oliveira Jorge, DCTP-FLUP/CEAUCP (FCT)

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Este documento foi enviado como documento de trabalho em 2005 para a ACDR de Freixo de Numão e para o então IPPAR - Direcção Regional do Norte, Direcção do Parque Arqueológico do Vale do Côa, Atelier 15 (Arq.º Prof. Alexandre Alves Costa), entre outros destinatários.

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