sábado, 7 de abril de 2007

está aí alguém?




dás-te sempre a ver de forma tão subtil que a tua presença, como a destas flores que enchem jardins e de que só o cego sente o intenso odor, é uma espécie de prenúncio, de aviso, de ligeiro clarão que está em torno das coisas, definindo contornos, quando essas coisas precisamente não estão.
não são fragmentos de ti que me aparecem: são pedaços de frases que pronunciei no passado a perguntar por ti, isso sim, eis o que me trazem as águas a cada movimento, ou o vento, a cada ligeiro espasmo.
mas é tudo imaginação do texto, o qual pede ao poeta para emendar tal ilusão; e então o poeta volta-se para encarar o homem que julga ser: mas só vê a parede horizontal da praia, a areia muito lisa, colada ao silêncio e à sua cor de tijolo.
as próprias gaivotas estão imóveis, com um olhar fixo, e nas mais próximas detecta-se um rasto de sangue saindo-lhes das pupilas: choram a nostalgia indefinida, diz alguém assertivamente em off, com uma risada.
há uma tremulação, mas não de bandeiras, ou de panos de toldos em fim de tarde: antes de grandes rochedos que a vaga embebe, neles deixando cravados milhões de pequenos orifícios, em cada um dos quais o teu fôlego parece querer aparecer, as tuas papilas respirarem.
é o momento anterior a uma transgressão do mar que só ocorrerá num passado que já se deu daqui a milénios.

as estrelas do mar dançam compondo figuras de music hall, sob uma música vibrante.
numa fresta, um olho humano aparece, mas a vista não repara nele – antes se dilata sempre para o futuro, no sentido de qualquer coisa que ainda não apareceu.
como te digo: tudo se passa ao fundo de um corredor de que se não enxerga o fundo; há sons de vozes, portas abrindo e batendo dentro do cérebro; progride-se a custo com os olhos em sangue, esbugalhados como os de peixes no segundo antes de morrer.
e de outro lado de um espelho uma família senta-se à mesa para jantar, à hora certa, cada qual com uma máscara do animal que todos trincham, contentes por histericamente celebrarem o facto de estarem juntos, auto-complacentes.

há por todo o lado orifícios: por eles, como minúscula câmara subaquática, o texto penetra, levantando os limos do fundo. em breve deixará de poder progredir neste ambiente? quem o pode garantir? todos os salva-vidas sairam para férias, e das cidades portuárias partiram milhões de entes que se espalharam na atmosfera e só deixaram as narinas no ar, dilatadas, procurando, ao que parece, absorver odores sempre diferentes, num delírio incansável de sensações.

está alguém aí? pergunta o texto antes da exaustão das últimas sílabas; ou antes, é na sua rouquidão agonizante, como se o fio da vida lhes saísse da laringe agarrado a uma agulha de coser vermelha, que se julga entender a formulação de qualquer pergunta.

na euforia das imagens e das metáforas, num bailado de vaudeville, alguém ou alguma coisa se afoga, com a felicidade dos que finalmente vêem os seus próprios olhos a boiar à superfície de um mar de álcool. branco e brilhante.
e a história poderia continuar indefinidamente, porque os seus ornatos são a própria arquitrave do edifício.
é o que tem esta poética: é um fluxo, uma música, que quando iniciada, só pára contrariada no fim da pauta, para se iniciar logo na composição seguinte.
há um tempo para tudo, e é preciso também pensar no leitor, que está disposto a remakes, mas não indefinidamente, claro.

começar ou acabar seja o que for, dividindo tudo em compassos, eis a pura arbitrariedade, que porém tem de se apresentar como ardoroso, culto artifício, para os comentadores discretearem até ao fim do mundo sobre o que aquilo significa, as suas múltiplas conotações, intenções, flutuações.
como se bandos de peixes ou pássaros continuassem sempre a dirigir-se para o futuro, estratigrafados, em camadas sucessivas, mas filiadas numa teoria natural.
ou como se a côr verde do fundo do universo fosse ocupada por incontáveis olhos, espreitando do interior da sua própria dilatação, mirando-nos e envolvendo-nos como estrelas dançantes, traquinas.


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