domingo, 4 de novembro de 2007

Arqueologia presa no seu próprio labirinto de conceitos

Foto: Natasha Gudermane
Fonte: http://photo.net/photos/gudermane




Nós criámos a ideia de um mundo material.
Isto é, uma realidade, exterior a nós e à nossa observação dela, particularmente fácil de delimitar porque física, observável, visível, palpável, oferecendo resistência.
Daí abstraímos para a ideia de materialidade, como diz Ingold - tudo o que tem a característica de ser material. Nada de mais abstracto e irreal que tal "realidade".
Depois os arqueólogos foram pensar que estudavam uma parcela dessa materialidade, desse mundo material, que era a que consiste nos restos, nos vestígios do passado.
Outra abstracção no sentido negativo, pois passado é evidentemente um dos modos da nossa consciência retrospectiva, uma projecção, como já no título de um livro meu estava plasmado. "Passado" só existe, por definição, no presente, na minha consciência presente, na consciência colectiva presente, desdobrando-se em infinitas, contingentes, fluidas narrativas.
Os arqueólogos têm este mito fundador, que para mim é o calcanhar de Aquiles da arqueologia: querem, através do mundo material, dos restos do passado que nele supostamente se encontram, recuperar o dito passado.
Por muito que sejam críticos das tentativas anteriores, caiem sempre nessa tentação.
Assim, de um mundo material que nós é que abstractamente criámos, e que não é isolável como tal, pretende-se extrair uma espécie de substrato escondido, o mundo não material, a vida e o sistema de crenças e de comportamentos das sociedades do passado.
Ficamos enredados nos nosso próprios mitos, no fio que nós próprios tecemos.
Enquanto a arqueologia não abandonar a mitologia positivista de reconstituir o passado, de estar colada a uma "história" vista de um modo também muito restritivo, não sairá do labirinto.

Por exemplo, Joanna Bruck, em:
"Experiencing the past? The development of a phenomenological archaeology in British prehistory", Archaeological Dialogues, 12 (1), 2005, pp. 45-72,
onde procura fazer um balanço do que chama a arqueologia fenomenológica, cai (embora subtilmente) numa série de alçapões, apesar do enorme interesse do seu trabalho.
Para além de parecer admitir que existe algo como uma "fenomenologia" que seria quase uma "receita" (embora por vezes tenha o cuidado de referir "perspectiva fenomenológica e afins") (v. pág. 64), o que é altamente redutor, parece também pensar que os arqueólogos incorporaram suficientemente tão complexa e diversificada fonte de inspiração, o que na maior parte dos casos é mais que duvidoso.
De facto, falemos claro - dominar a fenomenologia é coisa para filósofos (e dentro destes, especialistas da matéria, que não é nada de fechado, mas um universo vivo e diversificado), embora ninguém nos possa impedir o atrevimento de espreitarmos para tão complexa e densa floresta. Devemos, é claro, atrever-nos. Mas não como se a filosofia, ou em particular a fenomenologia, fosse uma "caixa de ferramentas" ou um estojo de "instrumentos de orientação" postos à entrada do labirinto para nos desenvencilharmos nele.
O trabalho de J. B. tem muito interesse - mas didáctico, porque tudo o que diz em termos críticos é óbvio. Qualquer cientista social sorri complacente ao lê-lo.
É porém preciso lê-lo com a distância crítica de qualquer outro texto, pois de quando em quando, quase entre linhas, reaparece como fantasma a nostalgia de nos "aproximarmos da real experiência das pessoas do passado" (p.54), de "compreendermos o passado" (mesma página), de o "interpretarmos" (p. 57).
Trata-se de uma nostalgia da perda e da recuperação de uma "totalidade histórica" que é evidentemente um mito, tão persistente na nossa maneira de ver o mundo que reaparece mesmo em contextos críticos como o desta inteligente autora.
"Nós não podemos saber como poderia ter sido" - é este o "mote" dos arqueólogos mais penetrantes, porque muitos dos outros acreditam. Mas em vez de continuar a insistir num falso problema, porque não se dedicam a estudar a realidade arqueológica, ou seja, tudo o que nos rodeia, com os olhos próprios de um arqueólogo?
E nesse "tudo", não estão apenas objectos, sítios, paisagens, coisas fixas.
Está toda fluidez da vida, está todo o espaço do conhecimento, que se não divide entre conhecimento do material e conhecimento do imaterial. É nesse mundo que temos de nos lançar, com o seu passado, presente e futuro, três modos da mesma consciência. Estar bem atentos às pessoas e aos temas que interessam os outros cientistas.
A arqueologia tem de abandonar a sua fixação no passado, no material, por outras palavras, no cadáver, no fixo, para se voltar para o fluido da nossa relação interpessoal, da nossa "manipulação" das coisas, da nossa improvisação, individual e colectiva, no mundo de todos os dias.
Nós não estudamos os restos de nada - nem do passado nem do presente. Nós queremos intervir na construção activa do futuro, como arqueólogos. Mas para isso, entre outras coisas, temos de dar alguns "saltos epistemológicos", como se dizia dantes.


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