Sobre a workshop “A Joint Consideration of The Study of Prehistory in Britain and Portugal: Towards a Critical Understanding of Time, Space, Practice and Object in the Prehistoric Past
Reflexão 2
- há, no programa desta workshop, um conjunto mais um menos explícito de conceitos/perspectivas que gostaria de debater aqui. Uma intenção clara é a de que a pesquisa que deve partir dos, e seguir os, “próprios materiais”.
- que são os “próprios materiais”? Os dados fornecidos pelos sítios em que os arqueólogos actuam, a partir do quais se realizarão debates sobre qual a nossa visão do tempo, espaço, práticas e objectos no passado pré-histórico”. Bem, dito assim de modo geral, isto foi sempre o que os arqueólogos fizeram. A ideia parece ser porém a de evitar debates há muito estafados sobre a monumentalidade, a natureza das chamadas “ocupações”, ou o significado social do tempo e espaço no passado.
- há aqui desde logo a crença, ou a esperança, de que indo ao particular, ao detalhe que cada caso observado oferece, é possível compaginar um caso com um outro, venha ele da Grã-Bretanha ou de Portugal, adentro de um “tempo” que vai, em termos de periodização tradicional, do Mesolítico à Idade do Ferro. Chamaria a isto uma mitificação do detalhe (por exemplo do micro-contexto), que é, na sua suposta pequena escala (de espaço e, eventualmente de tempo) expressão de uma unidade que assim se torna universalizável por comparação com outras. Ou seja, abstraindo toda a sua relação com uma miríade de outros elementos do mesmo universo de contiguidade espacial (e/ou cronológica) é no micro-contexto, na sua “intimidade” diria, que se encontra a “verdade escondida” do passado. As grandes sínteses mentem, projectam ideias pré-concebidas, então o que é necessário é descer ao pormenor para aí recolher uma verdade, a verdade de uma vivência, quer dizer, uma unidade lógica, uma intenção identificável e como tal compaginável com outras de outros lugares e tempos.
- expondo cada participante ou equipa o seu material de estudo, o mais detalhadamente possível, esse conhecimento é transmissível a outro colega que fica em condições semelhantes para o poder debater, comparar, interpretar - parece ser esta a ideia subjacente.
O problema que desejo levantar é desde logo se essa partilha não poderá ser mistificadora, ou seja, qual o estatuto epistemológico do objecto da arqueologia. É ele separável do seu contexto, quer no sentido geográfico, quer no sentido da experiência vivida por cada um/cada equipa (por exemplo, a escavação), no sentido de aparecer “purificado” da sua ganga empírica, objectivado, susceptível portanto de, por algum modo, se universalizar? Esta questão põe-se para toda a arqueologia e tem a ver com a questão da objectividade do conhecimento arqueológico, particularmente em “pré-história”.
- os temas propostos para o desenrolar destes trabalhos no âmbito da arqueologia – é importante ter isto presente, não existe aqui um apelo particular por exemplo à colaboração dos arquitectos, o que parece implicar uma espécie de vontade de autonomia em relação ao presente - são quatro: a arquitectura como questão (1), a arquitectura como prática (2), o modo como a chamada “cultura material” e a arquitectura se relacionam uma com a outra (3), e finalmente a “natureza do modo de habitar pré-histórico” (4).
Ora, terá sentido discutir estas questões num âmbito meramente arqueológico? A grande questão subjacente é: os problemas que se levantam aos arqueólogos, que intervêm no espaço hoje, não serão basicamente os mesmos que se põem aos arquitectos e outros “construtores” de espaço e território?
Qual é a especificidade da arqueologia pré-histórica em relação a eles, tanto mais que muitos arquitectos, quando abordam um “local” ou uma “paisagem”, se interrogam sobre os seus antecedentes (sobre a sua “temporalidade”), por um lado, e, por outro, mais cedo ou mais tarde são levados a pensar em termos de “história da arquitectura”, e portanto das origens das formas e dinâmicas arquitecturais?
Havendo nesse campo como se sabe toda uma plêiade de reflexões, umas mais “filosóficas” e outras mais “articuladas com a experiência directa”, em que os arquitectos e os historiadores de arte recorrem (por vezes com grande à-vontade) à arqueologia (normalmente de forma descontextualizada, diga-se), poderemos deixar esse espaço em branco? Estou a lembrar-me, por exemplo, das obras, clássicas hoje, de um Simon Unwin.
- Tema 1 – a prática e o uso do espaço vivido têm uma dinâmica e envolvem materiais de modos habitualmente menos considerados. Há no âmbito da arquitectura uma sobrevalorização do desenho e do objecto arquitectónico em si em relação à sua utilização e à prática, que nele, por ele, através dele, se desenrola. Ou seja, há uma ontologia, do desenho e da forma, que precisa de ser ultrapassada em arqueologia. Pois, mas há que ver como, caso a caso: pois prevenidos disso já estamos... sempre a casuística versus a pulsão generalizadora, tão perigosa e falsificante do que pensamos ser o “verosímil”...
- Tema 2 – precisamos de pensar o acto de habitar não como subsequente ao da construção arquitectónica, mas sim como criando ele próprio as próprias condições em que se constrói. Ou seja, a bem sabida interacção entre habitar - no sentido geral heideggeriano, de “estar em casa, imerso no mundo – e construir. Isto é, não há um princípio entre estes dois elementos interactivos, mas ambos se fundem desde sempre. Claro, a questão toda é saber como podemos determinar formas de “habitar” (com toda a fluidez com que elas, aos nossos de hoje – e é sempre com eles que as defrontamos - aparecem) com base na chamada “realidade arqueológica”. Mas os organizadores assumem que tempo, espaço, movimento podem ser detectados na dita “realidade arqueológica.” É uma questão muito difícil, porque as variáveis aqui são infinitas também. Retorna sempre o problema da arqueologia: se o mundo objectal (erradamente designado “cultura material”) existe permanentemente num universo simbólico como o humano, e portanto com espelhamentos e conotações ad infinitum, como é possível - se é que isso tem interesse ou sentido - estabelecer regularidades? Creio que não tem sentido.
- Tema 3 – Pôem-se aqui questões de ocupação (nunca percebi muito bem o que isto é, embora usado todos os dias pelos arqueólogos...) e monumentalidade. Também é trazida à colação a controversa ideia de “deposição”. Que significa ocupar um espaço, que significa depositar algo num lugar? Cá estamos de novo com os fantasmas da generalização, mesmo e sobretudo quando descemos ao particularismo, à mais pequena escala. Parece que há um mundo, ou fragmentos de mundo (a natureza?) que vemos (como num filme para adolescentes) serem ocupados/povoados por pioneiros, ou por frentes de onda humana que desalojam os anteriores habitantes... alguém está interessado nesse filme? Que nos importa isso, essa narrativa? Que nos interessa a “feitura de espaço” , ou o seu desmembramento, em si? Fora dos contextos sociais, ideológicos, económicos, fora das representações, fora de uma realidade vivida que temos de sofisticar ao extremo, e que é não a do “passado acontecido”, mas a nossa, a nossa representação hoje, disputada, discutida, entre o nosso corpo e as coisas, os volumes, os acidentes, os objectos, e as outras pessoas que circulam nos “espaços arqueológicos” da contemporaneidade. O acto arqueológico é um acto de conhecimento, sim, mas um acto de conhecimento que se deve inspirar não na “história” linear, não na reconstituição do pretenso "acontecido" (com toda a obsessão pela Falta que isso envolve), mas na reconstituição da nossa própria relação como arqueólogos com um espaço "presente", quer dizer, na descrição minuciosa da nossa acção, essa sim, até ao mais ínfimo pormenor, com a realidade envolvente, com as pessoas, com os registos. Temos de passar um vento por cima de tudo o que parece estável: as estruturas, as estratigrafias, as fases, os tempos, os espaços: temos de desfocar e focar continuamente isso tudo.
Como eles faziam e desfaziam espaço durante a pré-história? Mas quem são esses eles? e que termporalidade é essa? Pulsão mal dirigida, obsessão da Falta, desejo de prenchimento do vazio, vontade de ser omnisciente e omnipresente. Em vez de querer re-representar esse passado mítico, é muito mais interessante criar a vivência colectiva de um espaço outro, de um espaço visto de esguelha, de um espaço de viés, que é o espaço do sítio arqueológico, se ele não quiser ser um túmulo ou uma realidade amorfa.
Tema 4 – É-nos dito que a arqueologia pré-histórica se deslocou recentemente do estudo da monumentalidade versus ocupação, da cultura versus natureza, para uma arqueologia do habitar [dwelling, ideia baseada em Tim Ingold, por sua vez inspirado em Heidegger], quer dizer, de uma arqueologia de realidades fixas e de dicotomias para uma arqueologia de realidades dinâmicas, de processos, de fluxos, de esbatimento entre polaridades. Certo!
Pena é que na bibliografia se não citem duas fontes importantes, os livros que recentemente coordenei com Julian Thomas : “Overcoming the Modern Invention of Material Culture”, Porto, ADECAP, 2006-2007, especialmente por causa do capítulo final de Tim Ingold, e “Archaeology and the Politics of Vision in a Post-Modern Context”, Newcastle, Cambridge Scholars Publishing, 2008, até para se ver o “confronto” entre uma grande figura da arqueologia “processual” (Colin Renfrew, cujo texto de comentário “fecha” o volume) com a que desde há umas décadas autores mais jovens tentam implementar. Enfim, a tese de doutoramento de Gonçalo Leite Velho (ainda não publicada em livro, mas já pública, nomeadamente acessível na FLUP onde a workshop se realiza), ”Castelo Velho, a Natureza e o Tempo: Questões relativas à Re-construção de um Lugar”, FLUP, 2009 – onde se faz um esforço muito grande para realmente abrir novas vias, a partir de uma base filosófica, ao IMPASSE da arqueologia. Vias que julgo inultrapassáveis.
-Por mim, participo nesta workshop por amizade para com os organizadores e participantes. Talvez me surpreenda e aprenda coisas, admito. E rejubilarei com isso, certamente.
Conceitos como o de habitar, construir, o que é uma casa, etc, etc., teriam de ser vistos numa perspectiva alargada à escala do globo e de acordo com as reflexões mais recentes de Tim Ingold, por um lado, e por exemplo com a relativização da nossa ontologia que é proposta por Philip Descola, “Par-Delà Nature et Culture”, Paris, Gallimard, 2005.
- Se quisesse apressadamente caracterizar as linhas de pesquisa que me movem proximamente, neste e noutros campos da arqueologia e não só, enunciá-las-ia assim, esquematicamente:
*Walter Benjamin e a sua revolução do conceito de História (articulando com Foucault, etc)
* Gilles Deleuze e o seu conceito de dobra (articulando com o barroco, etc)
* Slavoj Zizek e o seu conceito de perspectiva em paralaxe (paraláxica) (articulando com Lacan e toda a teoria do sujeito, da imagem, etc.)
Vasto programa.
Porto, Janeiro 2011-01-24
Vítor Oliveira Jorge
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