quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

pessoas...


"Nós nunca nos interessamos por pessoas, isso é um mito romântico e ingénuo."...

Dizia eu numa postagem de ontem... o que eu queria mencionar é evidentemente uma banalidade...
Referia-me à concepção vulgar, comum, de pessoa, em tudo o que ela representa de "aparência" indecifrável para mim, começando por mim mesmo e pelas pessoas que me estão mais perto.
A proximidade, a intimidade, não revelam nenhuma verdade obscura ou mais autêntica da verdadeira "pessoa" por detrás da máscara, como o senso comum constantemente propaga. Multiplicam o enigma do outro, povoando o nosso "campo perceptivo" de mais sinais... Era isso que eu queria basicamente dizer.

Ou seja,teoricamente conhecer a pessoa seria fazer uma espécie de "escavação" nela (através da linguagem, da conversa, mas também através dos inúmeros elementos de comunicação que mutuamente se transmitem, para além da linguagem verbal) até encontrar o seu verdadeiro "núcleo".
Claro que na vida de todos os dias só um indivíduo mentalmente doente ou sofredor (infelizmente abundam... para não dizer que somos todos cada vez mais...) procede assim, ou pelo menos não tenta uma certa forma de equilíbrio que lhe permita viver, uma certa plataforma de "equilíbrio prático", de negociação com a estranheza do outro.

É também naquela mitologia da profundidade versus superfície que repousa a arqueologia, e muito do conhecimento corrente, que todos usamos, e que está permanentemente a usar o tropo de que "é preciso aprofundar isto", "é preciso aprofundar aquilo".

Ninguém quer ser superficial... e no entanto há muitas maneiras e consequências de aprofundar (pode-se mesmo escavar um buraco fundo que desabe sobre nós, e é o que acontece a tantas pessoas que quanto mais julgam "aprofundar", por exemplo um tema, mais provavelmente se enterram, numa iteracção permanente de rotinas, de que o coleccionador compulsivo será um exemplo clássico) e muitas maneiras de nos mantermos à tona, numa visão mais articuladora e amplificante, mais horizontal, mais abrangente e dinâmica. É nesse sentido talvez que se pode dizer que a profundidade está na pele...

Debruçarmo-nos seriamente sobre algo, sobre o outro, sobre um tema, sobre um objecto de atenção concentrada, não significa querer absorvê-lo, mas pode ser assumido de uma forma, não diria mais leve, mas menos obsessiva. Implica uma estratégia, obviamente. É aí que bate o ponto.

O que também acontece é que, noutro plano, a pulsão, ou paixão, incluindo a paixão do conhecimento, ou a paixão de olhar ("scopic drive") e mesmo a atitude vulgarmente dita de "comer com o olhar", não se rege por regras conscientes.
Querer reduzir uma pessoa a um "sujeito cognoscente" e a essas "regras conscientes" será a perdição, se bem percebo, das teorias mais redutoras sobre o sujeito dito racional (o que planeia, friamente faz opções, enfim, o que julga proceder ao modo da máquina - a máquina, a sua suposta perfeição e desempenho é a sua fantasia, o seu fantasma).

É aqui que a psicanálise revela toda a sua pregnância. Porque ela instala o desejo na base da vida, do conhecimento. E esse desejo não é algo de cartografável e previsível, que o sujeito do desejo possa presentificar a si mesmo, racionalizar, tornar transparente, elaborar em discurso final. Ele instaura uma potencial força subversiva... mas que, como todas, pode afinal ser também ela domada, ainda reforçando o senso comum e a vida banal.

Esse desejo não é também algo de misterioso e esotérico (infelizmente abundam no nosso país, onde há tão pouca cultura científica, as prateleiras das livrarias com livros de esoterismo e outros produtos kitsch para boas almas em busca de si mesmas, e que se deixam levar pelo mercado e pelos produtos que estão nos escaparates... deuses meus!), apenas "é", na sua realidade de algo que se furta às molduras do entendimento "racional", as quais procurariam, em última instância, uma totalidade absurda.

Seres da contingência, surgidos neste mundo sem explicação (essa só a vamos percebendo - construindo - à medida que crescemos e reformulamos a nossa biografia e identidade, dia a dia), só ganhamos uma vivência minimamente rica (menos sujeita à submissão ou à deprimência) se vivermos nele a felicidade precisamente de não haver uma chave última, uma moldura abrangente, uma explicação total, um conforto infantil.
Um útero protector onde voltar, ou um seio que identifiquemos como a continuação de nós mesmos, ou um pólo paterno que nos oriente e nos ajude a fazer a triangulação necessária à nossa autonomização... tudo passos pelos quais provavelmente temos de passar, para chegar a uma plataforma adulta.

Ou, a admitir aquela unidade última, a que muitos dão o nome de Deus (como fazem os teólogos), pensá-la ao menos como incorporando a complexidade das problemáticas filosóficas contemporâneas, que aliás derivam da teologia e até da mitologia arcaicas. Pensar é que é importante...pensar criticamente, pensar que podem estar erradas as nossas mais arreigadas convicções, o que nos é evidente...

Um bom conhecimento teológico pode ser uma base essencial para se perceber a modernidade europeia (ver por exemlo Agamben). O problema é que a maior parte das pessoas (em qualquer área de estudo) fica demasiado formatado pela disciplina, de tal modo que, quando quer emergir do mergulho, já aparece à tona como peixe esquisito. As pessoas com forte formação teológica por vezes reconhecem-se logo... mesmo que vão em jeans ou que pratiquem uma série de "desportos modernos". Isto não envolve nenhuma crítica...nem vontade de ridicularizar. Somos todos ridículos quando não somos capazes de nos assumir como ridículos. O melhor palhaço não é aquele que chora detrás da máscara de palhaço... esse é um palhaço em sofrimento. O melhor palhaço (o palhaço que eu gostava de ser...às tantas até sou!) é aquele que tem prazer em o ser. Ser palhaço é uma coisa bonita, diverte imenso o próprio e os outros. Ser palhaço é ser feliz.

É uma ilusão pensarmos que conseguimos suficiente distância em relação à ambiência que nos constituíu... por isso muitas pessoas temem a universidade e procuram ser autodidactas. Há mesmo uma série de culturas marginais, ou de fuga (New Age, etc, etc.). Fuga fútil. Folclore por vezes risível. Mas não somos todos, a nosso modo, risíveis?... neste circo que é o mundo não nos podemos levar a sério - e se não houver "variedades" não se vende bilhetes e o circo fecha. É preciso a mulher com barba, os trapezistas, os palhaços, os bichos acrobatas... e algma coisa que é dada como extra (como os brindes nos supermercados) para nos manter no consumo. Um brindezinho por conta do que o Lacan chamaria "o objecto a". Cito aqui Zizek numa das suas conferências.

Porque os supostos auto-marginalizados vivem afinal numa ilusão paralela: a de que o autodidactismo (quando não a recusa de todo e qualquer estigma da "civilização"... comer só alimentos crus, por exemplo... há hoje em dia gente para tudo! é um supermercado de excentricidades incrível) é a liberdade.
Não é, a deriva e a ausência de regras, anárquica, ou a auto-exclusão (?) para um mundo supostamente puro e natural, primevo, a nada conduz senão à paródia ou finalmente ao desespero. É preciso um quadro de referência até para o contestarmos. E o quadro de referência emoldura-nos sempre, inelutavelmente...

Mesmo os que andam pelas florestas armados em Robin Hoods modernos (como eu vi em França, em 1996) estão dependentes da sociedade pós-industrial em que vivemos e são o seu mais profundo produto, o seu reverso paródico. Acabam por esmolar (não são agressivos) quando vêem pessoas como nós, os integrados...
Faz é talvez pena ter de conviver com tudo isto, com todos estes sintomas de que vivemos numa sociedade doente (mas houve alguma vez alguma sadia, como propugnavam os jovens da minha geração, uns projectando-a no passado - flower power - outros no futuro - ditadura do proletariado para atingir a sociedade sem classes, quer dizer, o céu na terra?... é óbvio que isso nem faz sentido, mas muitas pessoas morreram ou apanharam da polícia por essas causas)!

Mas voltando a algo de mais "sério":
Para Lacan (v. Dylan Evans, "An Introductory Dictionary of Lacanian Psychoanalysis", London, Routledge, 1996, p. 195) o termo "sujeito" está presente desde o início da sua obra, numa variedade de acepções como era de prever.
O que nos importa, seguindo Evans, é o sujeito como entidade única, elemento da realidade simbólica, em última análise dependendo do inconsciente. Diz Evans: "o "sujeito" de Lacan é o sujeito do inconsciente". (ib.) Diferencia-se do "ego" (que pertence ao imaginário), constituído (e Evans cita Lacan, ib.) "no seu núcleo por uma série de identificações alienantes."
É sobre o sujeito (o sujeito do inconsciente) que a psicanálise procura intervir.
Para Lacan, o conceito de sujeito (id. ib.) "refere-se aos aspectos do ser humano que não podem (que não devem) ser identificados (reificados, reduzidos a uma coisa), nem estudados de um modo "objectivo".
O assunto é muito comlexo, e mesmo filosoficamente há conexões entre o sujeito lacaniano e o cartesiano (cf. id., p. 196). Não sou competente para abordar tais matérias.

Apenas concluo com uma última citação do mesmo livro (p. 196), que traduzo do inglês - sempre com o objectivo de tentar alertar para a complexidade dos temas quando saímos do mero senso comum ou do registo opinativo tão típico dos blogues e que a minha mensagem de ontem exprimia:
" No discurso filosófico, [o termo "sujeito"] denota uma auto-consciência individual, enquanto que no discurso legal denota uma pessoa que está sob o poder de outra (por exemplo, uma pessoa que está sujeita [que é súbdita] do soberano). O facto do termo possuir esses dois sentidos significa que ele ilustra perfeitamente a tese de Lacan sobre a determinação da consciência pela ordem simbólica: "o sujeito é sujeito apenas em virtude da sua sujeição ao campo ["field"] do Outro."


PS- Com se reparou, ao emendar alguns erros ortográficos desta postagem, acabei por acrescentar mais algumas frases. Um texto é um tecido. Sempre me impressionou, quando era miúdo (não havia pronto a vestir, só alfaiates e coisas que eram feitas em casa) a habilidade com que as mulheres concluíam um bordado, ou acabavam de tricotar umas meias ou uma camisola, e davam aquele último toque para acabar o trabalho e ter o objecto pronto. Um texto é um tecido, mas nunca tem dobra final, podia sempre voltar a desdobrar-se... como as ondas na areia. Jamais páram, mas temos de lhes voltar costas, porque cansam... até um novo regresso, e deslumbramento.

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foto: Matt Haber
Fonte:
http://www.matthaber.com/

2 comentários:

Anónimo disse...

Torna-se difícil comentar uma postagem sua, pelo menos, por duas razões:
1 - é difícil ter o seu nível de argumentação porque como é óbvio, a maioria dos leitores, não possui o seu nível de conhecimento. Não conhece autores e livros citados e quando os lê já não há memória da postagem que gerou aquela referência (não que ela não esteja no blogue simplesmente já passou e outras já a substituíram em importância). Mas sobretudo não consegue conceber as ideias pelos mesmos moldes ou directrizes que o autor do blogue concebe as suas ideias. Em suma, não consegue argumentar contra sem cair no lugar comum, do ignorante a falar para o sábio.
2 – quando uma postagem é irritante, perversa ou simplesmente contrária ao que pensamos e temos a coragem de escrever algo, logo o autor do blog escreve algo revelando a outra face da questão, com a qual nós vamos concordar ou pelo menos perceber que o autor está muito acima das nossas possibilidades de argumentação. Isto não se deve a uma mudança de opinião mas sim um revelar das múltiplas possibilidades de qualquer assunto. Penso que é genuíno.

Postar como resposta opiniões vãs e mal fundamentadas, qualquer um pode fazer. Nas respostas vãs incluem-se poemas, frases, tudo. Estas são geralmente as respostas mais usuais porque dão pouco trabalho e não exigem uma reflexão sobre a postagem, há apenas um olhar diagonal ao texto (muitas vezes são longos). Na minha mais simples opinião uma resposta vã é igual a nenhuma.

E agora voltando à desilusão do sujeito, e não tendo como argumentação Lacan e outros autores (gostava muito sinceramente de ter, esforçarei-me mais no futuro) penso que um sujeito tem que ser uma auto-consciência individual e só assim o entendo como tal. E como tal vejo nele um sujeito o que leva a que veja nele um humano, e em consequência, o tenha que englobar na humanidade. E se isto pode parecer simples na verdade é complexo, pois não gosto de psicopatas mas se eles são sujeitos-humanos-humanidade terei que viver com essa realidade. Logo se digo gosto de pessoas/sujeitos-humanos-humanidade estou a dizer que gosto de um grupo e nem sempre gostamos de certos humanos aos quais queremos retirar humanidade (se calhar não a possuem??)
E aqui tudo o que disse sobre pessoa, sujeito, estranheza do outro, estranheza no outro e em nós está claro, está bem (não querendo dizer que eu o conseguiria escrever….)

Em relação à estratégia, método de estudarmos um assunto e à pressuposta liberdade do autodidacta penso que até um autodidacta tem método pode é não se pautar por nenhuma corrente, ideia, ciência, etc e tal. Logo o autodidacta deriva como um barco e vai para onde a corrente do mar o leva e a sua pretensa liberdade é uma ilusão que ele alimenta. Penso que não há nenhum autodidacta que não saiba isto pois esta é a única coisa que ele acredita. Ele vai navegando nos assuntos e muitas vezes aprofunda para os lados. Como um velho ditado diz: “nunca se aprofunda para os lados” no entanto o autor do blog teorizou muito bem sobre este tema revelando algumas das suas faces. É lê-lo.

Em relação é identidade, cujo tema é difícil de discutir e a minha opinião é sempre uma opinião, penso que o livro “Estátua interior” de François Jacob ilustra em parte o que eu penso. Gosto sempre de reflectir num eu desdobrado em múltiplos que se sobrepõem mas aos quais se retornam esporadicamente. Um eu e uma memória em construção, mutável mas permanente. Merece ser lido o autor, ganhou o prémio Nobel da Medicina, senão estou em erro.

E por fim, em relação às alcunhas. É difícil escolher uma alcunha pois ela será parte de nós. O nosso nome é-nos imposto e o nosso corpo nem sempre é o que desejamos mas é o que temos, a alcunha podemos escolher e por vezes perdemos demasiado tempo a tentar escolher uma que não nos revele mas também que não nos esconda. Tarefa ingrata quando podemos simplesmente ser anónimos.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Não sou nenhum sábio...
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Isto não é um despique, mas uma troca de impressões. É para fazer bem à saúde.
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A reflexão é o pão nosso de cada dia, não?
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Sobre o que diz da humandade, etc., está um pouco embrulhado o discurso, sem ofensa...
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Qanto a sermos autodidactas, pois claro que somos todos. O problema é quem nos ajudou a tornar-nos autodidactas. O que eu faço como professor é tentar que os meus alunos sejam autodidactas...o melhor que posso.
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Agradeço a indicação do livro de François Jacob.
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Para mim não seria difícil inventar uma alcunha...não me levo muito a sério e tenho uma série de alcunhas que amigos me têm posto, desde Vitinha, GG (Gato Gordo, suponho), Pai Natal, VôvÔ, etc. Acho imensa graça que gozem comigo. Uma pessoa quer é atenção, não é?...