Castanheiro do Vento, Vila Nova de Foz Côa, 2009
Um "bastião" (estrutura semi-circular) desta colina monumentalizada calcolítica (3º milénio a. C.)
ESPAÇO, MEIO, PAISAGEM, TERRITÓRIO, REGIÃO E LUGAR NA EXPERIÊNCIA DE UM ARQUEÓLOGO: ALGUNS CONTRIBUTOS REFLEXIVOS
por Vitor Oliveira Jorge
Prof. de Arqueología – Depto. de Ciencias e Técnicas do Patrimonio da Universidade do Porto
Prof. de Arqueología – Depto. de Ciencias e Técnicas do Patrimonio da Universidade do Porto
para o(a) leitor(a), que de certeza é você
Introdução
Um novo “estilo” de arqueólogos começou a aparecer
nos útimos tempos nalguns países – os principais exemplos que conheço
são britânicos. São escritores, pensadores da arqueologia, pessoas que
se referem a sítios e questões arqueológicas (por vezes de forma muito
detalhada), e escreveram em certos casos livros de grande interesse.
Porém, nunca realizaram uma escavação como investigação continuada, com
princípio, meio e fim.
Se fizeram “trabalho de campo”, ele foi sobretudo
constituído por “prospecções”, esparsas ou sistemáticas, visitas ao
terreno e seus “acidentes”, num tipo de experiência muito peculiar: uma
espécie de deambulação meditativa ou reflexiva sobre as paisagens e
monumentos, algo que poderíamos designar em termos orçamentais
“arqueologia light”, barata a montante, na produção (botas, chapéu,
caderno de notas, máquina fotográfica) e por vezes rentável a juzante,
na venda (obras de referência disponíveis no mercado internacional, em
inglês).
Claro que há certos domínios da “arqueologia”
(aqueles sobre os quais se pode dissertar sem fazer escavações) que se
prestam mais a este estilo do que outros. Mas é sobretudo uma questão
de imaginação e de inteligência.
Isto não significa que esses autores não sejam
sérios, honestos nas suas intenções de acrescentar saber, motivados
para questões fundamentais, que não saibam muito, que não produzam
reflexões de grande interesse, nem é, da minha parte, um “piscar de
olhos” aos arqueólogos “hard”, aqueles que escavam “no duro” ou estudam
colecções infindas de artefactos, produzindo obras de tomo, imparáveis
“ratos” de campo ou de biblioteca!
A arqueologia é hoje uma complexa nebulosa de
contornos indefinidos, como qualquer saber ou actividade. Normalmente,
a maturidade de um “campo” não se mede hoje por fronteiras ou
características rígidas, mas pelo seu grau de disseminação (pela forma
como impregna e inspira profissões, práticas, saberes – as procuras de
outros), bem como pela sua “autoridade” (a sua força política para agir
como fonte de poder, no momento das decisões).
A arqueologia nem é propriedade de “profissionais”,
nem é apenas necessariamente caracterizável por essa suposta actividade
essencial, nuclear, identitária, quase ritual de iniciação, que seria a
“escavação”. Há muita gente a escavar, ou mesmo a julgar que é
arqueólogo, e que é capaz de não ter uma ideia precisa do que pretende
fazer na sua vida, possuindo tão só o humano e compreensível desejo de
receber o salário no fim do mês. Enfim, as coisas não estão fáceis para
promover a investigação, em qualquer das suas modalidades; e sem
investigação (procura demorada e titubeante, feita de avanços,
paragens, recuos, um caminho sempre problemático) a arqueologia, de
certeza, simplesmente não é digna de ser considerada como um saber,
ficando reduzida a uma simples tecnologia descarnada de motivação e de
objectivos. Uma aplicação boçal e rotineira de regras simples.
Que significa a experiência de um – acentuo um -
arqueólogo? Algo de bastante específico, que não é generalizável a
outros “colegas de profissão” senão em termos muito abstractos. Por
isso, este texto refere-se à experiência de quem o escreve, isto é,
toma-a como única base segura para pensar – como acontece com qualquer
outro investigador. Por experiência entendo algo de muito abrangente,
que envolve a pessoa no seu todo, e que implica um permanente jogo
entre o seu passado e o seu presente, a sua disposição psíquica e
anímica. Nós pensamos com o corpo todo, e no momento de pensar
(idealmente, confundido com cada momento da vida) mobilizamos a
totalidade do que somos, ou supomos ser. As melhores ideias, numa
pessoa criativa, imaginativa (isto é, inteligente) surgem quando menos
se espera, não por milagre ou inspiração romântica, mas por concreção
súbita de todo um trabalho inconsciente, que por vezes aflora ao campo
da consciência e se perfila como interessante, como uma ideia a
explorar, a desenvolver pelo trabalho subsequente.
Um arqueólogo, como qualquer outro investigador,
precisa de dispor de conceitos claros. Mesmo que discutíveis,
corrigíveis por outros. Esse “índice” ou “thesaurus” faz penosamente
falta, mas a sua ausência revela ainda o grau de imaturidade da
disciplina, a sua dependência da importação de noções de outras
ciências (por vezes já obsoletas na origem, como acontecia dantes – e
certamente ainda ocorrerá - com certos países importadores, que
absorviam as obsolescências dos centros produtores/inovadores). Na
economia política da interdisciplinaridade, a arqueologia é largamente
deficitária, desequilibrada: importa muito, e exporta pouco, a não ser
a metáfora da profundidade (relacionada com a “escavação”, e a
descoberta de realidades ocultas) e suas derivadas. Não confundir,
claro, com toda uma procura do maravilhoso, originário, mítico, etc.,
em que a “arqueologia” é largamente utilizada como produto de consumo.
Com frequência, pessoas doutoradas ainda confundem o fascínio da
arqueologia com o exótico das viagens e o fascínio das descobertas de
“tesouros” ; por vezes pergunto-me como conseguem conciliar essa ideia
(ou impressão pouco trabalhada, pouco informada) com um mínimo de
consideração intelectual por nós, arqueólogos.
Uma enciclopédia ou dicionário de arqueologia é em
geral ainda hoje, no aspecto conceptual (quando se sai da mera
identificação/descrição de coisas), uma grelha desconexa, ou manta de
retalhos, de noções mais ou menos mal adaptadas de outras áreas do
conhecimento, ou de noções próprias pouco amadurecidas. É evidente que
se imporia fazer uma boa obra desse género, que seria uma das
traves-mestras da nossa disciplina.
Perdidas as “tabelas” de referência em que a
arqueologia processual, neopositivista, acreditou (e que, pela sua
simplicidade, alguns ironicamente caricaturizaram como “leis de Mickey
Mouse) a arqueologia está hoje perante um desafio muito grande neste
domínio, devendo partir, a meu ver, da teorização da sua própria
praxis, entendendo já dialogicamente essa praxis como uma teoria em
acção.
Neste curto texto pretendo apenas abordar de forma
sucinta e pessoal alguns conceitos que reputo importantes. Os textos
curtos são o “output” possível de uma actividade universitária pesada,
onde as aulas pouco estimulantes e a burocracia sem tréguas funcionam
como máquinas para não pensar (o que é paradoxal num organismo
vocacionado para o saber). E sobretudo para o pensamento isolado,
perante a inércia/comodismo de uns, o silêncio de outros, o fechar-se
na sua concha de ainda outros, etc. Muitas vezes estas várias
tipologias de indivíduos são inamovíveis; outras vezes movem-se apenas
para criticar aqueles que, apesar de tudo, nestas condições mais que
adversas, tentam pensar. Temos de viver com tudo isso – são factores “a
orçamentar” na economia da nossa vida entendida como um projecto. Temos
de contar permanentemente com o “ruído” dos que parece que adorariam
que não existíssemos, e, nada podendo fazer contra a nossa existência,
parece que adorariam que ela se pautasse pela inércia que permitiria
que o pouco que fazem sobressaisse um pouco. Naturalmente que é para os
restantes que escrevo, na esperança sempre renovada do diálogo e da
interacção comunicativa.
Vamos então breve e esquematicamente, e de um ponto de muito pessoal, aos conceitos enunciados no título do texto.
Antes ainda, porém, é de advertir o leitor de que
quase tudo o que vou dizer se poderia equacionar sob a rubrica
“espaço”, como muitos antropólogos, sociólogos, etc., não deixaram de
acentuar. A bibliografia sobre o assunto é vastíssima, quase tendente a
baixar os braços e nada escrever. Mas aqui quero deixar – esperando que
isso não pareça pretensão excessiva - um esquema meu, não tomando
“espaço” nessa acepção tão geral, o que talvez permita distinguir
melhor, e operacionalizar, uma série de conceitos.
Espaço
É uma realidade extensa, mensurável, subdivisível,
neutra, e, na sua versão comum, euclidiana, e que usamos no nosso viver
quotidiano, enquadrável por três coordenadas. Espaço é também, na
sociedade mercantil, uma mercadoria, que se mede (compra e vende) por
m2. Uma realidade que se não traduz apenas ao nível do chão, uma vez
que a construção em altura permite virtualmente a multiplicação do
“espaço” assim mercantilizado.
Espaço e tempo dialogam entre si, no sentido de que
eu posso “espacializar o tempo” ou “temporalizar o espaço”, o que vai
dar praticamente ao mesmo, apenas com uma mudança de tónica (marcando o
espaço com um conjunto de “sinais” que apontem para uma rítmica, para
formas de referência ao devir, ou ao passado e futuro, qualquer que
seja o tipo de tempo considerado; de facto, enquanto o espaço é
materializável nas três dimensões do vivido, o tempo é-o apenas em
aparelhos de medida, a começar pelos vulgares relógios).
Espaço, assim desmaterializado, digamos, abstraído, é
uma ideia típica sobretudo da sociedade ocidental e, em particular,
contemporânea. Através de inúmeras invenções (os instrumentos de
óptica, a perspectiva, o cinema, a fotografia, a televisão, a
comunicação por computador) esta sociedade procurou primeiro um “espaço
realista”, objectivo, coordenado, em completo controlo por parte do
observador, e hoje cada vez mais nos mergulha em espaços literalmente
virtuais, onde é difícil saber onde e quando nos encontramos. Há uma
in-diferenciação entre realidade observada e sujeito observador, uma
espécie de proliferação de espaços/tempos dentro do aparente
espaço/tempo comum da quotidianeidade.
Ou seja, ao mesmo tempo que “objectivava” o espaço,
do infinitamente pequeno ao infinitamente grande (a ponto de escapar à
imaginação corrente e de ter de ser expresso em fórmulas matemáticas) a
nossa cultura também o desmaterializou, o transformou num espaço
meta-físico, fazendo-nos mergulhar constantemente em espaços/tempos
muito diversificados. O positivismo deu lugar à relatividade e à
incerteza. O espaço é uma mercadoria, certamente, mas é também uma
pletora de metáforas: até para se vender eficazmente, seja como produto
imobiliário (ocupação permanente), seja como produto turístico (uso
efémero), seja como produto imaginativo (espaço virtual,
ciber-realidade). Quando compro uma casa, uma viagem, uma experiência,
nesta economia dos signos em que vivemos, estou cada vez mais a comprar
espaços/tempos imaginários, retrabalhados pela imagética publicitária
em que a minha própria imagética pessoal vive mergulhada, como
consumidor.
A palavra “espaço” não diria nada a um aborígene
australiano, a um “índio” americano, ou a um ameríndio amazónico, antes
de contactar com a nossa cultura. Fazendo corpo com a terra,
sentindo-se elementos da terra como quaisquer outros, muitas
comunidades que encontrámos pelo mundo fora tiveram particular
dificuldade em perceber a ocupação, a utilização agressiva, a
demarcação em propriedades, a exploração de algo que para eles não era
uma entidade inanimada e extensa, a terra, mas uma espécie de ser
parental envolvente, ontológico, que a todos produziu e que a todos
há-de sobreviver. A nossa chegada maciva foi vista, naturalmente, como
uma profanação e uma falta de respeito por valores que, na altura, a
maior parte dos “descobridores” e “exploradores” não estavam
interessados sequer em considerar como possíveis. O que viram foi uma
natureza selvagem, virgem, e uma série de habitantes que viviam como
animais – um espaço, precisamente, livre e apto a colonizar pelos
nossos valores ideológico-económicos.
Às vezes falamos do espaço em que se desenrola a
acção humana como se fosse um cenário, ou um palco. As metáforas
teatrais, performativas, são úteis para a arqueologia, porque todas
apontam para uma experiência do corpo e chamam a atenção para o
carácter “encenado” das nossas representações do passado. De facto, o
passado é hoje, é uma construção nossa, a partir de materiais
recolhidos, que temos de trazer à colação, e aos quais temos de dar um
sentido para os nosso contemporâneos.
Porém, não nos deixemos enganar pelas metáforas. Para
os homens e mulheres da pré-história, como para muitas das comunidades
estudadas pela antropologia, não tem sentido distinguir seres humanos e
meio envolvente como se fossem realidades distintas, sendo o meio
relativamente estável (cenário fixo, ou semi-fixo) e a acção humana por
definição dinâmica (cenário semi-fixo, ou móvel). Essa é a nossa visão
de ocidentais, que por um esforço de objectividade temos de descartar.
Porque se o “processo do conhecimento” é histórico, os episódios dessa
história têm muito mais a ver com descartes de interpretações
anteriores, tornadas inverosímeis, do que com simples acumulações de
“dados”, como queriam as várias modalidades de positismo.
Meio
Meio (no sentido de meio-ambiente, ou do inglês
“environment”) é o que rodeia um organismo, isto é, a realidade com a
qual todo o ser vivo (incluindo o humano) tem de estabelecer trocas
metabólicas para sobreviver (e, se possível, se reproduzir). Meio é
pois algo que se conota com adaptação, com equilíbrio, mas uma
adaptação bi-unívoca e um equilíbrio sempre (mais ou menos) instável.
Isto é, os organismos transformam e fabricam “meio”, que os transforma
e “fabrica” permanentemente a eles. Há uma interacção constante, muito
complexa.
O meio tem diferentes escalas, conforme consideremos
o local, o regional, ou o global, que em última análise é o universo
todo. Vai, evidentemente, do micro ao macro. As escalas do meio em que
os organismos sobrevivem têm a ver, está claro, com múltiplas formas de
comportamento, mas também com questões de quantidade, como a massa de
que aqueles são compostos: o “espaço vital” de um animal de grande
porte não é o mesmo de uma bactéria.
À medida que pensemos em organismos com um sistema
nervoso mais complexo, temos de ter em consideração que este é –
certamente entre outros - um poderoso sistema adaptativo, aumentando a
gama de meios em que certos organismos podem sobreviver.
A capacidade de previsão, isto é, de “pressentir”
(senão mesmo de pre-figurar) o futuro é um factor decisivo, como se
nota claramente no ser humano, cujo domínio do planeta e capacidade de
adaptação a todos os tipos de meios (inclusivamente extra-terrestres,
nas últimas décadas) resulta desta capacidade, naturalmente que muito
associada à técnica e a tudo quanto a ela se conota como uma infinda
colecção de “próteses do organismo”.
O conceito de adaptação, como se sabe bem, está
intimamente ligado ao tempo e à previsibilidade, à capacidade de
mutação, de mudança, ou seja, à noção de pré-adaptação. Idealmente, um
organismo (dir-se-ia melhor, uma população) bem adaptado não é o que
está apenas preparado para viver no presente, mas sobretudo para
“colonizar” o futuro, antecipando-se-lhe, na medida do possível.
Aquilo a que habitualmente chamamos “cultura” (e que
sabemos hoje não ser um exclusivo humano) é exactamente essa capacidade
de forjar antecipações, que no homem se ligam à reflexividade muito
acentuada de que dá mostras. Podíamos dizer que o ser humano criou para
si mesmo um “meio” particularmente artificial, embora tenhamos de ter
cuidado com esta distinção entre o natural e o cultural, entre o inato
e o adquirido, entre o herdado e o socialmente construído, etc, tudo
dicotomias que perpetuam “ad infinitum” a nossa obsessão ocidental de
pensar correntemente por polaridades binárias, por dicotomias simples,
a que somos arrastados pela lógica do discurso, do “habitus”
(disposição comportamental e epistemológica incorporada, sentida como
natural, porque resultante de experiências muito antigas, e em larga
medida inconscientes), da tendência para não pensar reflexiva e
criticamente (para não problematizar o que pensamos).
Paisagem
Paisagem é um conceito ligado à visão: é a extensão
de espaço em redor que somos capazes de alcançar com os nossos olhos. É
algo dinâmico, porque raramente estamos parados (a imobilidade total é
divina), podendo multiplicar os pontos de vista, nem que seja em
milímetros de diferença.
Como tal, é uma noção que está muito ligada à
pintura, à perspectiva (capacidade de dar a ilusão de realidade, das
três dimensões, em apenas duas), e depois à fotografia, etc., e de uma
maneira geral à obsessão típica da nossa cultura pelo visual, em
detrimento de outros sentidos. Nesse aspecto, referir uma determinada
realidade como paisagem é já colocar-se na posição de sujeito
contemplativo, furtado à acção, isto é, alguém que se destaca dela, e
que tem a possibilidade de dispor de tempo de ócio suficiente para a
contemplação.
Não admira assim que a “paisagística” esteja ligada à
ascensão da burguesia moderna; o que admira é que se utilize a palavra
para caracterizar realidades de populações pré-históricas ou de outras
culturas que não a nossa. Um trabalhador rural tradicional jamais
contemplaria uma “paisagem”, jamais nos descreveria uma paisagem, mas
quando muito “uma terra”, com cuja materialidade o seu corpo activo
faria um “continuum”. Claro que se eu (como faziam os primeiros
etnólogos) insistir muito em que o meu informador me diga determinada
coisa segundo os parâmetros que eu transporto, e me esforço em
“traduzir” (tradução, palavra-chave!), esse informador acabará por me
dizer o que eu quero, quanto mais não seja para se ver livre de mim e
ir à sua vida. Com base neste tipo de equívocos escreveram-se muitos
livros de antropologia, depois tornados “clássicos” até para os
próprios “entrevistados”, que posteriormente passaram, para defender a
sua “etnicidade” ou identidade construída a partir de fora (único modo,
perceberam, de sobreviver num mundo globalizado) a funcionar segundo
modelos que vinham nos livros. A anedota é bem conhecida…
A paisagem liga-se à disponibilidade de utilizar o
trabalho dos outros como mercadoria, e de usufruir do mundo como um
objecto de contemplação esteticizada, apanágio das elites, antes de ser
massificada pelo turismo moderno. Ver paisagem é ter poder sobre.
Naturalmente que o turismo de massas está menos ligado à contemplação
tradicional, cultivada (a qual pressupunha e pressupõe distância,
educação da espontaneidade, estilização de comportamentos, refinação da
sensibilidade, etc.) do que à electrização de instantes de emoção
“corporal” repetitiva a que se ligam os fenómenos de massa
contemporâneos (concertos pop, futebol, consumo de excitantes,
pornografia, novas “religiosidades”/ritualidades, e de uma maneira
geral tudo o que promova a colagem à acção – situação confundida com
“sentimento” - numa espécie de promessa de êxtase contínuo, ou “light
non stop”).
A paisagem é pois uma “vista”, uma visão (são
célebres as imagens dos trabalhos nos campos, ou das cidades vistas em
gravuras ou pinturas panorâmicas), e hoje está muito ampliada pelas
tecnologias da fotografia/filme, do voo, dos satélites, e da
monitorização de toda essa “informação” em computador através dos
modernos sucedâneos dos mapas militares: os sistemas de informação
geográfica e os programas de três dimensões em computador.
A sofisticação destes meios tende a permitir a
esperança de uma visão “absoluta” da paisagem (visão de Deus), quando
não há nada de mais “qualitativo e circuntancial do que uma paisagem,
qie fica melhor colada a outra palavra, seja ela um substantivo ou um
adlectivo. De facto, a paisagem está ligada a uma forma de experiência,
de acção, de subjectividade, sendo algo que está permanentemente a
mudar no campo perceptivo de cada indivíduo.
Não admira, dada essa fluidez e pluralidade, que quem
“vê” uma paisagem sinta assim um certo “poder” sobre ela, até porque é
o seu “ponto de vista”, único e irrepetível; não espanta que quem a
fotografa de algum modo tenha a ilusão de a possuir. A paisagem
fotografada é um “auto-retrato” da nossa sociedade arquivística – mata
o que julga querer conhecer e conservar, e dá vida a espectros (coisas
que jamais existiram a não ser na objectiva fotográfica e na reacção à
luz de certos produtos químicos; hoje, com o digital, as coisas
alteraram-se, ou seja, o real e o virtual de algum modo
sobrepuseram-se).
Certas formas de projecção de grande escala,
envolvendo o “espectador”, ou certos programas de computador,
mergulham-nos dentro da paisagem e con-fundem-nos com ela. Os extremos
da objectividade e da subjectividade tocam-se. A tendência da nossa
sociedade e suas tecnologias sofisticadas é para cada vez mais
con-fundir realidade “real” e “realidade imaginária”, fazendo-nos
passar para uma indiferenciação entre as duas, transformando a “vida”
em desejo compulsivo de entretenimento (distração pela acção). Não se
trata já de contemplar passivamente, como Narciso mirando o espelho,
mas de ser actor da própria realidade contemplável – de transformar a
transcendência e a imanência da imagem em circunstâncias mutuamente
permutáveis.
A paisagem deixou de ser o sítio do recolhimento
meditativo, para ser o lugar trepidante das emoções. A festa, dantes
confundida com certos momentos do calendário, agora é a toda a hora:
espécie de CNN ou de internet de banda larga, está sempre disponível.
Veja-se no que se vão transformando tendencialmente as universidades:
em locais da festa ou de rituais (nas suas múltiplas modalidades, desde
as praxes aos doutoramentos “honoris causa”), onde apesar de tudo
circulam alunos e professores (leia-se pessoas realmente interessadas
no processo de aprendizagem). A cada momento o “screen-saver” do meu
computador muda de paisagem.
Território
Território deriva de terra, terra trabalhada e
vivida, o que lhe dá desde logo certo estatuto de autenticidade,
telúrico, ancorado. Há aqui implícito um sentimento de vivência e de
pertença, cheio de simbolismos e de afectividades. Por isso um
território tem akgum tipo de fronteiras, demarcações, mesmo que lassas,
uma vez que ele se prende com a identidade dos que o habitam, dos que
têm de o “defender” dos intrusos. Dos que, constituindo uma parcela da
terra como seu território, assim se autentificam por contraposição a
outros.
Ao contrário da ideia de espaço, indiferenciado,
neutro, sem qualidades, um território é algo de qualitativo, antes de
estar submetido ao cadastro e à parcelarização, às leis do Estado e da
economia. Um território pode não ter um centro, mas tem com certeza um
conjunto de pólos de referência, uma rede de mnemónicas, uma
estratificação de recordações e de histórias. Um território é, fisica e
mentalmente, um palimpsesto, uma sobreposição de temporalidades.
Sabemos porém que também um território não é um
conceito a-histórico, que possamos usar ingenuamente, de forma
independente do contexto. Aliás, certos autores falaram de “processo de
territorialização” (“ancoragem” de uma comunidade a uma zona) e em
particular relativamente à pré-história, quando as populações, em
suposto crescimento demográfico, teriam “enchido” o espaço disponível
(pelo menos aquele que em certas alturas teria sido o mais “cobiçado”,
por uma grande diversidade de motivos), criando eventuais fronteiras,
centros e periferias, hiearquizações de “sítios construídos”, balizas
físicas referenciais, monumentos, etc. Estabelecer-se-ia assim uma
malha a partir da qual, mais tarde, as sociedades mais hierarquizadas
ou estatais se teriam gerado.
O território é algo que pode variar muito em função
do tipo de sociedade considerada, mais sedentária ou mais móvel, mais
complexa ou menos complexa (conceito sempre muito difícil de definir).
No fundo, é uma rede de percursos e de nós, ou seja, de caminhos e de
pontos de fixação, que se pode considerar ao nível de uma comunidade
mais ou menos ampla, ou mesmo referir-se a diversos grupos que se
reclamem de identidades ou de modos de vida diferentes.
Região
Região é um conceito complexo, cheio de tonalidades
afectivas, identitárias, com um passado e tradições comuns, supostas ou
imaginárias (ou seja, as regiões estão muito conotadas com o imaginário
das pessoas relativamente a sub-unidades locais dos espaços nacionais).
Realidades fluidas, históricas, e contingentes, situadas, ao nível do
estado-nação, entre este e a autarquia local, são de muito difícil
delimitação em certos países, nomeadamente em Portugal, onde no entanto
um acentuado regionalismo (incrementado pela folclorização estimualada
pelo Estado Novo) foi durante muito tempo mantido pelo arcaísmo do
país, pelo isolamento das populações e pela dificuldade de circulação.
A mitificação da ruralidade, quase realidade
intemporal, segundo técnicas ancestrais e rendimentos muito baixos dos
que trabalhavam efectivamente na terra, foi uma das obsessões de
Salazar. De modo que o país não precisou, durante muito tempo, de
museus em que se representasse: ele era o seu próprio museu, e os
consumidores (classe média) em número e grau de escolarização que os
não exigiam. Quer queria cultura desse tipo ia ao estrangeiro. De tal
forma que um dos museus das “grandezas” de Portugal era o coimbrão
“jardim dos pequeninos”, situado na “cidade dos lentes”, e o Museu de
Arte Popular, em Lisboa (Belém) simbolizava as várias regiões do país
através de um conjunto de estereótipos folclóricos: era, também, um
Portugal pequenino explicado às crianças cívicas em que os portugueses
se tinham tornado.
A região, como instância intermédia, de carácter
administrativo, entre o poder central e as autarquias (heterogéneas por
definição, sobretudo em recursos económicos) existe, segundo diferentes
modelos, em quase toda a Europa, de acordo com o princípio de que é
derperdício (perda de tempo e de meios) resolver questões locais ou
regionais em instâncias centrais (subsidiariedade). Pelo que a
descentralização do nosso país, do ponto de vista da sua administração,
é inevitável, apesar dos resultados do primeiro referendo. Muitas
pessoas invocavam que não estavam bem informadas, o que só demonstra a
extrema iliteracia em que se encontravam, porque informação sobre o
assunto não faltava para quem quisesse, de facto, facilmente obtê-la.
Enfim, a análise da história local e regional tem vindo a
desenvolver-se, e é possível que isso, a juntar a estudos etnológicos,
geográficos, etc., ajude a estruturar um país mais articulado na sua
diversidade, o que significa um país que tente ir todo a um só
velocidade e com alguma harmonia inter-regional.
Para o passado pré-histórico, é difícil utilizar o
conceito de região, até porque dispomos ainda de muito poucos dados
para não só caracterizar os paleo-ambientes, como para estabelecer,
para cada época, or modos diferenciais de vida que existiriam ao longo
do território hoje português. Mas é óbvio que temos de partir da
realidade presente (e toda a realidade, incluindo a arqueológica,
“fala” no presente) para o passado, eliminando o que é manifestamente
recente para, como escrevi noutro lado, num “strip” sucessivo da
paisagem, a irmos imaginando como seria antes. Naturalmente que
condicionalismos naturais, que ainda hoje determinam as realidades da
vida no nosso território, deveriam igualmente ter a sua influência no
passado, como as oposições norte-sul ou litoral-interior, mas é óbvio
que não só a realidade geográfica deve ter sido sempre um mosaico muito
complexo, como também os modos de vida e as “opções culturais”.
Lugar
Lugar é. ao mesmo tempo, uma “unidade” mais pequena
das que temos vindo a considerar, e onde um sentimento de vivência e de
“pertença” parece mais fortemente ancorado. É o espaço onde se
sedimenta a memória humana, onde é mais densa a teia de significados
decifráveis, Lugar é onde fica o lar, o “foyer” a “home” de uma pessoa
ou família. É o sítio onde se volta sempre, apesar de que com algum
desgosto pelo “déjà vu”, mas compensado pelo sentimento de conforto da
privacidade, da continuação dos hábitos adquiridos, que permitem
diminiuar os níveis de atenção vigilante ao perigo que usamos quando
nos deslocamos, por exemplo, para longe.
É certo que na “sociedade nómada” em que vivemos,
muitos, sobretudo quadros da classe média, acabaram por viver em
transportes ou em sítios de passagem, os “não-lugares” de Marc Augé.
Mas isso é uma excepção recente ao que foi mais habitual na história: a
profunda ligação afectiva e experiencial das pessoas a um território, e
dentro deste a um núcleo que é a sua casa. Por isso os “homeless” (ou
até os idosos que habitam lares pouco agradáveis) nos fazem tanta
impressão por representarem a suprema desumanidade da sociedade em que
vivemos, a de desprover as pessoas do sentimento de pertença a um sítio
peculiar.
O facto das pessoas que se deslocam encontrarem
substitutos afectivos para não habitarem lugares, investindo o
automóvel, ou todo um conjunto de equipamentos portáteis, de signos de
identidade e conexão (computador, telemóvel, etc.) é um outro problema,
relacionado com a globalização e com a proliferação do mesmo em todo o
sítio por onde se passa (conforto de ver uma multinacional de
hamburgers, de roupas, ou de livros num aeroporto por onde se circula;
conforto aliás efémero, mais da ordem do simbólico, e imediatamente
anterior a se relembrar os sabores ou o aspecto de tão monótonos e
insonsos produtos; sem dúvida que a detecção de uma caixa multibanco
com o símbolo do nosso cartão de crédito pode ser aliviante, mas por
pouco tempo…).
O lugar tem sempre muito de mítico (o “génio do
lugar”), na medida em que é investido por um indivíduo de qualidades
afectivas que a outro podem nada dizer. Por isso o bairrismo (amor
frenético ao rincão natal) é um sentimento hoje tão irritante e
inspirador de ridículo, dada a movimentação frequente das pessoas, e o
regime de favorecimento do cosmopolitismo (prazer no despaisamento-
veja-se a raiz da palavra – sentimento de estar for a do seu país, no
sentido de região natal) em que vivemos. Parece absurdo, por vezes,
vermos os adeptos de clubes de futebol entrarem em transe pela vitória
do seu clube, toda conseguida à base de atletas contratados,
estrangeiros; ou a xenofobia de certas pessoas, que pode levar ao
racismo e ao crime, perante comunidades de emigrantes ou de pessoas
pertencentes a “minorias étnicas”, que no entanto fazem as casas para
elas ou lhes tratam da limpeza no dia a dia.
O lugar, o sítio (ou “estação arqueológica”) é ainda
erradamente muitas vezes a unidade de análise dos arqueólogos.
Felizmente que uma perspectiva mais ampla, dirigida ao território no
seu todo (mas ainda muito condicionada, nas zonas fronteiriças, pela
realidade, recente para um pré-historiador, dos estados-nação) tem
vindo a crescer. Cada vez mais a “arqueologia da paisagem” se impõe,
não no sentido funcionalista (como se fosse um conjunto de recursos, ao
modo de hoje) mas também nos sentidos fenomenológico (lugar da
experiência dos indivíduos imersos no mundo) e semiológico (uma
paisagem de significações “versus” uma mera “paisagem económica”).
E, neste contexto, cada vez parece mais irrisória
aquela época, da segunda metade do século XX, em que se faziam
sondagens à procura de estratigrafias e de objectos-tipo, e se
organizavam “sequências culturais” nessa base, mesmo que já se usassem
métodos quantitativos. Aliás, muitas pessoas deixaram de fazer
escavações porque se aperceberam do anedótico carácter deste tipo de
trabalho. Só com projectos de certa envergadura, dirigidos a escavações
sistemáticas, a prospecções exaustivas, a estudos interdiscipliares do
território (hoje, e retrospectivamente) se pode chegar a algo de sério.
E isso custa muito tempo, muito dinheiro… porque, ao mesmo tempo que
tentamos generalizar, temos de estudar cuidadosamente cada contexto… o
que, no país por excelência da burocracia, que é o nosso, implica uma
vontade férrea de querer continuar a ser investigador.
Mas o campo e os laboratórios não bastam, porque sem
leituras e sem cultura geral que permita a renovação dos nossos
questionários, numa fase em que a arqueologia mundial está numa crise
paradigmática, também não se vai a lado nenhum. Ou seja, é-nos pedido
tudo (pela nossa consciência, pela nossa honra de investigadores), e os
meios que nos são dados são muito escassos.
Mas, se um poeta disse que não podia adiar o amor
para um próximo século, nós também não podemos adiar a vontade de
pensar, e de comunicar, e o gosto de trabalhar e de conhecer, para uma
outra vida. É aqui e agora, ou nunca.
Algumas leituras recomendadas sobre estes temas
- Augé, Marc (1994), Não-Lugares. Introdução a uma
Antropologia da Sobremodernidade , Lisboa, Bertrand Ed.
• Bender, Barbara (1998), Stonehenge. Making Space , Oxford, Berg.
• Bender, Barbara (ed) (1993), Landscape. Politics and Perspectives , Oxford, Berg.
• Gibson, James J. (1986), The Ecological Approach
to Visual Perception , Hillsdale, New Jersey/London, Lawrence Erlbaum
Ass., Inc., Publ.
• Grosz, Elizabeth (2001), Architecture from the Outside. Essays on Virtual and Real Space , Cambridge- Massachusetts, MIT.
• Hirsch, Eric & O' Hanlon, Michael (eds.)
(1995), The Anthropology of Landscape. Perspectives on Place and Space
, Oxford, Clarendon Press.
• Ingold, Tim (2000), The Perception of The Environment. Essays on Livelihood, Dwelling and Skill , London, Routledge.
• Jorge, Vítor Oliveira (2005), Vitrinas Muito
Iluminadas. Interpelações de um Arqueólogo à Realidade que o Rodeia ,
Porto, Campo das Letras, no prelo.
http://configuracoes.planetaclix.pt/VitrinasIndex.htm
• Kent, Susan (ed.) (1990), Domestic Architecture
and the Use of Space. An Interdiciplinary Cross-Cultural Study ,
Cambridge University Press.
• Lash, Scott & Urry, John (2002-2ª ed.), Economies of Signs and Space , London, Sage Publications.
• Lefebvre, Henri (2000- 4ª ed.), La Production de l' Espace , Paris, Anthropos.
• Low, Setha & Lawrence Zúñiga, Denise (ed.)
(2003), The Anthropology of Space and Place: Locating Culture , Oxford,
Blackwell.
• Paul-Lévy, F. & Segaud, M. (1983), L'Anthropologie de L'Espace , Paris, Centre Georges Pompidou.
• Silvano, Filomena (2001), Antropologia do Espaço. Uma Introdução , Oeiras, Celta Editora.
• Tilley, Christopher (1994), A Phenomenology of the Landscape , Oxford, Berg.
• Tilley, Christopher (2004), The Materiality of Stone. Explorations in Landscape Phenomenology , Oxford, Berg.
• Thomas, Julian (2004), Archaeology and Modernity , London, Routledge.
• VV.AA. (1987), Espaces des Autres. Lectures Anthropologiques d' Architectures , Paris Les Éditions de la Villette.
Porto, 1 de Maio de 2005
Sem comentários:
Enviar um comentário