A história é desejável, necessária e intencionalmente uma interpretação, uma perspectiva sobre "aquilo que se passou" antes de nós, antes de mim.
Por isso "o passado realmente acontecido" é uma ideia que traduz apenas a vontade, o esforço, de construir essa narrativa retrospectiva segundo padrões aceites colectivamente - um esforço de "objectividade".
A objectividade, a capacidade de atingir uma certa "verdade" em história, como em qualquer outro conhecimento, é apenas (mas este apenas é muito) um conjunto de métodos, de protocolos, para a distinguir da crença comum, da mera convicção baseada no hábito, na irreflexão (de um ponto de vista erudito).
"Subjetivo" e "objectivo" são duas modalidades indissociáveis, duas faces da mesma moeda do conhecimento: sempre contingente, situado, humano, em mutação, e ao mesmo tempo sempre procurando (utopicamente, claro) fugir a essa condição. É nessa "distância de fuga", de afastamento, que se constrói um conhecimento partilhável, ou sobre cada um de nós (a minha auto-biografia, a rememoração de mim próprio, a minha "identidade") ou sobre os outros e o mundo em geral.
A ideia de "reconstituição do passado" traduz uma vontade que é o desejo de toda a ciência: conhecer de uma forma comprovada, baseada, partilhável, para além da crença ou da mera convicção subjectiva. Nesse sentido, aquela ideia tem toda a razão de ser. Mas perde-a, drasticamente, se esse conhecimento quiser imitar a antiga teologia, isto é, ser um conhecimento tendencialmente completo, omnisciente, do passado, presente e futuro.
A nossa cultura tradicional situa-se (situa-nos) cronologicamente entre a Criação e o Juízo Final, ou seja, Deus estabeleceu-se nos seus próprios limites (Agamben).
Ao querer preencher esse espaço deixado vago pela "morte de Deus" com a "ciência" estamos apenas a traduzir um sentimento de perda, da perda irremediável do pai que tinha estabelecido estavelmente a "verdade" das coisas. Não podendo já acreditar no pai (a doxa, as Escrituras, a lei eterna), querendo assumir a nossa própria voz autónoma, vimo-nos a braços com a necessidade de reescrever a história (de reescrever a Bíblia, o livro que continha tudo) e quisemos fazê-lo segundo os mesmos parâmetros de totalidade, de completude.
O pós-modernismo, ou como o queiramos chamar, com o seu relativismo, é apenas a constatação de que tal atitude de recuperação de uma totalidade mitica e utópica é insensata. Nós não podemos nem devemos querer saber tudo o que aconteceu, mas tão somente criar uma possibilidade - aberta a cada indivíduo - de tentar saber o mais e o melhor possível, não como uma enciclopédia vazia de estratégia (mera acumulação), mas como um instrumento, diariamente renovado, de entendimento mais preciso, mais lúcido, mais poderoso.
Conceber o poder de saber desta forma é abrirmo-nos à hipótese da felicidade: a que não quer conhecer tudo (desejo insensato, totalitário, temível), mas tão só o que é útil, isto é, o que do ponto de vista humano nos pode tornar cada vez mais humanos, mais tolerantes, mais seguros de nós próprios também.
A desconstrução é hoje, como em todos os tempos, a forma do saber interrogante: é preciso desconstruir para voltar a construir, para reordenar, em novos edifícios conceptuais, o conhecimento e experiência adquiridos.
Fugindo ao dogma, ao conhecimento como autoridade do pai, ou sua nostalgia.
Mas é certo que muitos prisioneiros, quando saem da prisão, choram e querem voltar para trás, porque ela se tornou entretanto a sua casa, o seu espaço de segurança, a sua realidade. Enfrentar a realidade aberta às possibilidades, a relativização e contingência, é para o prisioneiro a pior das prisões.
Por isso "o passado realmente acontecido" é uma ideia que traduz apenas a vontade, o esforço, de construir essa narrativa retrospectiva segundo padrões aceites colectivamente - um esforço de "objectividade".
A objectividade, a capacidade de atingir uma certa "verdade" em história, como em qualquer outro conhecimento, é apenas (mas este apenas é muito) um conjunto de métodos, de protocolos, para a distinguir da crença comum, da mera convicção baseada no hábito, na irreflexão (de um ponto de vista erudito).
"Subjetivo" e "objectivo" são duas modalidades indissociáveis, duas faces da mesma moeda do conhecimento: sempre contingente, situado, humano, em mutação, e ao mesmo tempo sempre procurando (utopicamente, claro) fugir a essa condição. É nessa "distância de fuga", de afastamento, que se constrói um conhecimento partilhável, ou sobre cada um de nós (a minha auto-biografia, a rememoração de mim próprio, a minha "identidade") ou sobre os outros e o mundo em geral.
A ideia de "reconstituição do passado" traduz uma vontade que é o desejo de toda a ciência: conhecer de uma forma comprovada, baseada, partilhável, para além da crença ou da mera convicção subjectiva. Nesse sentido, aquela ideia tem toda a razão de ser. Mas perde-a, drasticamente, se esse conhecimento quiser imitar a antiga teologia, isto é, ser um conhecimento tendencialmente completo, omnisciente, do passado, presente e futuro.
A nossa cultura tradicional situa-se (situa-nos) cronologicamente entre a Criação e o Juízo Final, ou seja, Deus estabeleceu-se nos seus próprios limites (Agamben).
Ao querer preencher esse espaço deixado vago pela "morte de Deus" com a "ciência" estamos apenas a traduzir um sentimento de perda, da perda irremediável do pai que tinha estabelecido estavelmente a "verdade" das coisas. Não podendo já acreditar no pai (a doxa, as Escrituras, a lei eterna), querendo assumir a nossa própria voz autónoma, vimo-nos a braços com a necessidade de reescrever a história (de reescrever a Bíblia, o livro que continha tudo) e quisemos fazê-lo segundo os mesmos parâmetros de totalidade, de completude.
O pós-modernismo, ou como o queiramos chamar, com o seu relativismo, é apenas a constatação de que tal atitude de recuperação de uma totalidade mitica e utópica é insensata. Nós não podemos nem devemos querer saber tudo o que aconteceu, mas tão somente criar uma possibilidade - aberta a cada indivíduo - de tentar saber o mais e o melhor possível, não como uma enciclopédia vazia de estratégia (mera acumulação), mas como um instrumento, diariamente renovado, de entendimento mais preciso, mais lúcido, mais poderoso.
Conceber o poder de saber desta forma é abrirmo-nos à hipótese da felicidade: a que não quer conhecer tudo (desejo insensato, totalitário, temível), mas tão só o que é útil, isto é, o que do ponto de vista humano nos pode tornar cada vez mais humanos, mais tolerantes, mais seguros de nós próprios também.
A desconstrução é hoje, como em todos os tempos, a forma do saber interrogante: é preciso desconstruir para voltar a construir, para reordenar, em novos edifícios conceptuais, o conhecimento e experiência adquiridos.
Fugindo ao dogma, ao conhecimento como autoridade do pai, ou sua nostalgia.
Mas é certo que muitos prisioneiros, quando saem da prisão, choram e querem voltar para trás, porque ela se tornou entretanto a sua casa, o seu espaço de segurança, a sua realidade. Enfrentar a realidade aberta às possibilidades, a relativização e contingência, é para o prisioneiro a pior das prisões.
9 comentários:
Poder-se-ia então definir a História, como uma busca pelo auto conhecimento, tanto a nível individual como colectivo? Uma busca que se traduz na construção de uma cosmologia secular que preencha a lacuna hierática de forma a justificar, de uma maneira mais verossimil, a nossa existência?
É curioso como finaliza, ainda hoje a alegoria da caverna se pode aplicar à nossa sociedade.
(...) mas tão somente criar uma possibilidade - aberta a cada indivíduo - de tentar saber o mais e o melhor possível, não como uma enciclopédia vazia de estratégia (mera acumulação), mas como um instrumento, diariamente renovado, de entendimento mais preciso, mais lúcido, mais poderoso.
Conceber o poder de saber desta forma é abrirmo-nos à hipótese da felicidade: a que não quer conhecer tudo (desejo insensato, totalitário, temível)...
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Pois ...
é (será?)esta a chave para resgatar de Lethes as memórias abandonadas na margem do grande rio dos históricos esquecimentos e estratégicos adormecimentos
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um abraço a Sul (com Mário de Sá Carneiro nas folhas do caderno)
e ... a propósito da falocracia muito haveria para argumentar, para reflectir, inflectir ... fiquemo-nos pela poesia.
O sociólogo Miguel vale de Almeida, no livro " Senhores de si " arrisca algumas explicações muito interessantes. Talvez descolar este questionamento da tradicional dicotomia de género ...
teoricamente poderá ser interessante. Será ? Assunto primordial, é com toda a certeza. Merece mais discussão ...
Ler JUDITH BUTLER!
Curioso este sublinhar desmedido (repito desmedido, mas não injustificado) do pesentismo no discurso histórico. Em certa medida, é quase que o assumir da nossa impossibilidade de comunicar com o futuro, que, nesta perspectiva desmedida, nunca comunicará conosco, apenas se reflectirá a si próprio.
Repito o que já disse algures: o discurso histórico é relacional e em qualquer relação estão presentes, pelo menos, duas partes.
Se as materialidades produzidas pelos Incas fossem outras imagináva-mos outros Incas.
e eu que pensava que história era fato ... santa ingenuidade... que hoje era a histótia de amanha... apontarei para rever meus conceitos e... defeitos
Helena
As escavações arqueológicas, com tudo o que envolvem, não permitem qualquer tempo livre... daí que pessoalmente náo tenha postado grande coisa ultimamente (na verdade como viram na "despedida" do fim de Junho até nem pensava postar nada) nem tenha "comentado" os comentários.Esta pequena nota foi escrita antes de um dia árduo...
Naturalmente que concordo com a perspectiva relacional de todo o conhecimento, incluindo o matemático, e relacional em vários sentidos e planos. Relacional porque o conhecimento é-o sempre de alguma coisa, e portanto faz-me "sair de mim"; relacional porque o conhecimento é o produto de uma actividade social, colectiva, transmitida (mesmo quando contestada) de geração em geração, e como produto ele mesmo é sempre algo de histórico, de situado, de "interessado", de direccionado. Relacional porque para conhecer estabeleço polarizações, nós, que procuro unir por conexões que estabeleçam uma rede de sentido. Mas será de facto assim? Nós e rede são duas coisas que se vão também elas próprias urdindo em simultâneo. O tecido é tão complexo que nos leva a procurar a psicanálise, por exemplo...
E cada pergunta aponta para mil respostas, cada resposta para mil perguntas.
Estaremos então perdidos numa jangada no meio do mar sempre alterado do conhecimento? De modo algum. O que se passa é que para alguns é fundamental uma certa estabilidade do adquirido, do suposto já conhecido, enquanto outros acentuam a precaridade desse valor supostamente fixo, preferindo apostar na sua mobilidade, na sua irrequietude, na sua abertura para outros conhecimentos. Esta última é a minha posição, a minha escolha, que não procuro impor a ninguém. Quando se acende uma luz (quando vemos algo com nitidez) há quem fique obcecado por essa luz, mas na verdade talvez seja mais interessante olharmos em volta dela e apercebermo-nos da obscuridade que ela cria. Dessa obscuridade vem uma espécie de hálito que nos apela, enquanto que da luz vem apenas uma ideia fria que, se olhada fixamente, nos tolda a visão e nos acaba por cegar.
Quanto às "materialidades" (?) que os povos "produzem", leiam por favor o último capítulo (de Tim Ingold) do livro OVERCOMING THE MODERN INVENTION OF MATERIAL CULTURE, Porto, ADECAP, JIA especial 9/10, 2006/2007. Vou enviá-lo aos sócios da ADECAP que ainda não o têm em Agosto, mas também se pode adquirir através de Portico Librerías. O texto de Ingold é curto mas impressionante, ao sugerir a nossa libertação em relação às abstractas "materialidades", e à nossa concentração nos "materiais", o que é algo de bem diferente... "follow the materials"... é a imagem que usa.
ATENÇãO: O COMENTÁRIO ANTERIOR É DE VÍTOR OLIVEIRA JORGE E NÃO DE GONÇALO VELHO. PEÇO DESCULPA A TODOS, MAS ESTAS GAFFES SÃO PRÓPRIAS DA FALTA DE TEMPO.
VOJ
Obrigado, Victor, pela dica bibliográfica, mas já li. Como li antes Thomas e o Rethinking Materiality editado por DeMarrais, Gosden e Renfrew e outros quantos que vão na mesma linha. Como sabe, interesso-me bastante pelas questões cognitivas, que gostaria de ver desenvolvidas na arqueologia portuguesa (no discurso e no ensino). Que para nós, para retomar um exemplo de Thomas, uma pedra de granito já nos aparece como uma "pedra de granito" e não como uma materialidade qualquer totalmente independente, é já hoje óbvio para muita gente. Agora, quer queiramos quer não, existe materialidade para além de nós (se assim não fosse em não poderia estar a conversar consigo - ou então tudo isto é um sonho ou pesadelo, como no filme Matrix). Se um Inca fez aquela coisa a que chamamos pirâmide, isso gera em nós percepções, sentimentos, emoções, racionalizações, o que seja, que seriam diferentes se não tivesse desenvolvido aquela arquitectura. Ou seja, relaciona-se conosco e o "conhecimento" que desenvolvo sobre aquela gente e sobre as coisas que fizeram e me chegam é, portanto, relativo a mim e a eles (mesmo que o meu tempo as leia de múltiplas maneiras e com múltiplos sentidos). Há um encontro de subjectividades. Há comunicação. Por isso a contingência não pode ser levada ao ponto do isolamento presentista, que seria uma nova forma de idealismo ou racionalismo, com as suas tendências "totalitariamente" interiorizantes.
Quanto à estabilidade do adquirido versus fluídez ou percaridade, penso que é um falso problema para quem compreende a contingência. Em última instância, a contingência é uma aquisição, tal como a afirmação de que tudo é relativo é o único absoluto do Relativismo. Mas sem ir a este extremo, que é um pouco retórico, diria que a nossa forma de elaborar conhecimento não dispensa o adquirido e que o adquirido, devendo sempre ser assumido como provisório (e cuja escala varia de adquirido para adquirido), é uma das razões do desenvolvimento da nossa linguagem, da nossa tecnologia e da nossa capacidade tão particular de estar no mundo, enfim, de nos relacionarmos com ele. Naturalmente, para um investigador, um verdadeiro investigador, uma vez acendida a luz, o que interessa é ir iluminar as penumbras, e não estar o resto da sua carreira a acender a mesma luz. Mas ele não pode esquecer que as penumbras são provocadas por aquela luz acesa, ou seja, que parte desse adquirido e que ele é parte integrante da sua contingência, que deveremos querer alargar e não simplesmente substituir. Ao fim e ao cabo, não queremos retomar a pretensão cartesiana de partir de uma tábua rasa ou a comteana de uma mente liberta de todos os constrangimentos. Vivemos de aquisições temporárias (umas mais provisórias ouras mais perenes) e é com elas e com as dúvidas que suscitam "percorremos" o mundo.
Agora que a maioria da população mundial tem ainda um pensamento essencialmente absoluto, onde faz residir a sua estabilidade emocional, isso sem dúvida. Mas não é a crença uma particularidade humana a preservar?
e...
E...
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