quarta-feira, 11 de abril de 2007

portas


quando abrimos uma porta, ou dobramos uma esquina, ou superamos um obstáculo que se nos atravessou no caminho (como por exemplo um valado alto que não nos permite continuar a progredir numa certa trajectória) nunca sabemos o que nos espera a seguir. uma porta pode dar para um abismo, e aí um deslize maior ou menor do pé no soalho desgastado determina o futuro.
mas também uma porta pode abrir-se sozinha, do lado de lá, ou esconder o habitante desconhecido de outro espaço-tempo, cuja respiração ofegante e repetitiva simultaneamente temíamos e desejávamos.

por detrás de uma porta pode estar a luz do paraíso, a sua lenta incandescência, como a de uma vela que ilumina toda a casa ao fim da tarde; ou apenas a pena caída de um dos muitos anjos da anunciação; ou a lágrima tombada da escolhida; ou uma escama brilhante de armadura do guerreiro, o que atravessou incólume milhares de lâminas, o voltejar dos gumes implacáveis como aves. ou...

do lado de lá pode encontrar-se o esplendor, o corpo nu, com a sua brancura deitada como a morte ou como a chuva da trovoada, com um relâmpago a atravessá-lo ao meio, à espera.
e então a escrita interrompe-se, põe uma marca como num livro, e abre-se para a lufada de futuro que vem do fundo, não sei qual, um fundo de sombra, um fundo que pode chegar da geografia dos lençóis e da ondulação dos músculos, das dobras contínuas exigidas pelo próprio desenvolvimento das frases, ora soerguidas, ora apaziguadas.

às vezes abrimos uma janela e encontramos um vulcão extinto, com flores e pássaros em volta, e sons de filme antigo, as suas raparigas de saias em tecido escocês.
outras, tentamos correr uma cortina, mas esta não se mexe: e com toda a razão, porque é do lado de cá que o olhar precisa de se concentrar para se iniciar a narrativa, com a intimidade e a ansiada perversão dos interiores.
não sabemos. as possibilidades são infinitas; e os rostos fascinantes, que se nos dirigem com intencionalidade, ou que nos miram entre um olhar e outro, podem proliferar; mas talvez todas essas experiências estejam contidas num enorme, interminável parque infantil onde gostamos de abrir e de fechar portas, entrar em labirintos, chocar às vezes uns com os outros, sentir ligeiros transes, iluminar zonas que estavam há muito na escuridão, ter sensações vulgares e outras épicas, ajoelharmo-nos junto às linhas de buxos do amor, na ânsia de que nos suguem, de que nos levem para dentro de si, talvez para um lado de lá.

há pessoas que inventam histórias, personagens, para poderem dizer por detrás do imaginado tudo o que se não atreveriam a afirmar, mas sobretudo para se entregarem à luxúria de jogar com as personagens que criaram e cuja trama depois dizem ter-lhes escapado ao controlo.

outras entretêm-se em êxtases religioso-eróticos, cuidadosamente encenados, masturbando-se contra paredes em que parece quererem entrar e nelas se confundir; fazem-no junto a imagens douradas de talha, e pedindo a deus que as trespasse com o seu incansável ardor, que as trilhe contra os degraus dos altares, inalando essências.

por mim, fascinam-me acima de tudo interfaces, coisas supostamente paradas, superfícies brilhantes e lacadas nas quais descubro uma espécie de movimento contido, como o desejo da virgem antes de ser desflorada, o brilho da porta antes de ser aberta, a pele da mulher sobre a qual aprendi a fazer uma incisão.
aproximo-me de muros, de troncos de árvore, de limiares, tento encher as unhas de argila ou atravessar a pele com pequenas farpas de madeira; subjugo-me à altura dos arcos, atravesso naves e grutas, vejo o olhar assustado de adolescentes, sorrio para a candura das ruas, para a sua persistência.
mas de facto tudo isso me cansa, queria ser água e sair de uma fenda, entrar e sair de mundos, engendrar e dar à luz, espalhar sémen de homem, de mulher, e de bicho, misturar em tigelas condimentos diferentes, entregar-me a actos de magia ou de cozinha com a naturalidade de quem mexe em palavras, e sabe que há sempre um pano branco ao fundo, ou um fio de água, onde se libertar do seu ranho, onde se poder purificar, quer dizer: preparar a atenção para um novo limiar.

enfim, estar disponível para ti, oh sabedoria imprevisível, mulher que carregas o corpo de frutos maduros como se fosses um manual de botânica, e que me hás-de de novo absorver no teu movimento experiente, fazendo-me sentir rapaz, quer dizer, o iniciado que leva aos ombros o brilho de todos os peixes já pescados, o que abriu uma porta que vem directamente do mar.


copyright voj 2007

Fonte da imagem: http://www.cm-proencanova.pt/
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2 comentários:

Anónimo disse...

a imagem deste post está ao contrário!

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado pelo reparo, mas isso não tem importância neste contexto...