Na nossa experiência, circulamos permanentemente numa grande gama de situações e sentimentos, e dois pólos extremos dessa gama (entre múltiplos outros) podiam ser os da presença (por exemplo, a realidade estabilizada a tal ponto que permite a contemplação por parte de um sujeito imóvel) e da ausência, que tanto se pode manifestar na nostalgia de algo desejado ou de alguém amado, como no frenesim quotidiano que, acelerado, nos inclui num movimento que embebeda, entontece, e que nos faz esquecer a insuportabilidade da ausência. Pois esse frenesim não é mais que ausência, alucinação, incapacidade de estabilizar minimamente o que nos dá segurança e ancora à realidade.
A presença absoluta seria o que chamo o arquivo. O arquivo é a obsessão dele mesmo, o desejo de completude, a doença de guardar, de fixar, de não deixar escapar nada, de registar, e, sobretudo, de já viver para registar, quando o turista fixa a imagem para depois mostrar que a viveu, ou que viveu a experiência que a imagem sugere, quando na verdade o que viveu foi essa vontade de vir a representar. Ou seja, a chamada "informação" - e toda a vida é um fluxo e permanente criação de "informações" - já seria experienciada em função do arquivo. O arquivo antecipa-se à vida, os momentos vividos servem para ser recordados ou simplesmente para ficarem colocados, fichados, sob a forma de latências, no arquivo.
O arquivo, nas suas múltiplas formas, o registo, indo do museu ao documento guardado no computador, e a sua manipulação para os fins mais diversos, seriam a obsessão central da nossa sociedade. Essa obsessão começa na escrita, na inscrição pública e formal de um sentido sobre um suporte, mas poder-se-ia dizer que remonta a tempos bem anteriores. Digamos que arquivo e arqueologia têm a mesma raiz, são o que estabelece a ordem e a origem, confundidas. Porque algo aconteceu, e ficou registado de tal modo, esse algo faz fé, é trazido à presença, ao presente, para aqui fazer lei: e não é indiferente quem o traz, como o traz, etc. Como nenhum sentido é alguma vez unívoco, ou comummente partilhado de forma igual, toda a memória, nomeadamente colectiva, é sempre uma política, quer dizer, pressupõe intérpretes habilitados pelo seu poder a saber, decidir, o que é pertinente e não é, o que se dissolve e estrutura o social como senso comum, e o que deve ser banido ou condenado: um bem e um mal.
A possibilidade de tornar presente o ausente, de trazer à colacção o arquivado, de re-presentar, é evidentemente uma encenação política. O arquivo é um poço sem fundo, um monumento para também ver de fora e jamais lá penetrar, que está ali em grande parte como uma caixa negra (jamais alguém saberá tudo o que contém, nem mesmo o arquivista compulsivo, alucinado, o louco da memória), um repositório de mortos que se querem como tal, mas que no seu silêncio, na sua ausência, permitem o fluir da vida, a sua contingência - servem-lhe de contraponto. Acreditamos que em qualquer momento podemos tirar desse asilo ou desse túmulo a informação pertinente - e isso dá-nos paz para nos podermos esquecer um pouco, largarmo-nos no mundo como aves, libertos da tirania do passado.
A imaginação de que podemos ressuscitar o morto, reviver o passado, trazer os asilados para a vida, dar às múmias o sopro da existência, fazer do museu uma coisa viva, em suma, reconstituir o passado, confundindo arquivo e vida, tem a ver com uma vertigem patrimonial que se liga à necessidade de sutura, à vontade de recoser o que foi (ou é vivido agora como tendo sido) descosido, interrompido, incompleto. Reconstruir, reviver, recuperar, ir contra o fluxo do tempo: a nível global e a nível individual, ter a ilusão de poder, se não superar a morte, pelo menos adiá-la, ou iludi-la, precisamente, através de cápsulas onde o tempo não exista, ou seja tão lento que esteja perto de um não-tempo anterior, primordial - um tempo mítico, ou uterino.
A maior parte das pessoas atribui à história esta missão: mas no fundo toda a vontade de compreender e de medir o tempo (desde a astronomia à geologia ou à arqueologia) se baseia na mesma vontade: que nos seja dada uma narração, uma narrativa credível de como é que as coisas começaram e por que são como hoje nos aparecem na sua radical estranheza ou arbitrariedade. As pessoas temem essa arbitrariedade, querem leis, querem âncoras, querem explicações. Só os poetas e os artistas se comprazem em "pôr o mundo em estranheza", quer dizer, em admitir a nossa radical impotência para perceber seja o que for, seres humanos que somos num universo que nem conceptualizar conseguimos, porque a totalidade protectora (a que chamávamos Deus) não tem sentido. É demasiado simples para fazer sentido, e de qualquer modo a sua disfunção começou há séculos. Um só descrente, e Deus, de certo modo, estava morto. Mas a descrença generalizou-se, particularmente na nossa sociedade ocidental, e albergou-se a fé (ou o seu oposto, afinal teismo e ateísmo completam-se) apenas na intimidade de cada um, quer dizer, num arquivo pessoal não transmissível nem comunicável, ligado a uma noção de indivíduo e de consciência individual (a uma valorização da interioridade por oposição a uma exterioridade) que é alheia à maior parte dos povos. Esse arquivo, essa memória, essa crença na crença individual, pessoal e intransmissível, são também formas de alucinação, porque a divisão do indivíduo e da pólis, do sagrado e do laico, e mesmo a teoria da divisão dos poderes em que se funda a nossa sociedade é evidentemente também uma ideologia (quer dizer, uma arbitrariedade erigida em incontestabilidade) e um mito. Que nunca pomos em causa e que queremos impor a todo o mundo.
A importância do cinema, que de certo modo inaugurou o século XX, como ilusão do nosso tempo, compreende-se. Com os seus prolongamentos actuais na realidade virtual. Ele permite, no espaço bidimensional do écrã, criar uma tridimensionalidade nova, que nada tem a ver com a perspectiva centrada do quadro ou mesmo da fotografia: ele permite a ilusão absoluta, a presentificação da ausência, ou seja, ver a vida num écrã, e de certo modo penetrar nela, ser parte dela. A narrativa do cinema pode ser reconfortante - conta uma história como se a tivéssemos vivido, como se a estivéssemos a viver agora, como se fosse a nossa história - ou inquietante, na medida em que o cinema joga com o imaginário e pode ser visto como a re-presentação do inconsciente (o arquivo inacessível, imaterial e invisível, finalmente tornado visível, presentificado). Por alguma razão arqueologia, fotografia e psicanálise se desenvolvem todas mais ou menos ao mesmo tempo, a partir basicamente dos sécs. XIX e XX.
Centrada na visão, a nossa sociedade, o espectador da sociedade do espectáculo (tudo é imagem, estamos num mundo pós-textual, numa certa medida) pode agora "pela primeira vez", repetindo o carácter iniciático do rito (ele é sempre repetição e é sempre diferença), ver finalmente o passado. O cinema e a realidade virtual, num certo sentido, são a realização por excelência dos positivistas, dos maníacos do facto, do dado, da prova, do documento, do arquivo, da inscrição, da recuperação do já vivido. O cinema permite-nos ver e participar "em acto" na própria inscrição, naquilo que acontece e que deixa lastro, perdura. Voltamos a ser crianças a a fazermos unidade com o mundo, reconfortados. É a arte do entretenimento, do jogo puro. E, revivendo, pode-se (talvez) fazer o luto, mesmo daquilo que parece ter deixado uma inscrição inapagável, mesmo um horror que transborda para fora do dizível, como o Holocausto, instalando o espanto absoluto. Talvez os espantos se neutralizem uns aos outros...
A nossa sociedade inventou as origens. As origens são a natureza e nela o homem foi colocado como um ser natural que pela cultura, pelo trabalho e pelo engenho, pela experiência e pelo conhecimento, se foi artificializando e impondo à natureza. Ele próprio é atravessado no seu cerne por essa fractura (numa cartografia metafísica com a qual nos damos mal), a do corpo e a da alma. Mas é neste campo de conceitos que o senso comum vive, é deste caldo que ele se alimenta. E muita filosofia repousa aí.
Nas origens havia pois o homem primitivo, o selvagem (bom ou mau, são duas versões do mesmo, como aliás também a natureza pode ser mãe ou madrasta). E essa invenção do primitivo é o motor explicativo, o princípio racional, da nossa cultura ocidental. É a embraiagem para a narrativa da sua própria constituição. Daí que a narrativa das origens, do primitivo, do selvagem, funcionando como o outro de nós (o inculto, o analfabeto, o arcaico, etc) seja fundamental para nos percebermos a nós, para nos representarmos no que temos de presença positiva (o progresso, a civilização, o moderno) e de ausência negativa (a sabedoria da memória que não precisava de arquivo, o saber inscrito no corpo, a espontaneidade natural, enfim, toda a mitologia de um equilíbrio, de uma sabedoria e de uma religiosidade e ritualidade perdidas, de uma comunidade perdida). O conceito de primitivo (e, por extensão, de passado) é o motor central da nossa ideologia: mas nós também queremos pôr no arquivo esse ser pré-arquivístico, que nem escrita usava, e que nós inventámos na natureza como uma compensação para o que imaginámos ter perdido. Daí a pré-história, a arqueologia, que se substituem (mas em muitos casos repetem) as velhas cosmogonias. É desprendendo-nos, mas com mostalgia, dessa primitividade, que adquirimos o que temos hoje, o que somos hoje, incluindo a capacidade de nos pensarmos, de darmos um sentido ao sem-sentido básico do mundo.
Mas os senhores que controlam o arquivo apertam as malhas da vigilância, e o conhecimento, como instrumento do arquivo, sofistica as suas técnicas. O admirável mundo novo já está aí em pleno desenvolvimento.
Mas ele contém um vírus, que por enquanto está contido, mas pode vir a expandir-se. Esse vírus é o do pensamento crítico, que consegue algum recuo e por enquanto só é dirigido a uma elite, a pequena porção de pessoas que vai tentando escapar ao senso comum. A generalização da educação trará também (estarei a ser ingénuo?) a vontade de contraponto, de uma anti-educação que seja a fresta de outros futuros que não aqueles dos planeadores que, invocando princípios aparentemente perfeitos, actuam na verdade para consolidar um mundo de exclusão, de exclusão da maioria como seres humanos e, com muito maior força de razão, um mundo de seres humanos críticos.
A crítica, a distanciação, não é - ou não devia ser - uma decoração, nem um gosto de desconstruir "pós-moderno" (palavra insuportável de tanto usada levianamente) próprio de abastados. Não é uma inutilidade.
Na economia do conhecimento, e em geral na economia da vida e da consciência, muitas coisas estão a ficar fora de controlo. E se isso, cidadãos pacíficos, nos assusta, também nos deve mostrar que nem a história acabou, nem ela vai ser o aperfeiçoamento do sistema em que ninguém verdadeiramente acredita.
Precisamos de um outro jogo, com novos parceiros, com novos horizontes e com uma outra economia de possibilidades. Todos procuramos entrevê-lo.
Mesmo nas classes médias alastra a insatisfação dos jovens. "Algo está a acontecer aqui" que escapa ao controlo do arquivo, aos sistemas de vigilância, ao jogo do gato e do rato. O que está latente ou parece ausente irromperá, caracterizado, como sempre, pela surpresa.
E os que vivem colados às presenças das suas vidas "organizadas" confrontar-se-ão com o espanto à sua porta.
3 comentários:
E em tudo vemos essa presença da "falta" ("lack") preenchida pelo Outro, o grande Outro que somos todos "nos-otros". O arquivo enquanto "archeîon" (poupo nos caracteres gregos), sede de governo (abrindo-se aqui propositadamente o jogo da palavra sede). O que é essa arché, a origem que nos move, que nos identifica, o primordial (antes de tudo e antes de tudo). Será que a perdemos em algum momento ou será que ela sempre existe? Será que o grande Outro é apenas uma característica da "modernidade"? Será que existe algum ser humano que não tenha a "falta" em si?
fome. fome do maravilhoso.
por isso aqui vim.
boa tarde prof.
beijo.
obrigada.
Obrigado pelos comentários! Cansado, após um dia violento, irei tentar em próximos textos corresponder aos estímulos!
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