Fonte: http://www.dianadiriwaechter.com/gallery/index.html
Um dos temas mais actuais e complexos é o da imagem, porquanto vivemos num regime escópico, num regime que privilegia a visão sobre todos os outros sentidos e modos de conhecimento. No entanto, mesmo quando a criança se reconhece ao espelho pela primeira vez, tem a tendência de ir tocar na imagem para se certificar de que é "a sua", ou seja, de que aquele objecto é o reflexo de si. Inicia-se aí o processo de construção do eu.
A criança, qualquer um de nós, começa por se reconhecer como "outro", como imagem, ou seja, como um reflexo, uma "imitação", algo que é e não é ele próprio. E essa duplicidade (que logo se vai desdobrando em multiplicidades durante toda a vida) é fundamental para compreender o carácter ambíguo do ser humano, do seu olhar. O olhar replica sempre a "experiência primordial" do espelho, da presença do outro como eu, e do eu como outro: essa cesura, esse corte que nos impede de atingirmos o "real", isto é, que nos confirma como seres imersos num jogo de espelhos "ad infinitum", para quem "a verdade em si", a "realidade em si" é apenas um fantasma, uma caixa negra, um embraiador do desejo de espreitar, de ver mais, de aumentar o conhecimento, de prolongar o eu, de o expandir à custa do outro que o reflecte, que com ele joga, que é uma presença especular contínua.
Assim se instala o teatro do mundo, a representação constante a que cada um se vê votado porque está imerso numa realidade que o vê, que ele sente vê-lo, e portanto num palco. Qualquer tentativa de sair desse palco é no sentido de passar a outro, e a outro, e a mais outro, numa constante mudança de cenários, de experiências e de performances. Digamos que o fascínio da morte, como tema e imagem, é o que nela se anuncia (ao mesmo tempo como impensável fim do eu) de um cenário último, que alguns crêem ser um cenário de felicidade, de regresso ao paraíso e de saída da historicidade, do tempo e da sua caducidade.
O eu não consegue nunca senão imaginar o seu fim como fantasma, não consegue vivenciá-lo, porque o eu está desde o início ligado a um ambiente e a uma narrativa que se prende a outras imagens, a outros eus, a outros olhares. E, se esses olhares me constituem, é para a sua sobrevivência como olhares que eu falo, porque eles são os meus "herdeiros" fantasmáticos.
A especularidade instala uma regra no mundo. Tudo é em última análise tautológico, ou seja, tudo quanto se objectiva está ligado a uma experiência de subjectividade, como uma pastilha elástica que se quer descolar e deitar fora, nunca o conseguindo.
A imagem contém em si a vontade de ver, chama o olhar. E nesse sentido instala um voyeurismo, porque eu sei que olhando uma imagem estou a espreitar, estou a emoldurar uma pequena parcela do campo escópico, em que concentro a minha atenção. Ao fixar essa atenção na imagem assim delimitada pela moldura (ver é instalar molduras), eu entro necessariamente num regime fetichista, porque demoro numa parcela do mundo o meu olhar, momentanemamente parado (embasbacado, diria) pelo desejo de conhecer, de compreender, de absorver, de me ver reflectido, enfim, de re-conhecer o que se me apresenta como antes não visto, ou como surpreendente. Todo o conhecimento é um re-conhecimento, é um voltar a um lugar que não está em lado nenhum, que vai de espelho em espelho, de procura em procura. E fixar esse desejo nómada é sempre o princípio da des-ilusão, do descolamento do sujeito em relação ao objecto com que visava (mas não pode) confundir-se. É também em relação com isto que Lacan referia a ilusão das relações humanas, e em última análise o que ele designava como a impossiblidade da relação sexual, na medida em que o objecto do desejo apela sempre para outro, e outro, numa insatisfação exacerbada pela nossa contemporânea sociedade de signos, quer dizer, de objectivos investidos, por vezes, de forte poder atractivo, mas que evidentemente apelam para o vazio fndamental da imagem, para a sua insatisfação. A vida é um correr atrás de imagens (no sentido mais geral, podem ser por exemplo o que se designa "imagens mentais") numa espécie de sofreguidão sem limites, mesmo no indivíduo dito "normal".
A imagem está profundamente ligada aos progressos da óptica e à sociedade ocidental nomeadamente desde a Renascença e sua obsessão pela perspectiva e pela harmonia (que centra o indivíduo e domestica o seu desejo escópico face a um mundo que ele torna "paisagem", realidade supostamente dominada pelo seu olhar, pelo seu desejo de ver e de confundir o ver e o poder). Um poder ilusório que tantas arquitecturas perseguiram, desde o mito de Babel, que visava alcançar o céu, mas que se viu confundido pela profusão das línguas, quer dizer, pela opacidade da ordem simbólica, pela improbabilidade da comunicação, pela impossibilidade da transparência (daí que a transferência mais não seja do que um jogo devidamente encenado em ambiente ajustado entre os parceiros, analisado e analista).
Por que é ilusório o desejo de ver, por que é inantigível o sentido ultimo do mundo, da imagem-mundo? É que este é um enorme espelho onde o observador se reflecte, se im-plica, há sempre uma mancha, uma sombra, um ponto negro na imagem que a imagem me devolve, por mais pixels que eu lhe acrescente.
Daí que a formidável panóplia de imagens que a ciência construíu e constrói continuamente nos pareça, por vezes, algo de alucinatório; mas alucinatório é também o museu, que nasceu da vontade coleccionista de imitar o mundo, de possuir o mundo através das suas imagens. dos seus traços, dos seus signos.
Alucinatória é a sociedade da imagem; insaciável, perscruta. A imagem (a fotografia por exemplo) é desde sempre aliada do poder, da polícia, da política de fixar, de indexar, de classificar, de prender ao papel e ao arquivo, de identificar (seja no BI, na carta de condução ou no cartão de crédito): métodos de chegar rapidamente ao indivíduo que poderia passar incógnito, escapulindo-se sem imagem. Mas então o cinema, posterior à fotografa como sabemos, instala o ilusório, a fantasia, dentro do espectador, ou melhor, transporta o espectador para dentro da fantasia absoluta. Se me é possível pôr de lado, ou só olhar de vez em quando, uma foto que me fascina, um filme não o vejo, ou me prende, se não me "identificar" com ele, se não entrar nele, esquecendo que se trata apenas de um écrã, de uma parede sem espessura, do produto de uma ilusão retiniana. O prazer que me dá o cinema é que ele me reconcilia momentaneamente (durante a duração da projecção) com o mundo, quer dizer, de espectador (no sentido passivo) eu passo (ilusoriamente, é claro) para o lado de lá do espelho, ou seja, eu fujo (imaginariamente) ao regime escópico que desde sempre me constituíu, me permitiu existir, e ao mesmo tempo me aprisiona, me força (ordem simbólica) a comportar-me como sendo sempre "eu", um suposto "eu".
A modernidade ocidental teria assim inventado e disseminado a proliferação das imagens, na constante pergunta: que é que elas me dizem? Que é que elas querem de mim? E nessa obsessão das imagens, nesse voyeurismo compulsivo (quanto mais não seja na exarcebação do imagem de si narcísica que o sujeito moderno cultiva) há qualquer coisa que instala o mundo e os seres como objectos da minha pura fruição descomprometida. Como se me fosse possível gozar sem a aura, de cuja perda na era da técnica se queixava Benjamin e muitos com ele.
Ou seja, como se fosse possível instalar uma cena, um palco, do prazer puro do sujeito, sem frustração, numa instrumentalização, numa encenação completa do mundo que o rodeia. É esse desejo insano que Sade tão exemplarmente simboliza, ainda na transição de um poder aristocrático (poder absoluto sobre os súbditos, mas sancionado por Deus) para um poder puramente imanente e "natural", des-sacralizado, em que o mundo (e o outro que nesse mundo me fita) podem ser transformados em puros instrumentos da minha satisfação sem limites, do meu desígnio.
A mesma obscenidade, afinal, que esteve em cena no nazismo, mas que é (foi) "apenas" uma exacerbação colectiva de um princípio geral da sociedade imanente: se não há um princípio organizador do mundo senão o da experiência humana, então todas as experiências são possíveis, não há limites éticos ao desejo de conhecer, de purificar, de higienizar, de normalizar, de estirpar de vez os fantasmas individuais ou colectivos.
A imagem erótica, excitante, rodeia-nos e constitui-nos como seres que procuram uma con-fusão inicial perdida, numa busca que a des-sacralização do mundo e a perda da transcendência tornam imperiosa. Muitas vezes, o equívoco da relação entre as pessoas está nisso: elas não querem compartilhar da vida da outra, querem apenas algumas imagens, esse curto-circuito subtil que me permte ver no olhar do outro o desejo de mim, que satisfaz momentaneamente o meu narcisismo. O reflexo. Estamos condenados à constante procura desse reflexo, que só no sono, na embriaguês, na paixão amorosa temporariamente olvidamos. Essa necessidade absoluta da imagem é a que transforma o mundo num quadro pornográfico.
Por isso é que a pornografia - tal como o turismo, que é outro regime escópico, nómada, e de uma maneira geral todo o nosso conhecimento - são hoje negócios em incrível expansão. Nós queremos ver, queremos compreender, queremos saber, queremos gozar, queremos possuir. Voltámos a um jogo simples, que é o jogo que apenas me implica como voyeur, que é um jogo em que a comunidade olha toda para o mesmo lado, para o mesmo espelho (o futebol é um exemplo), como se eu tivesse elidido o reflexo.
Como se eu pudesse esquecer-me de mim.
Por isso a porno-grafia é a religião dos tempos modernos. Espectáculo, sim, mas espectáculo paradoxal, em que não me envolvo senão passivamente, por muito que gesticule, me excite, ou me enalteça. Estou só, o sentido de comunidade perdeu-se. O meu oratório é o écrã. Eu olho em frente, consumo imagens, e elas consomem-me na sua avidez.
15 comentários:
E por essa mesma razão que continuamente prosseguimos esse desejo de projectar as nossas fantasias na pré-história, buscando alicerces para "Ego". Uma linha de continuidade que nos ajude a explicar quem somos (porque estamos aqui, de onde vimos...).
Num museu olhamos em volta e os objectos devolvem-nos o nosso olhar extasiado, esses mesmos espelhos de criança.
Veja-se a famosa série "Roma (Rome)". O público identifica-se com os personagens, afirmando "olha como eles eram como nós somos" (e não o contrário).
A Arqueologia é a ciência dos "objets petit" com que nos deslumbramos: "Olha um esqueleto! Podia ser eu! É alguém como eu-nós.", "Olha um pente!", "Olha uma frigideira castreja e este engobe que servia como anti-aderente", "O Neandertal foi extinto por homens como nós, cruéis que hão de exterminar o planeta".
Não há fim para este jogo de espelhos.
Exacto. A pré-história é uma fantasia (uma panóplia delas, infinda) muito particular, uma porno-grafia bem visível nos objectos estatelados sobre a página das obras, nos respectivos desenhos de frente, de perfil, de trás, como nas imagens da natureza, das plantas, animais, ou "raças exóticas", nas fotos de polícia ou em muitos autores (fotógrafos) ditos "pornográficos". O querer ir às raizes da história, do corpo, a paixão pelo esqueleto e pelo resto, pelo expelido, devia ser visto à luz do fetichismo e de outras perspectivas que Freud genialmente abriu.
E o que dizer das reconstruções, ilustrações, desenhos... o desejo de ter uma janela para o passado. São cortinas, ecrãs ditos virtuais.
Tal como filme encena a fantasia estas imagens, encenam o passado, de um modo perverso. Elas transmitem a possibilidade de que tenha sido assim, tal como o filme mostra uma virtualidade (você poderá vir a ser assim como o personagem que admira, você é assim, mas terá de ser ainda mais real).
A perversidade joga-se em dois campos: por um lado mostra como possível o impossível (e nesse sentido é a manifestação do desejo último que nunca será cumprido), nessa apresentação ensina-nos a desejar (enclausura-nos numa dada imaginação do passado que se justifica em si mesma, pela sua "realidade").
É nos video-jogos de computador, que actualmente absorvem de forma quase obsessiva a atenção dos jovens, que este desejo é levado até às ultimas consequências. Aqui pode-se ser simultaneamente actor e observador e até encarnar a pele dum qualquer personagem idealizado pelo sujeito.
É engraçado que fales nisso Zé. Neste momento estou a trabalhar num projecto que trata precisamente desse tema. Chama-se "Travel in Europe". É um jogo de computador MMOG (Massive Multiplayer Online Game) como o Second Life ou o World of Warcraft, mas onde utilizamos como cenário o património. Depois existem missões que aliciam o jogador a saber mais. Podes ver a página do projecto em www.tieproject.eu
Nas várias reuniões do projecto eu dizia que estávamos a ser perversos na nossa abordagem, mas neste momento acho que é preciso assumir-se e buscar esta perversidade. É tomar os comandos do avião e pilotar antes que outros o comandem por nós.
Creio que o que há de mais impressionante na imagem fotográfica é que ela, verdadeiramente, fantasmagoriza o presente (cria um presente não perceptível antes da câmara fotográfica) e assim fantasmagoriza os dois pólos que são modalidades do presente, o passado e o futuro. Religiosa por excelência, porque criando uma fantasia de eternidade no momento em que fantasmagoriza estes três momentos. De facto, se v irmos bem, a imagem fotográfica vive suspensa, sem presente, nem passado, nem futuro. Não admira QUE TENHA NASCIDO AO MESMO TEMPO DA ARQUEOLOGIA e que ambas comunguem deste mesmo "sentimento" de nostalgia e de perda: de facto, ao inventar a arqueologia, no tempo da primeira industrialização, estávamos a "perder o passado" (algo que nunca tínhamos tido...) e a correr para um futuro cada vez mais imprevisível. As coordenadas da ficção tempo/espaço mudaram radicalmente com a modernidade, que foi procurar aos "fora do tempo" (primitivos, pré-históricos) as suas fantasias de compensação. Os objectos (materiais arqueológicos) foram sujeitos passivos cómodos (e cómicos) dessa mistificação. Podiam-se pôr em museus e até em casa, no lugar das antigas capelinhas e oratórios familiares...
Nos museus! :))
Não se evoque o santo nome de museu em vão !
A sedução/mistificação das musas também se tem alterado ...
Os museus estão mais interpelativos,
mais inspiradores ...
Estão finalmente a sair do " estádio espelho "
!
Abraço museo.lógico
(deveras interessante este texto !)
iv
"demolidor de tão assertivo!
vim. pela mão da Isabel Victor.
volto.
com todo o tempo.
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Obrigado, Isabel Mendes Ferreira. No seu blogue não tem o seu perfil. Tenho sempre dificuldade de dialogar com "fantasmas", que o são um pouco os nossos interlocutores aqui...
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Para a Isabel Victor:eu sou um grande visitante e apaixonado de museus.Desde a infância. Os museus são um elemento central da sociedade contemporânea. Mas eu não confundo (ou tento separar) o plano do prazer com o da reflexão sobre esse prazer. Nem quero eliminar as minhas contradições, que são constitutivas, quer dizer, gozar uma coisa e ainda por cima ter um pensamento crítico tanto quanto possível distanciado sobre ela. É essa a estrutura ideológica de todo este blogue, a estrutura auto-irónica. Tenho a consciência de ser um mero produtor (entre milhões ou biliões) de efeitos... penso de facto que há pouca reflexão crítica sobre património em Portugal (como na maior parte dos países), bastando ler "A Política do Património" de Marc Guillaume, Porto, Campo das Letras, 2003. Não se trata de "querer mudar o mundo", não temos esse poder, trata-se de o desarrumar um bocadinho numa arrumaçãozinha do senso comum... é um jogo que me dá prazer. As pessoas estão muito coladas a si mesmas, à sua profissão, ao seu local de trabalho, defendem a camisola ao transe. Mas, como sabemos, a camisola às vezes não é assim tão gloriosa... e a pessoa pode mudar de camisola, salve-nos isso. Gestão no fundo do conformismo, eis o que faço, no sentido de apesar de me sentir totalmente ntegrado, ainda assim querer olhar ela janela... do juízo crítico. Há aí uma certa ingenuidade, sem dúvida, algum quixotismo, sem dúvida,alguma hipocrisia, sem dúvida. Mas, aceitamos não pensar e só seguir as rotinas? Dizer o que esperam ouvir? Assim ninguém nos ligaria... o que queremos, sempre, é surpreender, mas não como na moda, surpreender pela fulgurância da imagem inesperada. Surpreender pela nova paisagem mental que se pode abrir. Habitus de velho: o que já não pode fascinar pelo corpo tenta fascinar pelo que antigamente se chamavam as obras do espírito. Trata-se de uma "erogeneização" mais global da vida como compensação perfeitamente assumida... forma de sobreviver. Alguns preferem a inércia, ou o "ir vivendo". Eu tenho-lhe horror.
Gostei bastante de suas reflexões
filosóficas e antropológicas sobre a sociedade porno-gráfica(o título já é muito criativo).Aproveito a oportunidade p/ te convidar p/ visitar meu blogger"Kometendo poesias" um grande abraço brasileiro...
Os fantasmas que povoam o seu blogue são a imagem do presente, da sociedade nestes momentos mais próximos. Ecos....
Obrigado ao colega brasileiro. Vi o seu blogue, tem interesse, imagens muito boas...hei-de visitar e ler os poemas com a calma necessária. Que ensina e em que universidade, posso saber?... se desejar, opode responder-me para o meu mail. Obrigado. Saudações!
tem sim....o perfil existe no Piano...:) não sou fantasma..:)
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pergunte à I.V.
ela sabe que não.
abraço. rendido à inteligência e "nobreza" que se vê ...percorrendo o seu blog.
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excelentes dias.
Para os devidos efeitos, de.claro ou melhor, deixo bem claro, que a Isabel Mendes Ferreira, existe (não é fantasma ...)é uma excelente Poeta , que pode visitar no " Piano ", um lugar de culto na blog.esfera das artes & letras
http://mendesferreira.blogspot.com/
Abraço (e ... quanto aos museus, de acordo. Surpreender é preciso ! inspirar faz todo o sentido ... e desarrumar é urgente ! )
iv
:) a sorrir....da declaração da I.V.
só mesmo ela...
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"alma".
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