domingo, 29 de junho de 2008

Questionação breve a Boaventura S. S.


Em "Um Discurso sobre as Ciências", Porto, Ed. Afrontamento, 1990, p. 52) afirma a determinado passo Boaventura Sousa Santos:

"A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações da metafísica, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controlo dos fenómenos nada tem de científico. É um juízo de valor."

É claro que um trecho retirado (por acaso de leitura minha) de um contexto é sempre muito redutor em relação à totalidade da obra e do pensamento riquíssimos, de um autor da reconhecidíssima envergadura de BSS.

Gostava só de deixar um brevíssimo e fugaz apontamento, sob a forma de tópicos de reflexão:
- claro que explicações possíveis da realidade existem ou existiram milhentas, incontáveis, e muitas (a maior parte) terão sido extintas sem nunca passarem a escrito ou ficarem registadas. Assim, as "culturas" com escrita tenderam a impor as suas explicações às outras, e, entre elas, a nossa, ocidental, expansionista, de um ponto de vista económico, político, militar. A antropologia registou muitos "outros pontos de vista" mas traduziu-os para o nosso, pela escrita, pelo uso da nossa língua, pelo uso dos protocolos da disciplina, mesmo quando procurou o maior esforço de "neutralidade", dita "objectividade", possível (e às vezes precisamente em função desse esforço ainda nos deu uma visão mais centrada em nós). Há assim sob a crosta das explicações conhecidas (das ontologias, das filosofias, das cosmovisões, das cosmologias, etc.) uma enorme lava perdida e jamais recuperável. É muito importante fazer o luto do irrecuperável, ou seja, abandonar a nostalgia de um mítico todo e habituarmo-nos a conviver com a precaridade, com a perda, quer dizer, construir um pensamento para a vida humana e não para a vida eterna, uma assumida "ideologia", em vez de uma definitiva "teologia".
- a questão de uma explicação ser melhor que outra é puramente circunstancial, quer dizer, não há um critério absoluto de valor, transversal a todos os domínios de saber/experiência e de épocas, que nos permita a priori valorar uma explicação em relação a outra. Em cada campo somos conduzidos pelas regras desse campo, regras essas que nem são estanques, nem são obviamente imutáveis - tudo ao contrário.
- a ciência, como campo da actividade humana entre muitos outros, pode obviamente em cada circunstância decidir o que é melhor para determinado saber, de acordo com a comunidade de produtores desse saber. O mais comum é não estarem todos de acordo, como em qualquer actividade humana. Mas é também essencial que, pelo menos localmente, circunstancialmente, uma comunidade científica estabilize um conjunto de procedimentos por forma a poder dar continuidade a um processo de produção que envolve investimentos (nunca ingénuos nem movidos pela curiosidade, já sabemos, não estamos aqui em estado de virginal inocência) enormes, e arrasta/atrai interesses económicos e estratégios decisivos. Quer dizer, é de esperar que em ciência, sobretudo naquela que implica tecnologia cara, as pessoas se ponham de acordo, pelo menos em cada equipa (realidade que hoje está globalizada - uma equipa pode estar espalhada por todo o planeta, graças à net), por forma a validar um conjunto de normas de procedimento, que começam logo com a própria decisão de quais são os temas que se vão pesquisar e quais os orçamentos inerentes a tal processo. Isto é muito diferente do que pode acontecer com um artista plástico, trabalhando sozinho ou em equipa, quando decide fazer uma instalação ou pintar um quadro... como é evidente.
- uma decisão científica vale o que vale: é uma decisão humana como qualquer outra. Não é atestado de qualidade em si. Não existe tal, qualidade em si, nem selo em si, nem o zelador dos selos de qualidade em si, seja ele o Estado, ou Deus, ou qualquer outra entidade que a imaginação possa criar. Temos de viver com a precaridade e com a circunstancialidade de tudo, isto é, com o carácter político (quer dizer, gestor de interesses, e portanto valorizando sempre umas coisas em detrimento de outras) de qualquer decisão. Pode e deve - deveria - ser essa decisão avaliada, confirmada, não apenas pelos seus técnicos, não apenas pelos políticos, mas idealmente pelos cidadãos cientes, capazes de fazer tal. É aqui que a nossa sociedade contemporânea falha, porque a maior parte dos cidadãos não pode objectivamente ter aqui voz. Não há competência, não há massa crítica, não há tempo, não há ocasião, não há meios objectivos dos cidadãos comuns entrarem no "laboratório" ou no "ministério" da ciência, e de dizerem: se me permitem, tem mais valor irem por aqui ou por ali. Aqui põe-se o problema da representação em democracia formal, que é a que temos hoje. Quem representa quem, quem valida quem, e em nome de que interesses?... não estamos num mundo maravilhoso de anjos, mas num mundo de interesses e,evidentemente, de negócios. O "otium" deixou de estar ligado ao saber que rende, que rende dinheiro. E isso é que conta. Dinheiro e luta pelo prestígio internacional (o prestígio nacional em países como o nosso é um valor de relativa baixa cotação, à excepção das equipas/laboratórios de elite, que gerem os magros recursos), que é de novo dinheiro, capital simbólico facilmente transformável noutras formas de capital.
- portanto é óbvio que não há razões científicas para privilegiar a ciência, ou as suas decisões/conclusões, a não ser as que a própria ciência estabelece para si própria, em circuito até certo ponto fechado. O contraditório existe, mas é entre pares. Fora deles, e devido à alta tecnicidade existente, inerente à ciência moderna, é impossível a um indivíduo de fora ter uma opinião minimamente consistente. Vejo isso pela minha própria área de especialidade. Estamos sempre a falar de inter e transdisciplinaridade, mas até trememos quando algiém, de outra área, vem querer abordar o nosso campo. A primeira reacção é de defesa ou de precaução quase instintiva: lá vem este tipo falar do que não sabe... ou entra mosca ou sai asneira... e pomo-nos numa posição delicada de extrema atenção e complacência, desejosos de que a pessoa não diga algo de que temos mesmo de discordar, porque cai mal em muitas circunstâncias sociais, que se fazem de um ritual de partilha. É uma chatice discordar, ou emendar outra pessoa, sobretudo se ela é um grande vulto na sua área, e até mostra abertura para com a nossa. Parece mal. Assim, os equívocos da (in)comunicação proliferam. Porque a discordância seria o mais esperável, e o mais interessante...
- a ciência não é apenas previsão e controlo dos fenómenos, tanto quanto me parece. É evidentemente muito mais que isso, como bem sabe BSS. É um sistema de vivência e de produção de conhecimentos que desconfia das intuições, improvisações, crenças espontâneas, e cria protocolos para, pela intermediação tecnológica, proceder a análises que permitam elaborar modelos e teorias partilháveis, ou seja, intuições e crenças suficientemente avalizáveis por parte dos poderes públicos para que eles continuem a investir nelas, baseados nos resultados objectivos conseguidos na vida prática (produção de mais máquinas, tratamento de doenças, intervenção qualificada em todas as esferas de decisão, o chamado desenvolvimento, etc.). Os políticos precisam dos cientistas - como aliás de todos os outros produtores de formas de vivência, inclusive religiosa... - guardando-se o direito, que delegámos neles (nós que não temos tempo nem outras condições para governar, de administrar) de tomar as decisões finais, para bem ou para mal... há aqui uma questão de confiança, que é inerente à democracia. Evidentemente que quando olhamos para muitos chefes de Estado, mesmo europeus, ou membros das oposições concorrentes, vemos por que é que essa condição constitutiva da ideologia democrática está em crise.
- é preciso, creio, vermos a ciência como uma esfera imprescindível da actividade humana, mas, tal como a arte, a religião, a filosofia, o que se queira, eivada de interesses e de circunstancialismos, uma realidade histórica como qualquer outra. Há muitas formas de racionalidade, e uma delas é a científica. Chamar irracional a outra forma de racionalidade é evidentemente uma atitude política e ideológica, como o é tratar como crença a visão do outro, erigindo-me em decisor (de um ponto de vista superior, portanto) da inferioridade do outro. Um decisor por vezes benevolente, tolerante, o que é a ideologia do neoliberalismo. Todos podem coexistir desde que isso dê lucro e não perturbe o sistema. Este, quando verdadeiramente ameaçado, instaura logo restrições à democracia, porque essas restrições (por exemplo, o famoso estado de excepção que Agamben discute) são inerentes a todo o poder, mesmo o democrático. Um poder não o seria se não pudesse ultrapassar-se, demarcar as condições do seu exercício, mudar as fronteiras de onde até pode ir. Este ponto é fundamental. Não há nunca poder sem abuso de poder, sem privilegiados e sem excluídos. Não é pelo poder ser "mau": é porque sem excluídos, sem fronteiras, sem ameaças, o poder não serviria para nada, e seria então utopicamente preferível a an-arquia, quer dizer, a ausência de poder formal, ou seja, a perda do fundamento, dos arcontes e dos arquivos, da legitimação pela representação. A democracia está ligada ideologicamente a uma metafísica da representação.
- o que distingue então basicamente uma obra de arte de uma obra de ciência? A resposta seria, como se compreende, longa. São duas formas de produção de constructos que se baseiam no rigor, num rigor contra-intuitivo. Mas enquanto que na obra de arte a legitimação daquilo que ela propõe se faz a posteriori, pela aceitação social dos seus fruidores e críticos, na obra de ciência a legitimação tem de ser feita de algum modo a priori, devido às condições concretas do processo de produção, a que acima aludi. Isso implica um conjunto de regras partilhadas, perfeitamente convencionais na base (uma axiomática), mas que "funcionam", desembocam em efeitos, que deveriam ser úteis, partilhados, e menos dirigidos à guerra e à sofisticação crescente dos meios de controlo dos indivíduos, dos povos, e da destruição da heterogeneidade que existe no nosso planeta. Infelizmente não é esse o caminho acelerado que as coisas levam. Desde que comecei a escrever esta postagem, quantas desgraças aconteceram no mundo em nome do desenvolvimento ou de qualquer outro princípio legitimado, e portanto em última análise da ciência? Não podemos ter desta uma visão inocente, mas diabolizá-la pode parecer que estamos a voltar, ou a querer nostalgicamente voltar, a formas de vivência e de saber que fazem parte do passado. Não é isso. Relativizar a ciência através de uma distanciação crítica não é querer voltar a qualquer forma de bruxaria ou de xamanismo, como fazem certas seitas contemporâneas, que representam uma forma de exclusão carnavalizada.

- há que des-sacralizar a ciência ao mesmo título que há que des-sacralizar tudo o resto... e para quê? Para que a nossa existência possa re-sacralizar constantemente o mundo, em todos os seus aspectos, inventando novas formas de inserir nos templos da canonização, da autoridade, não apenas uma pequena parcela da experiência humana, mas parcelas maiores, em nome da heterogeneidade e da solidariedade, que é sempre um modo de nos protegermos contra a incerteza do futuro, a violência e a agressividade do outro. Incluindo a atmosfera que nos permite respirar, viver.


Hei-de voltar a estes assuntos...

1 comentário:

vacalouca disse...

Este assunto, como muitos outros, é extremamente complexo. E, por vezes, a complexidade desmotiva-nos para falar. É verdade que o conhecimento dito cientifico (das ciências duras) tem tanto valor humano como outro qualquer, e esta pensava eu, é a minha crença. No entanto, como ocidental que sou (e que cada vez mais compreendo que sou) vejo o mundo através de um filtro, o ocidental. E este filtro está presente em todos os meus pensamentos, mundanos ou não. Eu passo a explicar, quando ficamos muito doentes vamos a correr ao médico (dos hospitais) e depois se estivermos muito aflitos vamos à dita medicina alternativa (não a dos curandeiros a verdadeira medicina alternativa, praticada há muitos anos, por. ex. acupuntura). Se o médico de medicina alternativa for de opinião contrária àquele da medicina tradicional ocidental, entramos num dilema e normalmente confiamos que tudo corra bem e nunca chegamos a contrariar o nosso médico tradicional. Porquê?

Por vezes intuimos que estamos bem mas só acreditamos no exame (esquecendo que o exame erra, esquecemos que o examinador conta para o resultado final). No fim o que conta é esse nosso "template",nós podemos lutar contra ele, podemos lutar toda a vida, mas quando estamos mesmo aflitos é na segurança da nossa memória (enraizada de cultura ocidental) que vamos buscar o conforto e a esperança.
É a vida....