sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Passado, presente e futuro "à la minute"

Passado, presente e futuro formam uma unidade, são representações indissociáveis. O presente de certo modo não existe, está permanentemente a tornar-se passado ou a antever-se como futuro. O passado pode ser “revisto” pelos sinais/traços que deixou, e o futuro pode ser previsto pelos sinais/tendências que podemos desenhar. Todos são uma convenção que depende de uma visão do tempo como linha, de tempo linear, e de uma noção de "novidade" associada ao devir. Esta noção não é universal nem se aplica, como se sabe, em muitos campos da ciência.
A minha (=nossa) dificuldade em entender o presente e em lhe atribuir um sentido estável, de fazer dele um modelo holístico, completo, coerente (o que alguns chamam pós-modernismo no sentido lato, e o que de uma maneira geral "entontece" as pessoas e as desestabiliza psicologicamente, levando-as para os mais diferentes caminhos, alguns de alto risco ou até de "suicídio) repercute-se necessariamente na nossa maneira de pensar o passado e o futuro.
Passado, presente e futuro desestabilizaram-se.
O futuro é muito mais imprevisível do que julgámos.
O presente surpreende-nos a cada milésima de segundo, em cada dia, na sua velocidade, na sua aceleração.
O passado, a história, como só retrospectivamente ganham racionalidade (são sempre perspectiva a partir de um presente) estão também mais desestabilizados do que nunca. Não se trata do que se dizia quando eu era estudante, e que é óbvio, segundo o qual eles (passado, história) se reescrevem continuamente. Isso é banal, óbvio. É muito mais vertigininoso e estrutural: é que as condições, regras, pressupostos, segundo as quais eles se reescrevem continuamente mudam com muita rapidez, jamais acontecida antes.
Há hoje uma dificuldade em estabilizar as representações do tempo vivido corrente, tal como aparece espontaneamente à nossa consciência, nas suas modalidades de presente, passado e futuro. A aceleração - compressão do espaço/tempo -, a banalização das viagens e das mobilidades, a informática, a possibilidade de mobilizar capital a velocidades supersónicas, a globalização, a mercantilização generalizada do mundo e das pessoas, a redução de todos os valores ao dinheiro, um valor abstracto e volátil (tornado motor de tudo o resto), a sentimentalização da sociedade como compensação alucinatória do desencanto e do absoluto desprezo por tudo o que não seja o poder ligado ao sucesso e ao dinheiro, a mitificação do indivíduo como "agente" autónomo ("empreendedor", se possível), são tudo sintomas do mesmo, um "mesmo" que, por volátil e extremamente adaptativo, surpreendente, é muito difícil de captar na sua totalidade, porque não a tem: é líquido. A velha imagem do poliedro facetado para dar uma imagem da complexidade da realidade, explodiu. A realidade é um fluido com infinitas versões, não um sólido estável.
Muitas pessoas vivem (e sentem) segundo quadros de uma realidade desajustada, porque já passou. Refugiam-se numa estabilidade ilusória. Recuperam velhos ideais redentores. Alienam-se voluntariamente, quando não se "suicidam" pouco a pouco (em todo o tipo de comportamentos viciantes), deixando-se parasitar pelo stress ou por certas obrigações/inibições/hábitos que a si mesmas se impuseram. Querem corresponder a uma imagem, a um projecto que não vêem que foi em larga medida "programado" por outrém, antes o sentem como pessoal e inalienável. Têm dificuldade de fixar um alvo, de definir uma estratégia, de escalonar prioridades.
Os arqueólogos, como lidam com o mundo objectual, são muitas vezes fetichistas do "material". Acariciam-no, manipulam os objectos como se eles fossem um signo de algo que escapou ao tempo. Mas, para muitos, nem há tempo para isso: trata-se mais comezinhamente de fazer uma empreitada para ganhar o correspondente e pagar as contas. Vale a pena este tipo de actividade, reduzir uma investigação atraente a uma rotina para sobreviver? Para muitos, não há outro remédio... a penúria mental vem ao de cima em "momentos de crise", em que a imagem social dos arqueólogos fica pouco beneficiada. Os melhores às vezes parecem D. Quixotes, lutando por causas perdidas. Não percebem que arremetem contra moinhos de vento, perseguem Dulcineias. O poder nem os vê.
Esta sociedade é doente, mas o discurso da queixa já não pega, porque ninguém acredita em sociedades saudáveis. Então vamos vivendo no zapping dos pequenos dramas, das petições, das pequenas urgências, dos pequenos prazeres. Para sentir que dominamos alguma coisa, que existimos.
Sempre à espera de algo que nos regenere, a fantasia que nos salve. Sabendo de antemão que estamos condenados a viver essas fantasias secretamente. Não é transmissível o que de mais íntimo supostamente em cada um de nós existe. E existirá mesmo? Talvez como vácuo... E para que haveria esse vácuo de ser preenchido?... não seria asfixiante?... a única transferência definitiva é a morte.
Entretanto vamos vivendo na ilusão de seduzir, mas a sedução tem muitos perigos, e ciladas: as pessoas desconfiam umas das outras, sabendo por si próprias que o seu individualismo as embebe totalmente, sabendo que mesmo quando fazemos bem ao próximo estamos a capitalizar a favor de nós mesmos. A generosidade é muitas vezes o maior dos egoísmos. Não há refeições grátis, como dizia o outro.
Mas há, apesar de tudo, uma possibilidade (para alguns) de aprendizagem e de melhoria da sua qualidade de vida no meio deste caos. No fundo, uma arte de viver com o mínimo possível de chatices.
Há em todos nós, mesmo à beira do abismo, uma ideia de futuro.
Mesmo aquele que está no seu momento terminal, se ainda lúcido, dita recados, faz recomendações.
Há sempre uma espécie de futuro do futuro, de vida (fantasiada) após a morte, porque a consciência tem dificuldade (impossibilidade) de se presentificar a si mesma como não-consciência, como zero absoluto.
Até a própria escuridão absoluta é uma forma de luz: porque senão não se via, não se percebia como escuridão.
Viver é pois sempre projectarmo-nos para a frente e para trás, dentro desta consciência espontânea do tempo linear, cada vez mais medido, fatiado, calculado, contabilizado dentro da sociedade contabilista.
Como se houvesse duas mortes, pelo menos: uma primeira em que eu ainda poderei preparar-me para a definitiva.
É impossível aceitar o irreversível.
O arqueólogo toca o objecto do tempo, como antigamente nos quadros se punha uma caveira, para anunciar a morte, a efemeridade, mas também para, representando-a, a estigmatizar, a adiar, a domesticar fantasmaticamente.
Mas a morte é como a nossa mãe: com a melhor das consciências, põem-nos e tiram-nos deste mundo. E não pedem a nossa opinião. Não é democrático, intrinsecamente. O problema começa aí.
Mas quem vou culpar, quem vou eleger como bode expiatório? Deus, uma projecção imaginária de nós próprios? Há quem se divirta a atirar boomerangs. É um jogo como outro qualquer. É preciso é acreditar nalguma coisa, ter prazer nos dias. E esse prazer nunca é o do presente: implica sempre um passado e um futuro. A prossecução de uma fantasia, cosnciente ou não.

3 comentários:

Anónimo disse...

"Memória na panela de pressão"

Passado, presente e futuro não existem, só existe a memória. E a memória (se a quisermos dividir) é tudo, é o que passou, é o que ocorre, é o que pensamos que pode acontecer mas é sobretudo um grande saco onde metemos coisas. Um evento, um pensamento, um sentimento passado que guardamos é constantemente modificado pelo que vivemos e então esse evento já não é o mesmo. É errado pensar que ele se mantem inalterável, por vezes pensamos que sim, porque todo o nosso ser e memória são um continuo. Mas não, ele é o mesmo e é diferente. A consciência actual da complexidade do ser forma um abismo entre o individual e o colectivo. Atrevo-me a dizer que a moderna individualidade é fruto em parte desta consciência desagregada do ser de cada um de nós. Se nem mesmo o ser é individual então como pode a sociedade como um todo existir? Talvez o próprio conceito de sociedade seja o próximo a entrar em reformulação ou já esteja mesmo a ser reformulado.

A noção que o passado, presente e futuro não existem não se aplica, como se sabe, em muitos campos da ciência. Exactamente porque a ciência "natural" não estuda indivíduos mas é feita por indivíduos, que se pensam isentos daquilo que os investigadores das ciências sociais já sabem há muito tempo. Qualquer pensamento, teoria, história é produto de um tempo e de um individuo que é suportado pela sua memória como ser individual e colectivo (se é que podemos dissociar os dois). No entanto como a ciência "natural" estuda o "meio" acredita que o "meio" é independente do individuo , regendo-se por leis aparte deste. A minha dificuldade com as ciências naturais veio sempre desta crença, que eles não olham como crença.

A estabilidade da memória e do ser consciente pode ser actualmente alcançada através de um diálogo constante entre o interior e o exterior (ainda que possamos discutir se tais definições e realidades existam). O ser toma consciência de si através do seu corpo e tudo o resto que não é o seu corpo é o exterior, no entanto o ser humaniza o exterior tomando-o como uma parte de si. Penso que este é o diálogo. Para mantermos alguma sanidade mental temos que dialogar, sempre, quando perdemos esse vontade, perdemos a noção de memória e em última consequência podemos morrer.

Patrícia Amaro

Vitor Oliveira Jorge disse...

Citando-a: Talvez o próprio conceito de sociedade seja o próximo a entrar em reformulação ou já esteja mesmo a ser reformulado.

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John Urry (esteve na FLUP em Setembro, Univ. Lancaster, sociólogo) já há vários anos propõe a liquefacção deste conceito, muito liado ao Estado-nação. Falar de sociedade como uma realidade trans-histórica não gtem sentido, como certamente não tem sentido em relação a conceito nenhum. Estou de acordo com tudo o que diz e a ficar agradavelmente surpreendido pelo diálogo que finalmente é possível neste espaço. VOJ
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No entanto como a ciência "natural" estuda o "meio" acredita que o "meio" é independente do individuo , regendo-se por leis aparte deste. A minha dificuldade com as ciências naturais veio sempre desta crença, que eles não olham como crença.
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Magnífica afirmação sua, em todos os aspectos. Conhece um livro de Susan Oyama e outros (eds) citado or mim neste blogue há meses? É muito importante. (Novembro, creio)? Chama-se Cycles of Contingency.
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Interior e exterior, problema grande. Philipe Descola quer ver nesta dicotomia uma espécie de universal... mas não sei até que ponto não estará, como o maior discípulo de Lévi-Strauss, a seguir ainda as pisadas estruturalistas do mestre... Eu sinto-me muito pequeno ao é destes gigantes. E ainda a estudar. Há também um Francisco Varela, mas eu não me inclino tanto nesse sentido, embora seja um grande autor. Penso que temos, na linha de Descola, de estudar a ontologia de outras sociedades, ou culturas, ou como se lhes queira chamar e fazer aquela antropologia simétrica em que insiste brilhantemente o Latour: analisar as condições de fabricação dos factos científicos, que evidentemente apenas o desejo de certeza nos leva a tomar por insofismáveis. Dizia o Eduardo Lourenço há tempos que o nosso regime próprio é o da ceteza, e daí muia gente reagir ao chamado pós-modernismo, e ao desconstrutivismo, não percebendo às vezes nada, porque não leram Derrida atentamente. Há imensos preconceitos, porque isso facilita lidar com esta complexidade...
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Permita-me dizer-lhe , sem professoralismo, que você é uma pessoa muito inteligente. Quanto à questao da memória, é outro magno problema...tantas são as acepções em que se pode usar tal palavra. De que falamos quando falamos de memória?... Vamos ignorar, como trapo velho, o contributo de Freud, Lacan e toda a psicanálise?... Derrida discute isso, mas ainda não aprofundei a leitura. De cada vez que começo a ler, há algma tarefa urgente que me interrompe. A vida é feita mesmo desta teia que nos impede a concentração. Eu ligo muito a memória à efabulação... é essencialmente uma actividade ficcional que permite sustentar uma espécie de continuidade do eu, um eu que não existe, realmente, como você sugere.
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Fala de diálogo. Claro. Não poderemos dialogar mesmo, algum dia?...

Anónimo disse...

Enviei-lhe um mail.

Patrícia Amaro