Recentemente um amigo arqueólogo contou-me esta história: que um dia, ao referir a um colega antropólogo o seu campo de interesses, nomeadamente na psicanálise, este lhe tinha dito que receava que esse meu amigo estivesse a cair numa espécie de solipsismo, de se voltar para si mesmo, em vez de estudar o outro, como arqueólogo que é.
O mesmo amigo tinha achado curiosa alguma coincidência com uma outra situação, quando um grande arqueólogo "da velha guarda" (um processualista), no fim de uma apresentação que esse meu amigo fez, lhe tinha perguntado se não achava que corria o risco de uma certa "self-indulgence" relativamente a algum "pós-modernismo" que esse meu amigo assumia. Não dominando os meandros do inglês, e não querendo precipitar-se, mas antes fazer o outro "abrir um pouco mais o jogo", esse meu amigo pediu-lhe para explicitar melhor a crítica.
E o colega mais velho disse que a sua afirmação tinha um aspecto pejorativo, isto é, que visava referir que o pós-modernismo (incluindo o interesse renovado pela psicanálise...) no fundo não era o seu clube, e insinuando aquela ideia muito ouvida de que afinal todas essas noções desconstrutivistas não passam de um relativismo legitimador de tudo, e do seu reverso.
Esta história desenrolava-se na relação com colegas ingleses, já agora vale a pena explicitar.
Ficando a matutar naquilo, até porque esse meu amigo quer mesmo, segundo diz, ser um tipo auto-crítico, e está tudo menos convencido de que tem razão, interrogou uma amiga que tem conhecimento profundo do inglês sobre as conotações da tal "self-indulgence".
Ainda assim, foi ao dicionário mais à mão, no computador, que reza deste modo, sobre o indivíduo "self-indulgent":
"self-indulgent
adjective
characterized by doing or tending to do exactly what one wants, esp. when this involves pleasure or idleness : a self-indulgent extra hour of sleep.
• (of a creative work) lacking economy and control."
E, no thesaurus da mesma entrada, acrescenta-se, por exemplo, as seguintes conotações do termo: "hedonistic, pleasure-seeking, sybaritic, indulgent, luxurious, lotus-eating, epicurean; intemperate, immoderate, overindulgent, excessive, extravagant, licentious, dissolute, decadent. Antonym: abstemious."
Entretanto, essa amiga do meu amigo disse-lhe o seu ponto de vista, que ele me enviou por mail (somos amigos comuns):
"O adjectivo "self-indulgent" tem várias conotações, que andam geralmente associadas. Em termos de processo criativo, ao indivíduo "self-indulgent" faltam a economia e o controlo (formal, por ex.), porque ele faz e diz sempre o que quer e/ou lhe dá prazer. Há um outro adjectivo que, não sendo propriamente um sinónimo, anda geralmente associado à "self-indulgence": "self-serving". O indivíduo "self-serving" (ou "self-seeking") está apenas interessado em satisfazer as suas necessidades ou em obter vantagens para si próprio, sem ter em consideração os outros (ou usando os outros como instrumento ao serviço do seu ego inflado)."
"Achas", terá perguntado então esse amigo à sua interlocutora, "que eu tenho esse "defeito", por assim dizer?"
Ao que ela, que não tem papas na língua, lhe terá respondido (nada disto é segredo entre nós, volto a referir que somos amigos comuns): "sofres de uma forma de obstinação que roça, de facto, a self-indulgence - tens sempre de ficar com a razão e ganhar todas as discussões, que não passam as mais das vezes de monólogos. "
Aí esse meu amigo confessou-me ter ficado um bocadinho perturbado (ninguém gosta, sobretudo de uma amiga, de ouvir tão cortante crítica, mas ao mesmo tempo é bom ser-se severamente examinado, endurece a pele e permite aguçar a auto-crítica) e perguntou à companheira dele, uma mulher com quem vive há muito tempo, se realmente ela achava que ele era assim.
O termos todos uma certa proximidade permitiu a esse meu amigo confessar-me a reacção da companheira, que ainda (como é natural) teve menos papas na língua, e lhe disse mais ou menos isto (transcrevo do mail que com o conhecimento de ambos ele me comunicou). São portanto palavras da companheira do meu amigo, caracterizando-o:
"Eu diria uma coisa muito simples: quando discutes com alguém, o que” apanhas” dessa conversa é sempre alguma coisa que confirma o que disseste ou que vais dizer. Como no jogo...em que se atira bolas à parede. Só existe o jogador, a parede e a bola.
"Os teus interlocutores são a parede. Não porque, de facto, o queiram ser, mas porque o teu jogo só inclui a parede, a bola e tu. Tu atiras... e o que te é devolvido é ...um argumento, uma ideia, um movimento auto-confirmativo, dependente do impulso de atirares à parede. A parede –as pessoas- devolve-te, não de forma simplesmente especular, mas sempre tutelada pelo teu arremesso, o que lhe envias. Não há interacção inter-pessoal. Existe um sistemático movimento circular entre ti e ti , através duma bola, tendo como suporte de embate uma parede. O resultado é, para a parede, uma “sensação” sufocante de inelutável impotência. A parede, material inerte, desprovido de autonomia intencionante, está ali para receber boladas. A parede tem de ser resistente para não se danificar com a força das bolas que recebe. E tem de estar sempre pronta a ripostar, mesmo quando o jogo se transforma numa interminável, entediante, solitária, desesperada.. forma de sobreviver... pela acção mecânica da física... Não sei porquê mas isto faz-me recordar “2001 Odisseia no Espaço”. Sobretudo no fim, quando o astronauta vai envelhecendo, numa magnífica sala cheia de espelhos. Até morrer. E tudo voltar a um começo. Porque o jogo é interminável. Sufocantemente interminável."
Aí este meu amigo ficou seriamente preocupado. A sua estabilidade emocional ficaria em causa se não estivesse, disse-me ele, já tão habituado (desde miúdo) a ser severamente criticado.
Então, eu perguntei-lhe: "és masoquista, para andares a suportar tão cortantes opiniões, tanto de colegas como de amigas? Isso pode desequilibrar-te." Ao que ele, a quem me liga uma amizade de infância, e conheço bem, me respondeu: "sabes, há sempre nas críticas que nos dirigem pessoas amigas algo de verdade; tu próprio já chegaste a insinuar-me coisas parecidas, embora de forma mais soft. Mas provavelmente o meu principal problema é expor e expor-me de forma aparentemente (nota: disse aparentemente) tão grande, que as pessoas se sentem à vontade para me dizerem o que pensam e sentem com alguma virulência, para não dizer agressividade. Vale-me aqui a psicanálise", disse-me.
"Ok, tu lá sabes", respondi, "mas acho que a tua vida relacional é complicada, a não ser que sejas mesmo "indulgent" para com as pessoas que mais estimas."
O meu amigo foi logo ver ao dicionário mais à mão, de novo no computador:
"indulgent
adjective
having or indicating a readiness or overreadiness to be generous to or lenient with someone : indulgent parents.". E no thesaurus, as conotações da palavra: "Indulgent
adjective
permissive, easygoing, liberal, tolerant, forgiving, forbearing, lenient, kind, kindly, generous, softhearted, compassionate, understanding, sympathetic; fond, doting, soft; compliant, obliging, accommodating. See note at lenient .
antonym strict."
"Ok", disse-me o meu amigo, "a vida continua".
"Fica bem", pá", repondi-lhe eu ("há gajos que têm uma vida mesmo difícil, coitados, e os tempos hoje não estão para brincadeiras", pensei para os meus botões).
13 comentários:
"O problema de todos nós"
O problema do seu amigo é o problema de todos nós. A maioria das pessoas só se relaciona com outras quando estas possuem um sistema de valores, ideias e preconceitos similares aos seus. Quando alguém com quem conversamos não se "encaixa" naquilo que nós "acreditamos" mesmo quando estamos imbuídos de um espírito tão critico que pensamos em nada acreditar, simplesmente, afastamos essa pessoa pois a achamos "estranha". Acharmos alguém inteligente está relacionado com o que essa pessoa diz sobre ela e nós concordarmos.
O desafio é não gostarmos de alguém e pensarmos, se os outros gostam algum valor esta pessoa deve ter por isso vou teimar até conseguir perceber o que é que os outros vêem nela. É isto que eu tenho feito com autores que desgosto num primeiro contacto mas aos quais retorno para tentar uma nova aproximação que me revele o porquê do fascínio de outros por eles. É claro que na esfera pessoal, quando conhecemos alguém que nos "perturba", não temos a referencia geral da sociedade, como no caso de um filósofo, romancista, investigador, etc. Não há nada que nos indique que aquela pessoa possa ser mais do que imaginamos e por isso desistimos muito mais rápido.
Patrícia Amaro
E as relações humanas tencionam a caminhar sobre essa conotação "self-indulgence", espécie de narcisismo neo-barroco-pos-moderno, onde o sujeito passa a se dobra em seu em-si-mesmamento de bola contra a parede.
O outro, nesse exercício de "como viver juntos", torna-se quase um não. Não fosse a possibilidade de existir alguém que torne a língua-palavra dita-palavra escrita, um catalisador trasformador dessa relação: sujeito-bola-parede.
Saudações,
www.maquinomovel.com
Estou de acordo com tudo o que a Patrícia diz.
Gosto também da palavra "perturba" para caracterizar o que pretende, e é tão subtil. Só a seguir creio que simplifica um pouco, porque trata dessas questões da "perturbação" como se fossem coisas racionais, conscientes. A maior parte do que somos e nos motiva passa-se (creio) ao nível do inconsciente e de qualquer coisa que é o desejo, mais concretamente o desejo amoroso, o desejo relacionado com uma atracção que nos move totalmente... aí, se desistimos, é porque saímos desse estado de encantamento, que às vezes pode demorar uns minutos, umas horas, ou uns anos... e pode até recidivar, a vida é tão compleca e tão feita de meandros imprevisíveis...aliás, quando falamos desta maneira estamos de facto a falar de nós, do que julgamos ser e do que julgamos ser a nossa forma de proceder. Não há uma verdade nas pessoas e no fundo ninguém tem razão: há de facto desejos, amores e ódios mais ou menos ténues, e isso foi o grande mérito de Freud ter descoberto... as razões para aderirmos a uma pessoa ou dela deistirmos são quase insondáveis... daí o fascínio da transferência (e contra-transferência...) psicanalítica, na medida em que nos pode ajudar a descascar muitas "explicações" ilusórias, substituindo-as pelo menos pela dúvida. A psicanálise, se bem entendo, é o exercício da dúvida. E nisso está perto da arte, da poesia, da pulsão mais íntima do ser... inantigível, porque não há nenhum quarto escuro a fundo em que a verdade esteja à espera, mas o prazer do percurso... da indecidibilidade...
Sim, mas a história do "seu amigo" serve, no final, como auto justificação e simultaneamente para uma condescendente acusação a uma suposta incompreensão com que os outros olham para si, perdão, para o seu amigo. Maravilhoso dicionário.
Caro anónimo, foi fulminante!
G.L.
Ao anónimo (que não assina): eu não estava a falar de mim... quanto ao meu amigo... penso que todos temos um pouco de narcisismo e daquilo que vem contrariá-lo... e equilibrá-lo se possível. O que me surpreendeu na história foi a "violência simbólica" dos discursos... revelador, não? A mais pequena quebra de pose do sujeito faz com que os outros, mesmo amigavelmente, lhe saltem em cima... para umas bicadas subtis. Amor e ódio,unidos!
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Quanto à Galinha, não sei... uma boa noite!
O seu amigo tem conversas consigo de grande intimidade. É bom ter assim amigos! Já quanto à amiga e à companheira do seu amigo, diria que parece que..."encheram o saco". Mas nunca se sabe o que se esconde por detrás dum saco cheio. Para já..o Vítor tem garantido um Amigo!!!
Eu diria que o seu Amigo Imaginário enfiou uma grande carapuça - senão como se justificaria tal preocupação em torno das "indulgências"? Não nos preocupamos assim tanto com coisas que consideramos à partida despropositadas.
Acho contudo, uma vez que o caso foi posto à consideração do vasto público deste blog, que o seu Amigo Imaginário deveria ser mais positivo em relação à questão. Nada há de mais fresco, estimulante e indutor de um bom passo na nossa auto-análise que uma carapuça bem enfiada.E se quem nos enfia a carapuça é, ainda por cima, um amigo, uma companheira...ainda mais seria prudente que o barrete fosse tido em consideração de uma forma positiva. Não se tratam de "ataques", mas da revelação de uma forma de nos entender "por fora", o que pode ser precioso para a nossa contínua metamorfose.
De alguma forma, o seu amigo está portanto a ser imprudente e pouco inteligentemente obstinado na contemplação do seu próprio umbigo e do seu mimo descompensado. Diria mais, na intuição o seu Amigo não percebe nada de psicanálise, caso contrário sorriria e ajustaria confortávelmente o seu novo barrete cabeça.
Alberto Gaspar Pimentel
Uma crítica nunca é despropositada se for feita por uma pessoa inteligente. Pode ser severa e é com certeza sempre parcial, mas é melhor estar atento às críticas. Por isso me identifico com esse amigo na sua preocupação... é um problema de identidade. Se quiser, é um roblema de amizade. Os problemas por vezes afectam-nos como se fossem connosco... talvez porque também nos punhamos a nós próprios os mesms problemas. Quanto a mim, estar atento a críticas não é enfiar carapuças - é o contrário...
Eu não disse que o meu amigo percebe de psicanálise.
Por mim, tento estudá-la, mas como sabemos não há uma mas milhentas psicanálises, algumas das quais interessantes, outras nem tanto. Parece-me. Vou precisamente ler agora um texto que me acabam de enviar...
Talvez não, Alberto. Quem sabe se o Amigo, em vez de descompensado e com falta de humor, não está apenas a contar uma elaborada ficção para atrair a atenção do Vítor? A amizade tem coisas que a razão ignora.....
hmmmmm...mas, cara Galinha, isso seria como a cauda tentando atrair a atenção da boca da serpente para formar o círculo de Ouroboros!
Alberto Gaspar Pimentel
"A sua estabilidade emocional ficaria em causa se não estivesse, disse-me ele, já tão habituado (desde miúdo) a ser severamente criticado." - não querendo ainda mais contribuir para a desestabilização emocional do seu Amigo, e pedindo-lhe portanto que lhe não revele este comentário, se assim o achar por bem, mas diria que esta self - vitimização, ou self - heroicização, quase apelando a uma imagem de seu próprio martírio (já desde miúdo!repare-se.), atira mais lenha para a fogueira da self - indulgence... Mas anime-o! Se esse for o seu único defeito ou a única gralha no seu percurso, que agradeça ao processualista mais velho, à amiga sem papas na língua e à companheira com menos papas na língua ainda, porque lhe estão a dar a chave beijada para a perfeição! Eis a vantagem dos barretes!
Alberto Gaspar Pimentel
Claro, Alberto: você,a patrícia, o miolo,eu,etc... a juntar à amiga e à companheira do amigo do Vítor (se os nossos comentários forem passados a ele pelo nosso caro admnistrador do blog), fazemos todos parte duma galeria de retratos... que tem a secreta(?) missão de fazer sorrir o martirizado Amigo! É um presente que o Vítor dá ao seu Amigo. O círculo de Ouroboros...somos nós todos!
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