segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Lugares

Nós hoje, com a banalização do transporte aéreo, que ainda por cima se compra em nossa casa pela internet, como um livro ou qualquer outro produto, passámos a ter uma percepção completamente diferente do espaço.
Não se trata apenas de aceleração (que P. Virilio tanto acentuou, acertadamente), como já vinha acontecendo com os comboios/caminhos de ferro no séc. XIX, ou com as auto-estradas e os automóveis no séc. XIX (eles próprios obviamente muito rápidos em relação ao transporte por barco ou usando cavalos, anterior).
Trata-se, como milhentos autores já trataram, da criação de um novo sentido de trajecto, de deslocação, de viagem, e portanto também de lugar, que é o ponto em que paramos ao longo de um trajecto ou em que nos fixamos (mais ou menos temporariamente, nesta vida) para habitar.
O lugar torna-se abstracto em relação à nossa anterior percepção baseada no ensino dos mapas e à nossa vivência consolidada na incorporação progressiva, vivenciada, dos lugares.
Creio que a ideia de Marc Augé sobre os não-lugares continua a fazer sentido, em relação aos aeroportos, por exemplo.
A grande quantidade de pessoas e a "rentabilização" capitalista dos espaços faz com que os aeroportos sejam sítios de passagem e de desconforto, quer dizer, onde é difícil a fixação afectiva e a centração no eu. São sítios de desconcentração e de alerta, de in-sociabilidade, porque a sociabilidade só é possível a partir de um certo equilíbrio e bem-estar pessoal, que hoje são muito acossados pelo stress. No entanto muitas pessoas procuram estes lugares ainda na lógica de um encontro, e tentam "romantizá-los" a todo o custo... a sua ilusão provoca a quem a vê um sentimento de nostalgia.
Na verdade o trabalho poético de "humanizar" os aeroportos (de os agarrar a uma memória), como qualquer outro lugar (área de serviço de auto-estrada, por exemplo), existe sempre, mas pode ser votado ao fracasso pela dificuldade de, neles, se encontrar um nicho de individualização.
Os aeroportos estão massificados e só um número muito limtado de VIP's poderá, se é que tem tempo, ligar um aeroporto ou suas imediações a uma experiência de encontro e de descoberta, quer dizer, a uma experiência não maquínica.
Com o caos sobretudo das horas de ponta, das filas, das perdas de bagagem, das pessoas a telefonar para todo o mundo enquanto caminham pelos corredores tentando evitar obstáculos, por vezes emocinando-se a falar para uma espécie de nada e agarradas ao aparelho, o aeroporto não permite recolhimento. As palavras circulam como numa babel de loucos. O aeroporto é a Babel moderna.
É preciso ali uma atenção vigilante, que é a inimiga do recolhimento, do ser. Arrasta-me para fora de mim, para uma situação abstracta de máquina em que eu já não estou, mas sou apenas um autómato procurando perfazer as acções necessárias para não perder o avião. Um autómato com o número, o do bilhete e depois o do cartão de embarque.
De modo que o momento de maior stress que era a descolagem (pelo menos para mim) se transformou agora num momento de algum júbilo (sobretudo depois de horas de atrasos), de ilusão de, ao menos por algum tempo, nos desprendermos desta terra e de apenas termos eventualmente de aturar um passageiro ao lado demasiado gordo, uma criancinha demasiado barulhenta, ou de conter o abdómen para não termos de utilizar uma cabina sanitária manifestamente a evitar sempre que possível. Fingimos que lemos, nomeadamente um jornal qualquer se já não havia o Público ou o DN, fingimos que comemos umas coisas plastificadas que trazem e que servem sobretudo para nos entreter nos lugares (passageiro vira menino, diria brasileiro), fingimos que muita coisa, esperando que a viagem acabe depressa, pois que o sono entrecurtado começa a produzir um estranho sabor na boca.
A disciplina física de contracção é penosa ali dentro, e se há muita turbulência os espíritos inquietam-se. Sorte quando uma equipa de jovens desportistas adolescentes, identificada com cores, ou de "putos" em férias de grupo (cada "turma" com os respectivos líderes, tipo escuteiros), não faz parte dos passageiros... as tribos em espaços pequenos e fechados, não dá, a não ser para os membros das ditas.
Mas o que me importava deixar aqui era uma reflexão sobre os lugares. Nós hoje não viajamos, somos transportados. O avião é uma espécie de catapulta. Literalmente despeja-nos num sítio parecido com o anterior (claro que há sempre algo que dá uma cor local, mas os aeroportos são todos iguais, e quando não são não é nada bom sinal, pois são diferentes para pior, tipo aeroporto de certos locais do terceiro mundo, deus me perdoe).
Depois saímos da linha para entrar no labirinto e encontrar as conexões: comboio, autocarro, outras linhas (apenas aqueles que têm dinheiro para táxis se podem dar ao luxo de abstrair dessas abstracções que são as linhas que temos de seguir para não nos perdermos, para não sair da linha certa e entrar na errada, ou entrar demasiado tarde na certa. Tempo e espaço estão aqui geometrizados da forma mais estrita, quer dizer, mais economicista).
Quando finalmente uma pessoa se acha num quarto de hotel (o que mal pode crer, após a maquínica indiferença - que pode revestir a figura do sorriso pepsodente, claro - com que é tratado na recepção), pousa a mala, e alivia o corpo das expulsões mais urgentes, verificando se há televisão, o primeiro impulso é ir para a janela. Tentar ver onde se encontra, reposicionar-se numa geografia. Objectivo em geral vão, mesmo que passe ao lado um rio maravilhoso e a pessoa saiba o nome do rio.
Tranquilizada a família sobre como tudo está a correr bem (estou bem, fica bem, logo telefono, vai tudo correr bem vais ver, não, não posso ir aí hoje, estou noutro país, o que é que vim aqui fazer? eu depois explico, havemos de nos ver, fazer e acontecer, está bem, etc) o desgraçado pode finalmente começar a abrir a mala onde esconde uma pequena geografia compacta em que se reconhece. Merece um parágrafo.
Este é o meu pijama, deixa pôr aqui, esta é a pasta de dentes, até que enfim, este é o casaco para pôr amanhã. etc. A colocação destes objectos em certos sítios é vital. Desde a saída de casa que o passageiro não tinha um "espaço próprio": aqui por momentos ele sente-se viajante, até pode levar o portátil (coisa cada vez menos aconselhável) e aceder aos mails (se estiver disposto a gastar o dinheiro inerente ou souber as maneiras de o evitar, ou se já não estiver farto de mals até aos olhos), e, maravilha, ver os mesmos canais de televisão que em casa, à excepção dos do seu país de origem (é irrelevante, porque em geral são irrelevantes; uma mocita da televisão de Taiwan a apresentar um noticiário ou uma tenista mesmo não russa podem ser eventualmente mais aprazíveis).
Passada toda esta fase, a pessoa pergunta-se: deixa ver o que eu vim fazer aqui, sobre o que é que eu vou falar. Tenho de me preparar para aquela pose, entre a afirmação convicta e a atenção à crítica, à pose do outro. O justo equilíbrio, o que se espera exactamente de mim, entre o modelo e algumas idiossincrasias. A performance dos congressos, os elogios, as excitações, os copitos para descontrair nos intervalos, as perguntas de circunstância, a formação de tribos efémeras, o afastamento.
Vai-se vendo os livros para venda, já é um ganho, ou fingindo que se estuda a programa para não perder pitada, e pedindo aos deuses que não apareça aquele(a) interlocutor(a) que, desgraçadamente, aparece sempre. Comunhão de pensamentos, estava mesmo a pensar em si, já não nos víamos, deixe-me lembrar: isso, foi desde aquele congresso! Então mulher, marido e flhos, resto de família, tudo bem? Que livro é que disse que está agora a preparar?... pelo título, deve ser algo de renovador, muito interessante.

Mas para que isto tudo aconteça, é preciso estudar o mapa da cidade, do metro, do autocarro, seja do que for, sobretudo para não falhar a hora da nossa intervenção, a responsabilidade.
Anda-se quilómetros, por vezes, para merecer uns minutos de atenção dos outros, cheio de sono e tentando articular um discurso noutra língua, esforço que em geral os estrangeiros não fazem (bastantes espanhóis ou franceses, antes avessos ao inglês, estão agora a fazer grande esforço, mas por vezes a linguagem resultante exige grande concentração de atenção por parte dos auditores - com honrosas excepções, é claro).

Suor, cansaço, correrias, espaços vazios, compartimentos ou hangares de espera, tudo como, de certo modo, noutros lugares, tais como os consultórios médicos: um enorme vazio plasmado nas revistas ao dispor sobre as mesas.
As entretelas sociais, que serviam para encher os interstícios, são agora a própria estrutura alucinada da realidade: e nos interstícios sorriem umas meninas nos aparelhos de televisão omnipresentes, fantasias de carnaval, publicidade em que se transformou o espaço público, uma constante publicitação do seu vazio. O espaço público é um enorme balão que todos os minutos enchemos de ar, no terror de o ver desfalecer, porque um balão vazio tem um certo ar esquisito, pode parecer um signo daquilo que é.

São estes os nossos lugares. E muita sorte, enquanto há saúde e emprego. Puxar é pela agenda, para ver quando e onde são as próximas deslocações (sempre imprescindíveis, a vida é movimento), e se tenho os meus códigos, contactos e esquemas todos organizados, nesta vida maquínica, abstracta, onde é preciso é saber qual o sinal a que é preciso obedecer para dar o passo seguinte, para não falhar. Sobretudo nunca falhar.
Ou então ficar doente, tem toda a gente "pena" de nós, pelo menos durante um tempo, e habituam-se a que somos uma máquina já gasta. Sucata fica tranquila enquanto não vem a camioneta do aterro.
Apre, hoje estou muito cinzento. Deve ser da cor da letra que escolhi, influencia. The medium is the message. O processo de fabrico da coisa faz a coisa e vice-versa.
Toca é a voltar à vida real, senão ainda perco o transfer. Movimento, energia, viagem.



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