sábado, 21 de junho de 2008

O simples vira complexo, o barato sai caro, o feitiço volta-se contra o feiticeiro



Que quer habitualmente um historiador?
Reconstituir o passado, contar o que aconteceu, "como foi", antes de nós, sociedade e indivíduos actuais, aparecermos neste mundo. Ao narrar isso do seu ponto de vista, descreve e explica, ao mesmo tempo. Daí um certo horror, ou pelo menos distanciação, em relação ao filósofo. O historiador, mergulhado na variedade da experiência "realmente acontecida", acha intuitivamente que o filósofo só vem complicar as coisas, querendo ir aos fundamentos últimos e no fundo vindo na sequência da antiga teologia. A história teve séculos de luta para se constituir como "ciência positiva", criando protocolos de "objectividade". Para quê especular, se podemos saber o que aconteceu, e dar-lhe uma lógica, uma explicação ao mesmo tempo? Essa explicação é também uma explicação do presente, claro. Então, do ponto de vista desse historiador abstracto, bastante simples, o documento e os modos de o tratar são o fundamental. Encontrado e estudado o documento, trata-se de lhe expremer a informação. E essa informação irá juntar-se a outra, e outra, e outra, até um dia termos um "quadro geral" da história humana, que entronca, lá longe no tempo, com a história da natureza, e também com ela entroncava, lá longe no espaço, através dos primitivos actuais, um conceito que nos servia para descrever os outros, ou grande parte deles.
Estas noções aqui esquematizadas ao limite enformaram sempre os cursos de história e ainda os balizam, pelo que, nesta lógica, o documento arqueológico é um documento como qualquer outro, apenas com as suas regras especiais de abordagem, e a arqueologia, mesmo que o não diga ou admita abertamente, uma "ciência auxiliar" da história, do estudo do que alguns chamam "herança cultural", e que se estende a tudo, evidentemente, das paisagens e dos mais vulgares gestos, às grandes "obras do espírito".
Se isto fosse assim, se muitos autores não tivessem escrito longamente sobre a teoria e a filosofia da história e da arqueologia, se a história como campo do saber não tivesse ela própria uma longa história, se a filosofia não tivesse abordado sempre as questões do tempo, da temporalidade, da historicidade, o quadro acima podia manter-se maravilhosamente para as pessoas simples, quer dizer, que não gostam muito de problematizar. Apreciam a experiência "gostosa" (como diriam os brasileiros, no seu modo frequentemente sensual) do contacto com o passado, têm curiosidade pelo que "aconteceu na história", querem saber de onde viemos para perceber para onde poderemos ir - é este discurso, diria infantil, o que subjaz a grande parte das pessoas, e a uma boa parte de profissionais da história e da arqueologia.
Fazer um trabalho em arqueologia, quer dizer em história, é tapar um buraco do conhecimento, ou, se quisermos, destapar verdades esquecidas, escondidas. E assim todas adquirem algum valor, porque até um simples caco contém, ou pode conter, informações supostamente importantíssimas. Ele é afinal uma peça, ou sub-peça, desse imenso, interminável puzzle da reconstituição. Que precisamente por ser interminável é fascinante, porque há sempre novas coisas a descobrir.
DESCOBERTA é pois a palavra-chave desta atitude. Sem documentos não há história, com documentos escassos pouco se pode afirmar ou inferir, para épocas recuadas temos de usar da nossa imaginação, do nosso conhecimento do humano, das inspirações que nos transmitiram os antropólogos sobre os "primitivos actuais" e mesmo agora os primatologistas sobre os nossos "parentes biológicos" mais próximos, os símios. Também com a ajuda da biologia molecular se poderia traçar a história da nossa espécie, sempre dentro do mesmo quadro conceptual: aconteceu uma evolução, a essa evolução sucedeu uma modalidade mais rápida que foi a história, e a ligação entre a evolução (da natureza, das espécies) é a pré-história humana (para a distinguir da pré-história natural, os dinossauros, etc, todo esse quadro que excita miúdos e graúdos).
O PRÉ-HISTORIADOR é, ou seria, pois, um sujeito fundamental, um arqueólogo especial, na medida em que estabeleceria esse link entre a natureza, o que existia já antes de "nós", e a cultura, que foi aquilo que acrescentámos à natureza para poder sobreviver no meio de tantas espécies e ambientes hostis, acabando por supostamente nos sobrepormos a elas e eles toda(o)s.
Neste sentido alargado, a história confundir-se-ia com a colonização do mundo pela nossa espécie, colonização essa que, dizem-nos, estaria agora em vias de completar-se. Não há canto do planeta onde não tenha chegado o homem, graças aos meios de comunicação, à transformação em mercadoria de todo o espaço (incluindo progressivamente o sideral, pelo menos o mais próximo). A natureza é uma espécie de mulher à moda antiga - como não é possível comer o bolo e conservá-lo ao mesmo tempo, para possuirmos a natureza e a domarmos, para a domesticar (palavra que, lembro, vem do latim "domus"), para obtermos todos os seus frutos como "produtores", tivemos que a desvirginar. Foi uma missão nostálgica, ingrata, mas sem ela não teríamos sobrevivido, não nos teríamos reproduzido.
O problema é que ultimamente a dita natureza parece estar a querer vingar-se e a pregar-nos partidas. Os problemas ecológicos e o terrorismo são dois sintomas ameaçadores. A natureza afinal não é assim tão domável, ou, se quisermos, domá-la pode ter custos mortais para o domador (como aquele tipo do circo que acaba morto pelos leões que adestrou), e os outros, os primitivos, raivosos de tanta vontade de os tornar em clones de nós próprios, estão a responder com a nossa própria tecnologia (comunicações de toda a espécie) e a atacar o próprio coração do sistema de domesticação globalizada.
Talvez, portanto:
- a nossa forma de encarar e de contar a história, cheia de cientismo e de positivismo, pelo menos no modo simples do senso comum, não seja a mais acertada, podendo até lavrar num grande ERRO;
- seja preciso inventar uma nova forma de abordar estas questões e sobretudo de nos relacionarmos uns com os outros. Este é um problema POLÍTICO, mas também FILOSÓFICO, porque toda a política se legitima por uma filosofia espontânea.
A partir daqui, é preciso pensar uma arqueologia diferente. Foi isso que os melhores autores perceberam há décadas. Foi isso que ocorreu sobretudo com alguns autores (arqueólogos) etiquetados de pós-processuais, pós-modernos, interpretativos, etc.
Ao procurarem novos caminhos, eles NÂO DEIXARAM DE SER ARQUEÓLOGOS, AO CONTRÁRIO.
ELES SIMPLESMENTE QUISERAM SER ARQUEÓLOGOS MAIS CONSCIENTES E INTERVENIENTES, PERCEBENDO QUE AS POLÍTICAS E CONSEQUENTES NARRATIVAS HABITUAIS DA ARQUEOLOGIA NÃO CONDUZEM A LADO NENHUM SENÃO AO PROSSEGUIMENTO DOS MITOS EXPLICATIVOS E À JUSTIFICAÇÃO (TORNADA TOSCA) DE UMA DOMINAÇÃO QUE NÃO PODE MANTER-SE.

Não apenas em função de uma ética (nada muda neste mundo segundo bons princípios, isso é idealismo infantil), mas de uma muito interesseira e interessada vontade de construir explicação(ões) alternativa(s) que, necessariamente, se não baseiem na descriminação, na imposição de uma ideologia às outras. Para que a gente se salve. E a gente é toda a gente.
Voltarei a este assunto.

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