Transferência: algumas notas
Este conceito, um dos mais básicos da psicanálise, deu o mote a este blogue (começado há quase um ano!), pelo menos ao seu título, exprimindo, não tanto um conhecimento, mas mais um desejo de conhecimento. Atrai-nos aquilo que não sabemos, em que suspeitamos poder estar o “segredo” que eventualmente dará sentido a uma série de coisas. Pelo menos temos de tentar, levados por um desejo que nos magnetiza.
Só que neste contexto, mesmo quem teve formação específica, tem dificuldades. A psicanálise é uma nebulosa complexa, em cada autor todos os conceitos estão conectados entre si, sofrem variações ao longo do tempo de investigação e de experiência desse autor, como é de esperar. Portanto, nada é fácil, e muito menos explicar em poucas linhas o conceito de transferência em Lacan, porque ele arrasta toda a sua obra, obra que eu estou longe de compreender.
Tentarei orientar-me nesta nótula pela obra de Darian Leader e Judy Groves mencionada noutra postagem, procurando obviamente, e a todo o custo, quer evitar o plágio (apesar de algumas coisas que vou dizer estarem muito “coladas” ao livro, sendo praticamente, nalguns casos, a tradução de algumas das suas frases, a partir da sua pág. 136 em diante) quer o escrever disparates. Vejamos. Peço desde já aos mais conhecedores que eu que me corrijam. Um blogue é um bloco-notas que, ao ser público, se oferece à critica e à correcção; e só nesse sentido é útil.
Cada um de nós sabe que “transporta” um conhecimento (e um sofrimento, no sentido de toda uma experiência traumática sem a qual não existiria) cujos contornos não domina; um conhecimento e uma experiência que estão apartados de si; quer dizer, o sujeito procura conhecer-se com a ajuda de outro, porque o sujeito sabe ser, para si próprio, uma espécie de “caixa negra”, uma multiplicidade de “eus” à procura não tanto de uma mítica unidade efectiva, uma verdade última de si próprio, mas de uma certa estabilidade emocional, quer dizer, de uma ficção que lhe permita algum equilíbrio. Por outras palavras, que lhe diminua o sofrimento, o mal-estar inerente à existência (podendo ser agravado em certas circunstâncias psíquicas), mas acima de tudo o sujeito deseja estar em diálogo, ter um interlocutor atento.
Ao submeter-se à análise, à experiência da transferência (que envolve basicamente a palavra, a associação livre, e sempre o perigo de uma deriva em que o analisando se pode começar a sentir a perder-se...) o dito analisando investe o analista em “sujeito que é suposto saber”. Não um saber de tipo esotérico, ou desvendador de segredos ou descodificador de sintomas: um saber que em princípio se dá apenas dessa forma simbólica, como pessoa/entidade que se dispõe a escutar, como pólo para quem é possível (é suposto) começar a falar, seguro de que esse analista está atento.
Algo porém na transferência, “o objecto a”, está no pólo oposto do saber. É que, quando começa a falar, o analisando pode sentir-se vitima de um logro, porque o que ele quer é fixar-se em algo de sólido, que escape à deriva do discurso, ao derrame das palavras, que se aproxime de um “inconsciente”. Mas aquilo que diz pode precisamente ter o efeito oposto, e servir, na sua proliferação, de elemento de obstrução desse almejado “desbloqueio”. A linguagem aliena o sujeito de si próprio, insere-o, desde que aprendeu a falar, na ordem simbólica. Por isso a transferência é ambígua. De forma que falar, em vez de representar um “avanço” do “saber”, pode eventualmente redundar em alienação e em separação, entendendo-se por tal uma separação em relação à cadeia de significação, uma aproximação do “objecto a”, uma procura de refúgio na relação fantasiada com esse objecto.
Qual o interesse de tudo isto? Enorme, porque nos mostra a complexidade, a opacidade, a especularidade de tudo, de toda a experiência do vivente. Não há um sentido último em que o sujeito se apoie, como o não há no analista. Há o estabelecimento voluntário e contratualizado de uma situação fora do quotidiano (da enxurrada de palavras que nos faz viver da e na ilusão) para tentar criar uma situação em que o sujeito aprenda a lidar com a sua fantasia, com o abismo que ele próprio é, e com a pergunta que faz a esse abismo, sabendo que tanto a pergunta como o abismo não tem eco nem fundo. Apenas uma pessoa que escuta, e um falante que se escuta.
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Foto: Sophie Pawlak
Fonte: http://www.ma-nouvelle-vie.net/index.php
Este conceito, um dos mais básicos da psicanálise, deu o mote a este blogue (começado há quase um ano!), pelo menos ao seu título, exprimindo, não tanto um conhecimento, mas mais um desejo de conhecimento. Atrai-nos aquilo que não sabemos, em que suspeitamos poder estar o “segredo” que eventualmente dará sentido a uma série de coisas. Pelo menos temos de tentar, levados por um desejo que nos magnetiza.
Só que neste contexto, mesmo quem teve formação específica, tem dificuldades. A psicanálise é uma nebulosa complexa, em cada autor todos os conceitos estão conectados entre si, sofrem variações ao longo do tempo de investigação e de experiência desse autor, como é de esperar. Portanto, nada é fácil, e muito menos explicar em poucas linhas o conceito de transferência em Lacan, porque ele arrasta toda a sua obra, obra que eu estou longe de compreender.
Tentarei orientar-me nesta nótula pela obra de Darian Leader e Judy Groves mencionada noutra postagem, procurando obviamente, e a todo o custo, quer evitar o plágio (apesar de algumas coisas que vou dizer estarem muito “coladas” ao livro, sendo praticamente, nalguns casos, a tradução de algumas das suas frases, a partir da sua pág. 136 em diante) quer o escrever disparates. Vejamos. Peço desde já aos mais conhecedores que eu que me corrijam. Um blogue é um bloco-notas que, ao ser público, se oferece à critica e à correcção; e só nesse sentido é útil.
Cada um de nós sabe que “transporta” um conhecimento (e um sofrimento, no sentido de toda uma experiência traumática sem a qual não existiria) cujos contornos não domina; um conhecimento e uma experiência que estão apartados de si; quer dizer, o sujeito procura conhecer-se com a ajuda de outro, porque o sujeito sabe ser, para si próprio, uma espécie de “caixa negra”, uma multiplicidade de “eus” à procura não tanto de uma mítica unidade efectiva, uma verdade última de si próprio, mas de uma certa estabilidade emocional, quer dizer, de uma ficção que lhe permita algum equilíbrio. Por outras palavras, que lhe diminua o sofrimento, o mal-estar inerente à existência (podendo ser agravado em certas circunstâncias psíquicas), mas acima de tudo o sujeito deseja estar em diálogo, ter um interlocutor atento.
Ao submeter-se à análise, à experiência da transferência (que envolve basicamente a palavra, a associação livre, e sempre o perigo de uma deriva em que o analisando se pode começar a sentir a perder-se...) o dito analisando investe o analista em “sujeito que é suposto saber”. Não um saber de tipo esotérico, ou desvendador de segredos ou descodificador de sintomas: um saber que em princípio se dá apenas dessa forma simbólica, como pessoa/entidade que se dispõe a escutar, como pólo para quem é possível (é suposto) começar a falar, seguro de que esse analista está atento.
Algo porém na transferência, “o objecto a”, está no pólo oposto do saber. É que, quando começa a falar, o analisando pode sentir-se vitima de um logro, porque o que ele quer é fixar-se em algo de sólido, que escape à deriva do discurso, ao derrame das palavras, que se aproxime de um “inconsciente”. Mas aquilo que diz pode precisamente ter o efeito oposto, e servir, na sua proliferação, de elemento de obstrução desse almejado “desbloqueio”. A linguagem aliena o sujeito de si próprio, insere-o, desde que aprendeu a falar, na ordem simbólica. Por isso a transferência é ambígua. De forma que falar, em vez de representar um “avanço” do “saber”, pode eventualmente redundar em alienação e em separação, entendendo-se por tal uma separação em relação à cadeia de significação, uma aproximação do “objecto a”, uma procura de refúgio na relação fantasiada com esse objecto.
Qual o interesse de tudo isto? Enorme, porque nos mostra a complexidade, a opacidade, a especularidade de tudo, de toda a experiência do vivente. Não há um sentido último em que o sujeito se apoie, como o não há no analista. Há o estabelecimento voluntário e contratualizado de uma situação fora do quotidiano (da enxurrada de palavras que nos faz viver da e na ilusão) para tentar criar uma situação em que o sujeito aprenda a lidar com a sua fantasia, com o abismo que ele próprio é, e com a pergunta que faz a esse abismo, sabendo que tanto a pergunta como o abismo não tem eco nem fundo. Apenas uma pessoa que escuta, e um falante que se escuta.
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Foto: Sophie Pawlak
Fonte: http://www.ma-nouvelle-vie.net/index.php