em cada dia que termina, isto é, quando uma pessoa decide ir dormir, há qualquer coisa que termina para além desse dia e de todos os que o antecederam.
Não dizer o que é esse algo mais, não o conceber, é fundamental para manter todas as suas potencialidades.
Mas eu arrisco. Afirmando o óbvio, o banal: interstício, algo de adiado, de entrevisto, qualquer surpresa-surpresa-mesmo, que o(s) outro(s) quase nunca provocam, não sei porquê. Cada dia, apesar de todas as surpresas, apesar de ser algo de único, confirma-se a si mesmo como um dia chão, apesar de alguns breves saltos, ou sobressaltos. Haveria de haver algo que, depois de todas as coisas que acontecem, ainda brilhasse na nudez da noite, como uma lamparina sobre a totalidade do mar.
É isso que chateia. Que incomoda em ir dormir. Como se fôssemos crianças, obedecendo à chamada fisiologia e suas boas regras como fazíamos relativamente às ordens dos pais. A aparente conformidade de todos a estar conformes a, por exemplo, cada um ao seu projecto, ao seu programa, às suas rotinas e hábitos.
Até um aventureiro, mesmo um malfeitor, a dormir, é um bicho (temporariamente ao menos) domesticado. Aceitou qualquer coisa, adiou algo para o dia seguinte, por exemplo o golpe perfeito.
Daí o fascínio das criaturas que nunca dormem, ou que só à noite actuam, com os seus olhos dilatados, e capas forradas interiormente a cetim vermelho. Mas mesmo essas voltam sempre temporariamente ao seu repouso, seja nas páginas dos livros, seja nas bobinas dos velhos filmes, seja agora nos pixels que temporariamente as juntaram como figuras do algo mais que almejamos e que, como um horizonte, nunca acontece.
Apenas variamos, uns para os outros, no tipo de trepidação, de exposição pública, na economia da glória efémera, na capacidade de nos produzirmos ora como pequenos deuses, anunciando algo que julgamos que os outros devem ouvir, ora como pequenos animais, comendo, defecando, dormindo com a maior dignidade possível, como se fôssemos seres naturais, organismos tão só, e contentes de o sermos.
É nisso que penso quando encosto a cabeça na almofada: por que não chegaste ainda, hoje?
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