Passado: algumas notas breves
As
questões do tempo, da temporalidade, do estatuto da história e, em função
disso, do que podemos entender por
passado, presente e futuro, são cruciais. Naturalmente que estão ligadas aos temas da
memória, da recordação, etc., tanto ao nível colectivo como individual, e
portanto levantam questões “permanentes” da filosofia ocidental desde os
pré-socráticos.
A
concepção mais habitual, linear (uni ou multi-linear) do tempo histórico
(humano, que é só esse a que me reporto aqui), associada à noção de uma
realidade social monoblocal, isto é, com uma dinâmica que, tudo somado, acaba
por ser no seu conjunto mais ou menos homogénea, leva a erros crassíssimos.
Braudel
por exemplo mostrou como existem temporalidades diferentes, diferentes ritmos
na história, fazendo por exemplo do Mediterrâneo um “actor” histórico de longa
duração. Jorge de Macedo explicou como cada momento histórico devia ser visto
como um conjunto de possíveis dos quais só alguns se concretizaram, chamando
“fenómenos minoritários” àqueles que não tiveram vencimento.
Esta
complexificação da noção ingénua de realidade histórica é muito importante, mas
é preciso, creio, dar alguns passos em frente, por forma a definitivamente
abandonarmos a visão continuista da história, como devir/narrativa que se
desenrola linearmente, rectilineamente, entre um princípio (um alfa, uma
origem) e um fim (um ómega, um Juízo Final ou Apocalipse). Esta noção comum é
de origem cristã.
Para
muitos, positivistas ainda, ou simplesmente ingénuos, a tarefa do historiador (e,
claro, a do arqueólogo) seria a de “reconstituir um passado efectivamente
acontecido”, através de uma metodologia “científica” consolidada pelas chamadas
“ciências históricas” desde o séc. XIX, o grande século da história e em geral
da emergência das “ciências humanas”.
Desconstruir
tão simplista e infantil noção (reconstituir o passado como “coisa em si”
significaria conhecer o presente – ser-se contemporâneo do presente – e poder
prever o futuro, em suma, ser omnisciente) é fácil, mas tem os seus perigos.
Relativizar o “acontecido” pode levar ao extremo de se negar, por exemplo, a
existência do Holocausto, como diversos autores tentaram. A história é
obviamente uma formação discursiva política e a sua narrativa sempre
“comprometida”. Ora eticamente não nos interessa um relativismo que ponha em
causa de forma radical a objectividade, a “pulsão de verdade” que anima a
história, e que consiste em nos podermos confrontar com o que aconteceu por
mais absurdo e inenarrável que isso nos pareça. Por exemplo também, desde a
queda do muro de Berlim que o sistema capitalista, democrata-liberal, de algum
modo se pretende apresentar como “o fim da história”, isto é, como um modo de
organização da sociedade e uma filosofia que abarcaria todo o horizonte do
possível, passado (que não seria mais do que uma série de etapas preparatórias
dele), presente e futuro. Hoje o simples facto de se enunciar seja o que for
sobre o capitalismo como um todo (tentando ver um horizonte para lá dele, e
malgrado todas as “crises” que estruturalmente o atravessam) é considerado de
imediato como uma aberração, uma heresia.
Em
suma, estamos perante um problema que exige uma nova visão do tempo histórico,
uma nova maneira de encarar a temporalidade humana/social, como têm acentuado
autores tão diversos como Aby Warburg (que fez uma história da arte” muito
pouco ortodoxa e muitíssimo mais interessante do que aquela), Walter Benjamin
(teses sobre a história), ou Giorgio Agamben (nomeadamente no seus livros
“Infância e História”, 1978 e “Signatura Rerum”, 2008). Estes últimos autores
levantam a complexa e difícil questão, em que não vou entrar aqui, da relação
entre uma perspectiva “de esquerda” (nomeadamente o marxismo) e uma tradição
messiânica oriunda da teologia judaica.
Num
texto de Henri Bergson citado por Slavoj Zizek (in “A Marioneta e o Anão. O
Cristianismo entre Perversão e Subversão”, Lx, Relógio d’ Água, 2006, p. 213),
escreve aquele primeiro autor: “(...) podemos sem dúvida inserir o possível no passado,
ou melhor, o próprio possível vai aí inserir-se, em qualquer momento. À medida
que a realidade se cria, imprevisível e nova, a sua imagem reflecte-se atrás
dela no passado indefinido: essa nova realidade terá sido sempre possível; mas
só no momento preciso da sua actual emergência é que começa a ter sido sempre possível, e é por isso que eu dizia que a
sua possibilidade, que não precede a sua realidade, tê-la-á precedido quando
essa realidade emerge.”
E
comenta Zizek (ib., p. 214), fiel ao seu hegelianismo: “(...) em qualquer
momento do tempo existem múltiplas possibilidades que esperam por ser
realizadas; logo que uma delas se actualiza [quer dizer, se concretiza, faz
vencimento], as outras são canceladas.” Portanto, acrescenta, o que é preciso é
“a ideia de uma escolha/acto que abra retrospectivamente a sua própria
possibilidade: a ideia de que a emergência de uma novidade radical muda
retrospectivamente o passado – não o passado real, evidentemente, pois não
estamos numa história de ficção científica, mas as possibilidades passadas, ou,
para nos exprimirmos mais formalmente, o valor das proposições modais relativas
ao passado.” Zizek comenta aqui, não só Bergson, como também Jean-Pierre Dupuy
(num livro que não li, mas que parece aliciante: “Pour Un Catastrophisme
Éclairé”, Paris, Seuil, 2002).
Quando
Zizek refere “as proposições modais” leva-nos para a lógica formal, área em que
não tenho competência. Porém, há no seu discurso uma oscilação, que se
compreende. Ou seja, se o que acontece agora muda radicalmente o passado, o
modo como qualificamos, ou articulamos, em termos lógicos (de possibilidade,
impossibilidade, necessidade ou contingência) o “acontecido” – como é que este
se pode alguma vez estabilizar, por assim dizer, em “passado real”, bem
distinto da ficção, a que se refere? Esse é o nó do problema (por mim creio que
é já dentro de uma série de axiomas, ou conjunto de expectativas (se se quiser,
em última análise, em função de uma crença ou projecto político), que se pode
equacionar certezas relativamente ao futuro; é assim que tal ou tal passado se
pode apresentar retrospectivamente como mais ou menos verosímil.
Ou
seja, aquilo que é provável que venha a acontecer depende de uma decisão a
tomar agora, e essa decisão, antecipando o futuro, criando condições de
emergência de um determinado futuro, cria ao mesmo tempo espaços conceptuais
permitindo a elaboração de um passado condizente. Quando uma determinada
potencialidade se vem a concretizar na realidade, a ser um efeito, a
efectivar-se, ela constrói então os seus antecedentes, que passam a ser
“causas”, ou seja, de algum modo a dar a “ilusão” de que tal futuro não era
contingente, não dependia de uma luta política, de um choque de alternativas,
mas, antes pelo contrário, correspondia à lógica da história linear. A história
linear fecha, para legitimar, um passado que está, de facto, sempre em aberto,
como campo de luta.
Seremos
capazes algum dia de a superar, criando novas condições lógico-gramaticais da
revolução por vir?
Seremos
capazes de recriar a história fugindo aos demónios do historicismo?
Peço
colaboração a quem saiba mais que eu, ou tenha achegas para dar nestas
matérias, e que me ajudem a pensar, que as apresente. Obrigado.
Loures,
Novembro de 2012
voj
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