domingo, 29 de junho de 2008

a propósito de...feminismo

Encontro num texto que me submeteram a seguinte transcrição de uma obra que não conheço ("Women Writing Culture", ed. por Ruth Behar e Deborah Gordon, publicada pela University of California Press, Berkeley/London, 1995); trata-se de uma série de questões levantadas por Ruth Behar (p. XI):

"What does it mean to be a woman writer in anthropology, a discipline deeply rooted in the narrative of the male quest? How does it change the history of anthropology to truly take seriously the writing of women anthropologists? Is there an ethnographic practice that is uniquely feminist?"

Gostaria, mais uma vez apressadamente, como a vida exige, de fazer a propósito alguns (magros) comentários.

- uma mulher a trabalhar e a produzir obra em antropologia significa mesmo isso, uma mulher a trabalhar e a produzir obra em antropologia.
Como porém "uma mulher" é uma abstracção redutora, e "antropologia" um campo convencional de investigação, a coisa complica-se.
De facto, o que é ser uma mulher? Cada mulher é diferente de outras, e é diferente de si mesma, na medida em que cada ser humano é muitos, é sobretudo o olhar de todos os outros (suposto ou imaginado) sobre ele. De modo que nem chega a ser, excepto como fantasia. Assim uma mulher é um ser humano que não só foi "socialmente construído" como mulher, mas que se fantasia como tal. Ora, sendo as fantasias voláteis e extremamente "íntimas", quer dizer, da ordem do desejo e dos seus fantasmas, não sei o que cada mulher, em cada momento (por exemplo, quando se assume como antropóloga) projecta na sua própria imagem. Não sei, nem posso saber, o que significa a pergunta que ela a si própria se põe. Nem ela mesma. Cada ser humano foi "performado" naquilo que não sabe que é...
Trata-se portanto de um enigma, se quisermos fugir dos lugares-comuns já muito batidos da sexualidade, dos estudos de género, da revolta contra as etiquetas das chamadas opções sexuais/sentimentais, etc. Este é um campo armadilhado. Mas há algum domínio que o não seja? Só se for o dos condomínios fechados, dos transatlânticos em cruzeiro (coisa tão foleira) e os das estâncias turísticas standard de tipo "Méditerranée".
Sem dúvida que a antropologia foi sobretudo um trabalho de indivíduos ditos "masculinos". Sem dúvida que a multivocalidade é essencial nesta disciplina, como em todas as outras. Sem dúvida que o que seria importante seria, por uma vez, ouvir directamente a voz dos antropologizados (mulheres, homens, o que fosse), em vez dos seus antropologizadores (dos seus "tradutores", ou seja, dos seus "traidores"). Mas, passando essas vozes para o lado da antropologia, já não estarão a falar do lado de cá, como elites educadas pela cultura escrita, quer dizer, formatadas pelo nosso modo de pensar? Claro que sim... de modo que a coisa (esta problemática) não é de facto fácil. Às vezes uma forma muito "prá frente" de postura é apenas um modo de legitimação, no mundo académico ocidental, e de aí encontrar um nicho... um tanto exótico... um nicho ainda não preenchido, um lugar que "vende"... e logo estando na modo o etno, o alternativo, tudo isso.


Claro que a história da antropologia tende a ser cada vez mais inclusiva. Ninguém aliás que escreva uma história da antropologia como as já existentes consegue editor. O feminismo, a par de toda a sua enorme pertinência, vende. É o que está a dar, sobretudo em países como Portugal onde não há tradição séria destes estudos. É evidente que os movimentos feministas modificaram o curso da história, e temos todos de os estudar e de lhes estar grato(a)s, porque mesmo quando muitas(os) activistas erraram no alvo, "puxaram as coisas para a frente", visibilizaram o reprimido, o oculto, a obscena hipocrisia patriarcalista. A emergência da "mulher" (passe a abstracção simplista) é a maior revolução do fim do século XX e irá continuar por todo o século XXI, esperando-se que práticas ancestrais de domínio e de absoluta objectivação dos seres e de manipulação dos seus corpos terminem no hemisfério sul. Sou contra todas as tradições que perpectuem horrores, contra todos os actos que, em nome dessa obsessão da autenticidade cultural (?) perpetram crimes contra o nosso semelhante e mesmo contra o nosso dissemelhante. Um direito internacional continua a fazer muita falta, e sabemos muito bem por que é que os senhores deste mundo pouco se preocupam com isso.

Claro que hoje - acho - já ninguém poria a questão de uma "prática etnográfica" especificamente feminina. Não há uma essência feminina, a mulher foi uma projecção do seu "criador", o homem... e não vou entrar na complexa problemática, por exemplo, da discussão lacaniana sobre isso, e das muitas feministas lacaninas e pós-lacaninas...
Naturalmente que, junto de certas comunidades, ser "homem" (para voltar aos estereótipos) ou ser "mulher", não permite ter acesso ao mesmo tipo de vivência e de universos, que estão muito separados (por exemplo, no mundo islâmico, como todos sabemos), e portanto de "informações". Daí que hoje, na continuação dos orientalismos, dessa mitologia, proliferem os livros-testemunho das mulheres do "Oriente" que conseguiram sair da miséria e da escravatura e "revelar" ao Ocidente todo babado as suas aventuras e desventuras. E isso vende.
Não, temos de ter uma postura mais séria e mais complexa nestes domínios. Em nome de tantos biliões de seres "femininos" que já sofreram e morreram. Haja dignidade, uma ética do silêncio.
Por isso sou arqueólogo. As mulheres da Pré-história, tal como as de Auschwitz, já não se podem queixar. Nem as crianças. Nem todos os explorados, os infortunados, os sacrificiados. E eu, que me dou ao luxo de os pensar, e que me abeiro deles, não quereria desrespeitá-los. Silêncio, pois. Um pouco de respeito nas perguntas que se fazem.




4 comentários:

vacalouca disse...

Tenho que dar a mão à palmatória, como mulher, e concordar com um homem. de facto, toda a minha vida tenho lutado pela igualdade das mulheres e tenho tentado contribuir, através da minha vida, para que a mulher seja vista pelo homem como um igual, para o bem e para o mal. Quer através da visão da amizade quer da competição, afinal só competimos com aqueles que pensamos como iguais e por isso para um homem competir com uma mulher, tem que de certa forma a sentir como igual. mas hoje não acredito em muitas tretas que acreditava há uns anos. Infelizmente muitas vezes a febre do feminismo serve apenas para perpetuar o abismo entre o géneros, ser feminista é também ver o homem como um não igual.
Há que saber medir os nossos objectivos e analisar bem as nossas acções pois por baixo de slogans muito batidos que parecem verdadeiros encontramos as mentiras que perpetuaram no futuro tudo aquilo que pensamos estar a combater.

famel disse...

Felizmente nunca lutei pela igualdade das mulheres. Continua a achar que deve estar cada macaco no seu galho.

Nós mulheres podemos fazer tudo, mas ainda bem que há cavalheiros para nos fazerem sentir mulheres e lembrar que certas coisas é melhor serem feitas por homens!

coeur de pirate disse...

a propósito...

antes de encalhar nas perguntas de uma fatia de texto quase anónimo, em sinal de respeito, não valeria a pena ler o livro?
há respostas, perguntas e garantidamente muitos silêncios. ...ou deverei dizer mudez?
eu, que me abeirei do seu texto, não quereria desrespeitá-lo...

Vitor Oliveira Jorge disse...

Gogmagog: Claro que os livros são para ler e não apenas para deles recolher citações ocasionais... mas um blogue é um conjunto de notas, em princípio... são sugestões, impressões, coisas que nunca se publicariam num texto "científico".Com tudo o que isso tem de arriscado, está claro (as notas soltas mas o científico também). Desrespeitar, porquê?...
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Vaca louca: não se esqueça de que os estudos feministas e as reivindicações feministas são coisa séria que implica muito estudo e que diz respeito a todos, homens, mulheres, etc. Não é um problema sectorial nem que se possa ver "à vol d'oiseau"...
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Quanto a famel, diz coisas óbvias, não é? Assim mesmo um bocado pró primárias, mas pronto! Com o devido respeito, boas aventuras cavalheirescas.