terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Conferência em Coimbra - CES



III Ciclo Anual Jovens Cientistas Sociais 2007/2008

Conferência
A Cultura Popular Portuguesa e o Discurso do Poder: Práticas e Representações do Moliceiro


9 de Janeiro| 17h às 19h | Sala de Seminários do Centro de Estudos Sociais

Clara Maria Laranjeira Sarmento e Santos – ISCA, Instituto Politécnico do Porto 


Resumo І "A Cultura Popular Portuguesa e o Discurso do Poder: Práticas e Representações do Moliceiro" estuda um objecto e o discurso por ele evocado, enquanto representação, invenção e reinvenção da cultura popular de uma região portuguesa. Contudo, esta comunicação pretende também ver através do objecto, isto é, "atravessar a [sua] opacidade inoportuna", tal como propõe Michel Foucault em A Arqueologia do Saber. Esse objecto é o barco moliceiro
da Ria de Aveiro que, mais do que um caso de tradição versus modernidade, constitui uma representação da identidade cultural de uma comunidade intimamente ligada ao ecossistema lagunar. Os painéis do barco moliceiro são assim representações simbólicas intersemióticas dos valores, práticas e representações partilhadas pela comunidade local. Os textos icónicos e escritos patentes em cada barco são produto de uma rede de circunstâncias políticas,
ideológicas, sociais e económicas, dificilmente reconhecidas mesmo por aqueles que desenham, pintam e escrevem (e vivem) sob a sua influência. Ao longo do século XX, o moliceiro e seus painéis participaram numa complexa dialéctica entre as representações do discurso oficial e a sua real função social, económica e simbólica, gerando todo um imaginário histórico, todo um "inventário" (cf. Gramsci) que motivou, contextualizou e sustentou esta forma única de
arte popular.

Comentadores: António Sousa Ribeiro e Tiago Alves


Poderá consultar o programa na íntegra do III Ciclo Anual Jovens Cientistas Sociais em
http://www.ces.uc.pt/misc/jcs3.php

1 comentário:

Anónimo disse...

Bonito.

Rudolfo Martins

O carteiro Elias ícone de resistência


Leonor Paiva Watson, Manuel Correia

Elias Pires, ou Ti Elias para os mais novos, bem podia ser Elias ladino, tal o empenho que há 34 anos põe na distribuição do correio, em Alcains, próximo de Castelo Branco. A pé, por 12 quilómetros, porta à porta, entregando 700 cartas diariamente, o carteiro Elias é a história de um Portugal distante, onde as casas vestem de granito, as estradas são caminhos, o frio corta os ossos e as velhinhas trajam de preto enfeitando as soleiras, à espera de uma carta de França ou de Lisboa, onde estão os filhos.

O carteiro Elias é aquele profissional que vai atrás das pessoas, mesmo que o destinatário da carta não tenha morada, número, ou caixa do correio. Mesmo enfrentando eventuais problemas de toponímia, tão difíceis de resolver nas pequenas localidades e tão próprios das grandes (ver página ao lado). Elias Pires representa a boa vontade, tão importante no sucesso dos CTT.

Um percurso de amizades

O percurso começa na Rua do Álamo e percebe-se, mesmo antes de começar, numa curta visita às instalações dos correios ali sediados, que o carteiro Elias é o mais velho, o que escapou a contratos a prazo e a outras importações do género, que "não deixam os poucos jovens terem tempo de se entregarem de corpo e alma ao que fazem". Mas "é uma camaradagem muito porreira", defende.

De mala às costas, já a caminho, queimado pelo sol e com os cabelos todos brancos disfarçados pelo boné, conta que queria ser polícia mas que assim não foi porque, por duas vezes, reprovou "devido a uma deficiência num dedo do pé". O filho, com 22 anos, cumpriu-lhe o destino. "É polícia, sim senhor", orgulha-se.

Traçando os paralelos diz que não entregou cartas ao general Ramalho Eanes, mas que entregou à "Senhora Dona sua mãe". Fala de memória das histórias de vida dos seus "clientes" e entende que, sem curso ou obrigação, é psicólogo e confessor, ou, tanto melhor, bom ouvinte.

Chegados à Rua Espírito Santo, bate na porta do antigo bispo de Angra do Heroísmo, D. Aurélio Granada Escudeiro. Afável, D. Aurélio elogia o trabalho do carteiro e garante que este nunca lhe falhou uma carta, nos 12 anos que ali mora, na casa contígua à capela que apresenta um bonito púlpito exterior.

Confrontado com a sua competência, Elias Pires garante sempre em tom assertivo que "não senhor", que também falha como toda a gente, embora reze a história que não, e todos por aquelas bandas lhe conheçam o mérito.

Segue rumo expulsando o frio e diz que devemos ir visitar D. Antónia Carrega, que mora na Rua Professor Simões Carrega. Não chegamos a perceber se há grau de parentesco entre D. Antónia e o professor que deu nome à rua. O carteiro Elias bate à porta, mas não há quem responda.

"O senhor Elias é nosso"

Prossegue e na esquina com a Rua das Fontaínhas aparece D. Antónia. De mãos à cabeça, apressada no seu metro e cinquenta, vestida de negro, com o lenço a esconder o cabelo e o rosto de 85 anos feito numa casquinha de árvore, atira com os afazeres diários. "Ai que me tocou o telefone e julguei que o home estivesse mais mal". Prostra-se depois na casa da irmã e conta que dorme na casa dela porque àquela "morreu-lhe há pouco uma filha de repente e tem o marido acamado vai para 12 anos".

Minutos depois, estavam as duas na soleira, falando dos altos e baixos da vida e pegando nas mãos de Elias. "Ele é o melhor. Às vezes, vem cá outro, mas não gosto dele. Gosto é deste. O senhor Elias já é nosso. Quando ele vem, a gente sabe logo que é ele, até parece, menina, que o bater da porta é diferente. Nunca falha".

O caminho continua e jamais alguém é indiferente ao carteiro mais famoso lá do sítio. O regresso chega depois em circunferência e não se vêem muitos restaurantes ou lojas do que quer que seja. Sobressai o Lar do Major Rato, que é "para onde vão os velhinhos quando se cansam de estarem sós". À chegada aos correios, alguém, mais novo, brinca "Atão, Ti Elias, já deu a sua entrevista?". O carteiro sorri, encolhe os ombros, ruboriza.